A Vida Escreve

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Capítulo XXII

Suicida


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I


Desde o momento em que sorvera a mistura venenosa, Marina sentia-se morrer, sem morrer.

Não queria viver mais. Via-se desprezada. Acariciara o sonho de esposar Jorge e criar-lhe os filhos. Dois anos de vã esperança.

O pai costumava dizer-lhe: “Cuidado com os rapazes de hoje, nem sempre têm bom caráter”; ela, porém, achava-o antiquado e exigente. A mãe, entretanto, sorria e deixava passar.

Além disso, como resistir? Jorge assobiava todas as noites. Começou pedindo-lhe livros.

— Estou em dificuldades com meu professor de latim — dissera.

E levara-lhe a gramática, voltando no outro dia para solicitar informações. Percebera a manobra, encantada.

Desde então, encontravam-se noite a noite.

A princípio, comentavam estudos.

Queixavam-se dos professores, criticavam colegas, embora frequentassem instituições diferentes.

Complicara-se, contudo, a conversação.

Após quatro semanas de convivência, iam juntos ao cinema do bairro.

E tudo se agravou numa noite de chuva. Haviam assistido a um filme pitoresco. Uma jovem tímida, contrariada pela família, entregara-se ao rapaz, com quem fugiu, confiante.

Ninguém poderia dizer o que teria acontecido depois, mas o cinema coroara a aventura com um beijo.

Sob a marquise, pensavam no tema, mergulhando o olhar um no outro. A frente da garoa persistente, sentiam-se como numa ilha de encantamento.

— Você teria coragem de acompanhar-me num longo passeio? — perguntou ele, com intenções ocultas.

Ela corara, sem responder.

Refletia na heroína do filme. Não conseguiu desvencilhar-se do braço que a envolvera.

Ele interpretara-lhe o silêncio pelo “sim”. Ela não tinha voz para dizer-lhe “não”.

Deixou-se conduzir.

Automaticamente.

Lembrava-se de tudo…

Jorge chamara um táxi. Inebriada, sentia-se deslizar no asfalto, como quem patinasse acima das nuvens. Sonhava…

Nem viu quando o moço fez sinal ao motorista.

Qual se fora um animal hipnotizado, seguiu o companheiro. Desceram.

Pingos de chuva caíam-lhe nos cabelos de menina e mulher, como se a noite compassiva desejasse apagar o vulcão de sentimentos e ideias a lhe transtornar a cabeça.

Transpuseram um pequeno portão.

A pequena escada pareceu-lhe um trecho de espaço, à frente do paraíso…


II


Ele apertou um botão que encimava um florão da parede.

Alguns instantes de espera e abre-se a porta. Senhora gorda e afável atendeu, prestimosa.

— Minha velha amiga — dissera Jorge, sorrindo.

E continuou loquaz, enquanto ocupavam pequena sala. A chuva apoquentara-os, e pediam abrigo de alguns minutos a fim de conversarem a sós.

A dona da casa nem de leve se surpreendera, e indicou-lhes quarto próximo.

O moço tomara-lhe a mão trêmula e arrastou-a quase. Mal teve ela tempo para relancear os olhos pelo recinto. Um belo leito de casal estava perto.

Na parede um retrato do Cristo. Que fazia ali a imagem do Cristo?

Recordou em relampagueantes pensamentos repetidas palavras maternas: — “Todos devemos orar.” Mas não dispunha de espaço mental para ocupar-se do assunto.

Jorge enlaçara-a e as horas se perderam da imaginação, como se o tempo estivesse morto.

Acordou junto dele, alta madrugada. Lembrou-se do lar, como se fosse uma rosa despetalada que devesse retornar ao jardim.

Chorou.

Jorge despertara, generoso, e acalmou-a.

— Tolinha, não há motivo para lágrimas.

Levantaram-se, tornando à sala.

A senhora hospitaleira, embora estremunhada, tinha no rosto a calma das enfermeiras de plantão.

O moço pediu chá e explicou-lhe algo em voz baixa.

Depois do chá, o táxi, chamado pelo telefone, compareceu.

A viagem de volta não apresentava o sabor da vinda. Entre os dois, agora, o silêncio.

— Conversaremos amanhã — disse Jorge simplesmente, ao deixá-la em casa.

O coração materno esperava-a. Parecia adivinhar tudo, pela inquietação que denunciava.

— Por que afligir-se, mãezinha? — mentira pela primeira vez, como passaria a mentir sempre — a chuva atrasou-nos em excesso e descansamos em casa de Jorge — afirmara, beijando-lhe a face.

E não obstante a carantonha do relógio mostrando as três horas, D. Marcília nada respondeu, suspirando fundo.


III


Desde essa ocasião, aparecera-lhe o outro lado da vida.

Conheceu mais de perto a residência da cancela rosada.

Conversou mais demoradamente com a mulher que velava e conheceu outras clientes do pequeno edifício.

Ao fim de quatro meses, sentira-se diferente. Tinha vertigens. Vomitava.

Jorge levou-a ao gabinete de um médico ainda jovem, que lhe deitava olhares ambíguos.

Revoltava-se diante dele, mas submeteu-se a tratamento.

Processou-se o aborto esperado. Todavia, desde então, tinha sonhos alucinantes.

Via-se perseguida por alguém.. Rouquenha voz lhe gritava aos ouvidos: “Mãe, mãe, por que me mataste?” Acordava, enxugando o suor álgido, no lençol.

Queria ser mãe. Para isso, porém, precisava casar-se.

Jorge, no entanto, exigia-lhe calma. Devia terminar o curso de bacharel. Mas, nos últimos tempos, fizera-se arredio.

Contava-lhe os sonhos, perturbada. Ele ria-se e falava em consulta ao psiquiatra. Dizia-se também cansado. Estudos intensivos.

Passavam-se agora semanas de ausência. Telefonava-lhe. Pedia conselhos, rogava conforto. Ele sempre a dissipar-lhe os temores com a promessa do matrimônio.

Desde o aborto, era outra. Parecia-lhe viver com o filho que não nascera. Sentia-se visitada por ideias estranhas, como vidraça clara atravessada por largo jogo de sombras.

Na véspera, buscara Jorge na esperança de mais decisivo socorro médico. E estarrecera-se. O amigo, que sempre considerara noivo em particular, estava com outra.

Apresentou-a.

— Companheira de infância — informou.

E afirmara, sem rebuço, que pretendia casar-se dentro de poucas dias.

A rival cumprimentou-a, indiferente à dor que a fulminava. Empalidecera. Jorge, sorridente, conduziu-a a pequena distância e explicou-se.

Não a amava, confessou impassível.

— É melhor terminarmos assim — falou, frio —, antes de mais sérias dificuldades.

Ela implorou em lágrimas.

— Dissuada-se — concluiu quase áspero.

E afastara-se, retomando o braço da jovem que sorria, tranquila, a ignorar-lhe a tragédia.


IV


Mundo íntimo desmoronado.

A ideia de suicídio envolveu-a de todo.

Arrastou-se de regresso a casa.

Adquiriu a substância letal.

Escreveu bilhetes.

E, pela manhã, sorvera a poção de uma só vez.

Pavorosa dor irrompeu-lhe na carne, nos nervos, no sangue, nos ossos…

Convulsões sucessivas não lhe permitiam morrer.

Entretanto, ouvia sua própria mãe a gritar como louca: “Morta! Morta!”

Ouvia algazarra, mas o próprio sofrimento não lhe conferia o privilégio das discriminações. Viu-se carregada. Dois homens colocaram-na em “vasta gaveta”, a única interpretação que podia dar ao espaço fechado de pequena ambulância.

Não apenas chorava. Rugia em contorções, mas ninguém lhe percebia agora os terríveis lamentos.

Viu-se atirada, sem qualquer consideração, de encontro ao que lhe pareceu “laje fria”. Suplicava socorro. Agitava-se.

Ninguém, no entanto, atendia aos seus apelos.

Seis homens aproximaram-se. Um deles, mais experiente, parecia conduzir outros cinco.

Queria ajoelhar e pedir-lhes a necessária assistência.

Arrependera-se. Desejava retomar o corpo e viver. Pensava no martírio dos pais. Reconhecia-se jovem ainda.

Poderia sobrepor-se à situação. Trabalharia por vencer. Nenhum dos circunstantes lhe ouvia os brados. Pareciam desconhecê-la, desrespeitá-la. E mais que isso, desnudaram-na.


V


O homem amadurecido afastou-se por minutos como quem se esquecera de trazer algum remédio a fim de ajudá-la. Dois dos cinco rapazes presentes tocaram-lhe o corpo. Beliscaram-na.

Alarmou-se, indignada ante o vexame evidente.

O mais velho, longe de garanti-la, fez mais. Tomou de um bisturi e abriu-lhe o abdômen.

— Assassinos! Assassinos! — estertorava.

Mas a operação prosseguia. Ouviu vozes. Alguém dizia: “Bela mulher!”, enquanto o cavalheiro amadurecido, em grande avental branco, falava em “cianetos” e “cheiro de amêndoas amargas”.

Um dos moços, de olhar irônico, exclamou, tateando-lhe o busto: — “Por que matar-se deste modo?”

Sentindo-se em desespero total, clamava que não. Tentara o suicídio, mas recuara.

— Terminassem a operação! — pedia, em pranto, reconhecendo tratar com jovens cirurgiões em estudo.

Tinha pressa. Desejava tranquilizar os pais, refazer a existência. Mas, em meio das sensações turbilhonárias que lhe atormentavam a alma, sentiu que continuavam a lhe cortar a carne.

Era demais. Viu-se separada do próprio corpo, como joia que salta mecanicamente do escrínio. E conheceu a verdade, enfim. O corpo que ela própria arruinara apresentava máscara triste. Mãos ágeis trabalhavam-lhe as vísceras, separando material de exame necrológico.

Entretanto, ela — Marina, ela mesma — cambaleava, de pé, com todas as dores e convulsões de momentos antes…

— Mãe! Minha mãe! — clamou aterrada quero viver! viver!.

Outra voz, contudo, bramiu-lhe ameaçadora e sarcástica aos ouvidos:

— Mãe, minha mãe, eu também quero viver! viver!…

Procurou com os olhos agoniados quem lhe falava, mas apenas sentiu que braços vigorosos a aprisionavam.

Lembrou, aturdida, o aborto, os sonhos, a tortura e o suicídio, e esforçou-se terrivelmente para voltar e erguer de novo o corpo tombado na mesa fria.

Mas era tarde…



(Psicografia de Francisco C. Xavier)



Hilário Silva
Francisco Cândido Xavier


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