A Vida Escreve

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Capítulo II

O encontro


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I


Rosabela preparava-se. Não cabia em si de esperança. Visitara o cabeleireiro, e experimentava, feliz, o vestido novo.

Sozinha no apartamento, relia a última carta. A última carta de amor que a buscava, enfim. E a sós, enquanto a noite de sábado transbordava de música, recordava, recordava…

Casara-se, havia cinco anos; todavia, Tristão, o esposo, revelara-se libertino. Não conseguia olvidar os primeiros tempos. A presença dele, suas palavras e promessas estavam em seu pensamento como inolvidável perfume.

Ainda assim, tivera coragem de romper consigo própria e tentar outra experiência. Isso porque não tivera força de perdoar-lhe.

Rememorava a noite em que se haviam despedido…

Regressava do interior fluminense, onde fora ter com os pais, em repouso breve. Entretanto, inesperada queratite obrigara-lhe a volta em momento imprevisto. E não olvidava o quadro que a ferira, fundo.

Penetrando em casa, surpreendera Tristão embriagado junto de outra. Ambos agressivos. Inconvenientes. Dilacerada nos melhores sonhos, protestara, chorando; contudo, o marido, alterado, atirara-lhe as malas na rua. Expulsara-a como se fora um animal corroído de peste.

Acolhera-se à residência de amigos e mudara o curso dos próprios passos.

O esposo, talvez mudado, tentara a aproximação, mas debalde.

Ultrajada, negou-se.

Alugando pequeno apartamento em bairro distante, aceitou as funções de datilógrafa quase anônima, em grande companhia comercial. E mergulhara a mente no serviço.

De quando em quando, esse ou aquele Don Juan de esquina lhe deitava olhos menos sensatos; todavia, pelo comportamento irrepreensível, não lhes encorajava qualquer palavra incorreta.

O tempo correu lentamente.

Um, dois, três, quatro anos…

Sentia-se, no entanto, intimamente desamparada.

Ensaiava a aquisição de amizades novas. Acabava, entretanto, desiludida.

Algo faltava.

Às vezes, supunha que faltava Tristão, mas arredava para longe esse pensamento.


II


Surgiu, no entanto, uma noite diferente.

Lia velho número de uma revista sentimental e encontrara aí um convite a esmo.

Cavalheiro, anunciando trinta e dois anos de idade, desejava estabelecer amizade com alguém, por sentir-se sozinho.

O curioso anúncio era assinado por Benjamim Solis e apresentava expressivo cunho de seriedade. Após refletir, resolveu arriscar. E ofereceu-se, endereçando bela missiva datilografada para a caixa postal indicada.

Dizia chamar-se Rosalinda Malvar e informava a posta-restante para a resposta.

Benjamim escreveu, contente, feliz.

Declarava adotar igualmente a datilografia por sistema ideal, até que pudessem estabelecer um encontro franco.

E as cartas começaram afetivas para se tornarem longas e belas, carinhosas e ardentes.

Confidências recíprocas. Autobiografias discretas. Flores e lembranças pelo correio. Respeitosamente, contou-lhe Benjamim uma longa história. Era casado. Mas via-se distanciado da esposa, desde muito. Não a acusava. Informava, apenas, que não soubera fazê-la feliz.

Em outras missivas, historiava estranhos episódios. Relacionava dificuldades do pretérito.

E dizia-se um homem a caminho da regeneração.

Enviava livros. Livros espíritas, consoladores, que ela manuseava com imensa emoção. Aqueles apontamentos dele inclinavam-na à alegria e à esperança. Falavam de renúncia, entendimento, perdão…

Ela mesma, com dez meses de correspondência, estava modificada. Mais paciente, mais tolerante. E pensava: “se conhecesse tudo isso ao tempo de Tristão…”; todavia, mentalizava Benjamim e expulsava a imagem do esposo, buscando anular-lhe o reflexo…

Impossível que Benjamim fosse mau… E ainda que houvesse cometido algo passível de justa reprovação, ali estava, naquelas cartas, religiosamente datilografadas, plenamente refeito.

Estava presa aos compromissos legais. Contudo, nada a impedia de manter uma afeição pura e nobre. Incentivo do coração que pudesse auxiliá-la a viver…

Pensando em como prosseguir no romance, revirava nas mãos a última carta…

Antes, deliberadamente, adiavam sempre, entre si, a remessa de fotos. Benjamim, no entanto, convidava-a, agora, a que se avistassem.

Esperá-la-ia às dez horas em ponto, do dia seguinte, domingo, à porta do velho Jardim Botânico. Envergaria costumes de linho alvo e traria gravata escura com pequeno alfinete em forma de “R”.

Respondera aquiescendo.

E informara que trajaria um vestido da mesma cor, mostrando um broche singelo lembrando os contornos da mesma letra.

Enfim, enfim o encontro…


III


Manhãzinha, Rosabela pôs-se em marcha.

A princípio, o [ônibus] elétrico e, depois, o [outro ônibus] lotação.

Não quis, porém, descer, de chofre, nas imediações do jardim. Queria movimentar-se um tanto. Preparar-se. E chegar às dez em ponto.

Fez sinal e apeou numa rua da Gávea. Aí mesmo, mal suportando a própria emoção, retocou o semblante e realinhou os cabelos, utilizando pequena bolsa.

E caminhou, coração aos saltos, no rumo certo.

Vários grupos se movimentavam sob o arvoredo, à caça de ar puro.

Avançou, trêmula. Olhou o relógio. Dois minutos para dez. Mais alguns passos e estacou.

O amigo lá estava. Roupa branca e gravata escura. O alfinete em forma de “R” luzia, não obstante minúsculo.

Mas, aquele homem… Aquele homem era Tristão.

O marido, muito pálido, veio ao encontro dela. Ambos, prestes a cair, abraçaram-se, de manso.

— Pois é você, Rosa? Eu bem desconfiava…

Somente você poderia escrever-me como fez, tocando-me o coração… Perdoe-me, agora! Estou transformado, creia… Sofri demais. Este encontro é a resposta do Mundo Espiritual às minhas preces constantes! Louvado seja Deus!…

Rosabela nada respondeu.

O esposo, no entanto, abraçou-a mais forte, ao notar que ela repousara a cabeça em seus ombros, e, depois de alguns minutos, percebeu que a primorosa lapela surgia agora ensopada de lágrimas.



(Psicografia de Francisco C. Xavier)



Hilário Silva
Francisco Cândido Xavier


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