Ave, Cristo!

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Capítulo III

Almas em sombra


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Não longe das Termas de Trajano, em pleno coração de Roma antiga, vamos encontrar soberba vila em festa.

A matrona Júlia Cêmbria recebe os amigos na intimidade.

O ar ambiente está embalsamado de capitoso aroma.

Exímias dançarinas, ao som de músicas envolventes, executam no centro de caprichoso jardim bailados estranhos e eróticos que os convivas, ao longo de tufos verdes e floridos, acompanham com lascívia e encantamento.

A anfitriã era viúva de famoso chefe militar que, morrendo nas campanhas de Maximino, lhe havia legado muito dinheiro, muitos escravos e a vila apalacetada, onde o esposo falecido tinha o prazer de cultivar plantas e flores do Oriente. O recinto, por isso mesmo, obedecia ao mais fino bom gosto. Entre largos canteiros bem traçados, sob a forma de “luas crescente”, arbustos, fontes e bancos marmóreos teciam quadros de régia beleza.

A viúva sem filhos parecia interessada em desforrar-se da Natureza que, impiedosa, começava a encorrear-lhe o rosto, e lutava por conservar a mocidade em prazeres bem pagos, rodeando-se de moços gozadores da vida, talvez para consolidar nos outros a impressão de sua vitória permanente de mulher inconformada, à frente da velhice.


Entre frases cochichadas e gargalhadas alegres, acendidas pelo vinho abundante e claro que era servido nos entreatos dos variados números artísticos, deparamos uma jovem de lindo porte, que em companhia de algumas amigas participa do brilhante sarau.

É Lucila, que experimenta o anseio de liberdade, na floração dos seus primeiros sonhos juvenis, intoxicada pela sede de aventuras na comunhão com a sociedade romana do seu tempo. Sabe que a genitora lhe destina a mão de mulher ao tio viciado que lhe não inspira amor, reconhece-se incapaz de fugir às determinações do avô que lhe reclama o sacrifício feminino a fim de preservar a própria fortuna e, em razão disso, desajuizada e fútil, entrega-se ao desregramento, qual se pudesse fugir a si mesma.

Encontrara, na véspera, o insinuante Marcelo Volusiano, que, por se referir às Gálias lhe acordou, de imediato, a atenção. Desde o instante em que fora apresentada a ele por velha amiga no anfiteatro, despreocupara-se inteiramente do que se passava na arena. Toda a sua atenção se concentrara nele. E tão grande afinidade se estabeleceu entre ambos que a moça não vacilou em favorecer-lhe o ingresso à festa de Júlia, mobilizando, para isso, as próprias relações.


Marcelo, plenamente distraído dos laços que o prendiam à família distante, rendia-se à tentação de novas aventuras.

A voz adocicada e os gestos voluptuosos de Lucila, a palavra sonora em que predominava o sotaque dos romanos habituados ao mundo gaulês, lhe haviam cativado o coração.

Encantado, conseguira acesso à vila de Cêmbria e, ao lado da neta de Vetúrio, num banco cercado de romãzeiras da Síria, falava-lhe aos ouvidos inebriados:

— Realmente viajei através das mais expressivas paisagens do Ródano, entretanto, estava longe de adivinhar que encontraria aqui a mais bela flor da juventude latina. Doce Lucila, como arrojar-me a teus pés e adorar-te? com que palavras exprimir-te a emoção e o contentamento que me possuem?

Enquanto a moça, embriagada de júbilo, se lhe rendia aos carinhos, fitando-o, languidamente, o arrojado conquistador continuava com fascinante inflexão de ternura:

— Que importa nos aproximemos, mais intimamente, um do outro, se nos sentimos, desde ontem, envolvidos na mesma onda de confiança e carinho? A vida é apenas o minuto de felicidade que respiramos entre as sombras do passado e as sombras do futuro… Tudo é sempre o “agora” maravilhoso!… Minha diva celeste, não ensurdeças ao milagroso apelo do amor!


Ante os olhos súplices do rapaz, a jovem balbuciou, entre a alegria e a inquietação:

— Compreendo-te os anseios que são iguais aos que povoam minh’alma… Trazes para mim alguma coisa que tenho esperado ansiosamente! No entanto, Marcelo, não será justo consultar o tempo?

— Ah! o velho ! — suspirou o moço, contrariado — minha paixão jamais saberia ouvi-lo!… Não te reportarias a ele, se houvesses descoberto em mim o deslumbramento com que a tua presença me envolve…

— Não te expresses assim! Recebo-te na qualidade de herói do meu primeiro amor, contudo, peço-te!… Tenhamos calma! Não nos perturbemos! Recorramos à inspiração dos deuses para que nos orientem os destinos!…

— Os deuses? — falou o aventureiro, depois de sorver nova taça de vinho — os deuses são os benfeitores naturais de nossa ventura… , o renovador da Natureza, abençoar-nos-á os sonhos! Haverá maior alegria para o olhar de Vênus que a de contemplar uma ninfa como tu, a rivalizá-la em beleza? Ama-me, divina! Aplaca a minha sede de afeto! Tenho peregrinado muito tempo, à procura de teu olhar, que me fala das estrelas distantes… Não cerres a porta da ternura que te enriquece o coração ao viajor que chega, fatigado, de tão longe!…

Enlaçou-a com venenosa carícia e Lucila estremeceu com o beijo que lhe buscava a boca inquieta e risonha.

Na noite seguinte e nas noites subsequentes, passaram aos entendimentos ocultos, num ângulo isolado dos jardins de Vetúrio.


Decorridos quatro meses, em que a jovem se mostrava profundamente modificada, Anacleta, por solicitação de Helena, pôs-se em campo, descobrindo os encontros noturnos e identificando o rapaz.

Tomou informações acerca de Marcelo, vindo a saber que era ele afortunado jogador do circo, particular protegido de Cláudio Lício.

Em nome da senhora, de cujo lar fora sempre a governanta fiel, tentou avistar-se com o amigo lionês, para esclarecimentos, entretanto, Cláudio achava-se ausente acompanhando familiares em excursão pela Espanha.

Alarmada, Helena certa noite esperou a filha, em seus aposentos particulares, e, registrando-lhe a chegada, horas mortas, interpelou-a, severa, exprobrando-lhe o procedimento incompreensível.

Estava prometida ao brio de Galba, conhecia as responsabilidades que lhe competiam no círculo familiar, não ignorava o objetivo daquela permanência longa em Roma e como descera ao nível escuro da mulher desclassificada? como se confiava daquele modo a um estranho, cuja procedência poderia ser a taverna ou cárcere?


A genitora esperava que a moça, ferida no caráter feminil, se justificasse revoltada, ajustando-se à emenda precisa, mas, com espanto, notou que a filha cambaleava, rojando-se-lhe aos pés.

Anacleta, atraída pela conversação em voz alta penetrou igualmente a câmara, no evidente intuito de auxiliar.

— Mãe! querida mãe! — soluçou a jovem, consternada — socorre-me! estou doente… não me abandones!… Marcelo e eu nos amamos, pertencemo-nos um ao outro… não me condenes a um casamento que não posso tolerar! Os deuses sabem que não posso…

Helena e a velha amiga trocaram significativo olhar, como a se recordarem da mocidade distante.

— Não podes? — gritou a genitora, indignada. — Não permitirei qualquer interferência de tua vontade caprichosa nos planos de meu pai. Mandarei um emissário a Campânia para que teu tio retorne a casa, imediatamente. Realizaremos as núpcias e explicarei a Taciano que o teu consórcio deveria ser efetuado, à pressa, aqui mesmo!…


A moça abraçou-lhe a cintura, num gesto comovente, e segredou, angustiada:

— Não me acuses, se errei!… Perdoa-me por amor aos nossos antepassados! Mas, não estou mais sozinha… Serei mãe dentro em breve…

— Infeliz! — bradou a filha de Vetúrio, qual se estivesse possuída por um demônio de inconsciência e desespero.

E quando alçava o braço para espancar a jovem, Anacleta, aflita e conciliadora, deteve-lhe o gesto, exclamando:

— Acalma-te, querida! Somos mulheres e devemos compreender…

Fixou-a, com austeridade e doçura, como a impor-lhe benevolência para com a menina, e continuou:

— Em quantos lares romanos estão surgindo problemas iguais a este? Seremos as únicas pessoas a sofrer a presente infelicidade? Não acredito possamos solucionar qualquer questão grave sem o concurso da paz.


Helena abandonou-se aos braços da governanta, clamando em lágrimas convulsivas:

— Que será de nós? Sinto-me envergonhada, vencida… Tanto sacrifício para conduzir uma filha, tanta luta para sustentar a maternidade!… Tanto esforço para comprar tão escuro resultado!… Vingar-me-ei sem compaixão!…

Antes, porém, que a palavra dela se fizesse mais áspera, Anacleta rogou, afetuosa:

— Helena, controla-te.

E, alterando o tom de voz, como a pedir-lhe rememorasse o próprio passado, aconselhou:

— Quem de nós não terá tido perigosos desvios na vida? calemo-nos, por agora. Não provoques a presença de teu pai, encanecido e doente, neste quarto! Frases duras não corrigem faltas cometidas. Se desejas amparar tua filha não fujas à paciência. Ninguém auxilia por intermédio da irritação. Se não podes ajudar hoje a nossa Lucila, procura o silêncio, conversa contigo mesma e aguardemos a passagem das horas. É possível que o amanhã nos visite com o socorro desejado…


A senhora em pranto, aceitou o conselho e retirou-se, moralmente esmagada, enquanto a velha servidora acomodava a moça abatida, no leito, mantendo-se junto dela, com devoção e bondade.

Anacleta parecia adivinhar.

No dia seguinte, pela manhã, Teódulo chegava à metrópole, procedente de Lião.

Helena experimentou imenso alívio.

Encontrara o confidente capaz de prestar-lhe apoio decidido.

Sem perda de tempo, mantiveram ambos, a sós, demorado colóquio num compartimento isolado. Mas, depois de chorar, em excesso, colocando o amigo no conhecimento da verdadeira situação em casa, a matrona, assombrada, ouviu dele a descrição do que ocorria na província.


O agente de Vetúrio, animando quanto possível a sua versão pessoal dos fatos, informou-a de que não alimentava qualquer dúvida sobre a infidelidade conjugal de Taciano, asseverando que ele e Lívia se amavam, perdidamente. Pintou a vila dominada por essa nova mulher que lhe conquistara, não somente o coração do marido, mas igualmente o da filha, porque Blandina vivia no lar como se lhe fora pupila subserviente. Contou que o velho filósofo devia ser algum conspirador disfarçado, explorando os dotes da moça, porquanto ele, Teódulo, estava convicto de que o inteligente ancião recebia largas somas da bolsa de Taciano, a fim de silenciar e concordar com a deplorável situação, acentuando ainda que pai e filha não passavam de embusteiros da seita dos nazarenos.

A interlocutora anotou as informações com a expressão de uma leoa ferida.


Ergueu os braços para o alto, invocando a maldição dos deuses sobre todos os que lhe perturbavam a tranquilidade doméstica, mas, reajustada, de algum modo, pelos carinhos que o amigo lhe dispensava, suplicou ao intendente de Opílio lhe orientasse as decisões.

— Primeiramente — considerou ele, sagaz —, faz-se necessária uma completa inspeção no sedutor de Lucila. Será casado? Possuirá bens apreciáveis? Estará em condições de concorrer com o nosso Galba, no páreo do matrimônio? Sentindo a delicadeza do assunto, proponho-me observá-lo. Começarei a tarefa, ainda hoje. Tenho amigos no anfiteatro. Achá-lo em pessoa não será tão difícil. E, encontrando-o, tentarei conquistar-lhe a confiança, porque, depois da confiança, o vinho fará o resto… Naturalmente, biografar-se-á, como se faz necessário. Veremos, então, a conveniência de lhe aceitarmos a aliança…

— Mas, e se ele for um desclassificado como creio? se for um celerado na capa de um homem distinto?

— Nessa hipótese, que desejarias fosse feito? — indagou Teódulo, com largo sorriso nos lábios.


Helena revirou nas órbitas os belos olhos felinos e respondeu, franca:

— Minha desforra é a destruição. A morte é o remédio das situações irremediáveis. Não hesitarei. Tenho bastante veneno para limpar o caminho…

Ambos passaram ao exame de vários pormenores do sombrio plano que lhes nascera da conversação e, com sinistras perspectivas, o amigo incondicional da matrona visitou o anfiteatro, a pretexto de assistir aos exercícios da escola de gladiadores.

Não encontrou dificuldade para rever companheiros antigos, dentre os quais Sétimo Sabino, velho jogador, que, levado com jeito, afirmou conhecer Marcelo e prometeu apresentá-lo mais tarde, naquele mesmo dia.

O moço estaria num sarau, em casa de Aprígia, dançarina famígera, que sabia congregar muitos homens de uma só vez, em torno da própria beleza.


Com efeito, à noite, Sabino e Teódulo conversavam, no salão iluminado da residência da singular mulher que se instalara ao pé do Tibre, quando Volusiano entrou, de semblante carregado.

Parecia triste e inquieto.

Sétimo, interessado em servir ao companheiro, não perdeu tempo. Atraindo-o com sorriso acolhedor, ofereceu-lhe um lugar à mesa.

Teódulo e o recém-chegado entraram em animada palestra sobre gladiadores e arenas e, verificando-lhes a intimidade que se fizera espontânea, Sabino retirou-se, justamente quando as primeiras taças começaram a aparecer, frescas e abundantes.


A sós com o rapaz, o enviado de Helena, adivinhando-lhe a mágoa, depois de bebericarem por alguns minutos, aparentou maior avidez pelo vinho e exclamou:

— Que seria do mundo se os deuses não nos dessem o que beber? Modificar nossa alma num copo, eis o segredo da felicidade! Sorvamos o vinho para que o vinho nos absorva!

Marcelo achou graça no rifão e mostrou forçado sorriso, acentuando:

— É a pura realidade. Numa noite negra como esta, beber é fugir, alhear-se, esquecer…

Mergulhou os lábios na taça transbordante e, ao ver-lhe os olhos esfogueados, Teódulo aventurou uma sondagem sutil:

— Procuro também desaparecer de mim próprio… Nada existe de mais doloroso que um amor infeliz…

— Um amor infeliz?! — considerou o interlocutor apanhado de surpresa — não pode ser mais infortunado que o meu… Vejo-me em escuro labirinto, a debater-me só, plenamente sozinho…

— Se algo posso fazer, dispõe de mim.


E, disfarçando a ansiedade que o dominava, o intendente de Vetúrio indagou:

— Moras em Roma, há muito tempo?

Longe de sentir-se examinado, Volusiano, talvez no incontido desejo de associar alguém aos problemas que o torturavam, desabafou:

— Sou romano, contudo, estive distanciado da capital, muito tempo. Cruzei o Mediterrâneo em várias direções e cheguei da Gália Narbonense há meses. Vinha no propósito de imprimir novo rumo à existência, entretanto, os imortais não me permitiram a transformação a que aspirava…


Marcelo tragou mais um gole e prosseguiu:

— Uma beldade irresistível fascinou-me. Não tive forças e amei-a, freneticamente… Minha diva, porém, mora tão alto, tão alto, que, ainda agora, por mais a esperasse, não conseguiu descer para aquecer-me os braços frios…

— Trata-se, então, de uma Vênus assim tão rara?

— Sim — suspirou o moço, caminhando para a embriaguez —, é uma beleza que me afoga a consciência e me consome o coração.

— Daqui mesmo?

— Oh! quem poderá conhecer a origem exata de uma deusa? é uma pomba tímida. Fala pouco de si mesma, provavelmente com receio de que nos destruam a felicidade. Sei apenas que reside em Lião, encontrando-se agora em prolongado repouso junto do avô.

— Ah! — considerou Teódulo, manhoso — justamente de Lião? Moro lá também, achando-me na cidade a serviço…


Volusiano mostrou algum sobressalto no olhar em que ainda fulguravam réstias de lucidez, e falou, restringindo a espontaneidade:

— Quanta coincidência! por lá me demorei algumas horas, antes do meu regresso a Roma.

E como poderia estar na presença de alguém com a possibilidade de conhecer-lhe os passos na retaguarda, experimentou o desejo de preparar a própria defesa para qualquer eventualidade e comentou:

— Imagina que a má sorte é uma asa negra sobre os meus dias. Era noivo em Massília de uma jovem que subiu pelo Ródano acima, instalando-se em Lião, com o velho pai. Quando a saudade me apertou o coração, dirigi-me ao encontro dela, mas, com assombro, fui descobri-la enleada em compromissos novos. Um velhaco de nome Taciano dominou-a completamente.


Teódulo, que ignorava a experiência conjugal de Lívia, tomou as mentiras de Marcelo por verdades e, com a volúpia de um caçador diante da presa, disse num tom de admiração:

— Taciano? conheço-o muito. E pelo que dizes julgo identificar tua noiva gaulesa na formosa Lívia que presentemente lhe distrai os ócios.

Sorriu com o aspecto de um amigo carinhoso e ajuntou:

— Pequeno mundo é o nosso! Em qualquer parte, vivemos agarrados uns aos outros.

O interlocutor, espantado, quis recuar na conversação, mas temendo as consequências de uma fuga inoportuna, confirmou, desapontado:

— É ele mesmo. Conheces, então, a espécie de mulher a quem devotei minha máxima confiança?

— Superficialmente. Apenas observei o par, em excursões e entendimentos infindáveis, ao passar pela porta do velho afinador.


Reconhecendo-se à frente de valiosa oportunidade para indagações, Teódulo inquiriu, de chofre:

— E aquele estranho filósofo, quase teu sogro? será grego, egípcio, romano?…

— Sei lá! — respondeu o rapaz, mantendo-se em guarda — sei apenas que é um antigo liberto da casa de Jubélio Carpo, com quem permanece ainda empenhado em larga dívida. Certo dia, enfadou-me com uma autobiografia desinteressante e soporífica, da qual somente conservei esse pormenor.

Notando que Marcelo começava a ensimesmar-se, o companheiro baixou a pressão do inquérito e acentuou:

— Jovem amigo, esqueçamos o passado! Bebamos ao presente!… Se nossas vidas cruzaram no dia de ontem, quem sabe poderei auxiliar-te, de algum modo, no dia de hoje?

O moço pareceu diminuir a desconfiança que passara a assediá-lo e suspirou:

— Quem me dera! Tive o infortúnio de apaixonar-me pela neta do ricaço Vetúrio…

Opílio Vetúrio? — atalhou o interlocutor, fingindo-se perplexo.

— Sim, sim…

Aparentando entusiástica alegria, Teódulo acentuou:

— Conheço-o também. Referes-te, naturalmente, à encantadora Lucila.


Maravilhado com o imprevisto, Marcelo desabafou em longa confidência, explicando que se habituara a encontrar diariamente a jovem, num pequeno caramanchão do jardim, entretanto, desconhecendo o motivo, Lucila não descera aos colóquios do costume, naquela noite.

Achava-se, por isso, desalentado, aflito.

Teódulo dirigiu-lhe frases reconfortantes e aconselhou-o a insistir na noite seguinte.

Não era ele amigo do velho Vetúrio, desde a infância? E demonstrando desfrutar a intimidade de Helena, prontificou-se a orientar alguma combinação suscetível de beneficiá-lo.

Prometeu entender-se, no dia imediato, com a família da menina e recomendou a Marcelo aguardasse no jardim, no horário de sempre, onde estaria em pessoa para dar-lhe as boas novas.


Volusiano não cabia em si de jubilo. Comovido, apertou as mãos do protetor, com efusiva satisfação, e contemplou-o, enlevado, qual se estivesse diante de um semideus.

Ambos, contentes, se abeiraram de algumas mulheres alegres, admirando-lhes os bailados exóticos.

Em seguida, despediram-se com cristalinas gargalhadas de velhos amigos.

De manhãzinha, Teódulo procurou Helena para informações.

A senhora escutou-lhe o relatório verbal, entre curiosa e indignada.

Ao término da minuciosa elucidação, falou enraivecida:

— Com que então era noivo da mulher que me invade a casa!… Triste par de criminosos natos! Ela me furta o esposo, ele me perverte a filha. Ainda bem que estou viva e sã para impedir vítimas novas!…


Esboçou irônico sorriso na máscara fisionômica e perguntou ao companheiro:

— Que sugeres?

— Helena, ontem mesmo o assunto poderia ter sido liquidado. Atravessamos juntos a corrente do Tibre. Ele, desorientado pela embriaguez, poderia ter caído nas águas, dormindo para sempre. Ninguém daria por isso. É um biltre, que não ajuda a ninguém. Todas as informações colhidas no anfiteatro coincidem quanto a ele. É vagabundo, preguiçoso e ladrão no jogo fácil. Ninguém sabe porque teria merecido o interesse de Cláudio Lício. Sem nome, sem dinheiro, sem procedência, de que modo concorreria com o nosso Galba num casamento de tal monta? Não desejava, porém, assumir qualquer responsabilidade sem ouvir-te. Procurei encorajar-lhe a vinda hoje para qualquer decisão. Naturalmente, agirei, segundo a tua vontade.


A senhora pensou, pensou, e, após longa pausa, considerou, resoluta:

— Fizeste bem. Regozija-me a segurança de tua fidelidade. Nasceu-me agora no cérebro plano eficaz, em cuja execução Taciano será chamado a contas, com a eliminação de nossos inimigos. Um velho sórdido quanto esse Basílio de que me dás notícia não devia reclamar-nos tanta consideração, mas, para avançarmos sem aborrecimentos, procuraremos a família de Carpo, de modo a conhecer-lhe a verdadeira situação. Antes de mais nada, porém, é indispensável atingir o objetivo mais próximo. Volusiano morrerá hoje mesmo, no caramanchão. Tenho os recursos adequados para a taça, com que poderás cumprimentá-lo à chegada.

— E a menina? — indagou Teódulo, impressionado com a audácia do projeto.

— Ora, ora — esclareceu a matrona, sem rebuços —, o carro não escolhe o passageiro. Lucila, por enquanto, não passa de uma boneca, ingênua. Olvidará a loucura praticada e aceitará a realidade, abençoando-nos, mais tarde, a interferência. O casamento, acima de tudo, é um negócio. Não admito venha ela preferir um vagabundo a um cavalheiro da estirpe de meu irmão. Casei-me em obediência a meu pai. Agora, creio haver chegado o instante em que devo ser obedecida.

Teódulo silenciou.

Seria inútil argumentar com aquela vontade férrea.

Enquanto Anacleta auxiliava a jovem enferma, Helena e o amigo atravessaram o dia refletindo no acontecimento traçado para a noite.

Marcelo não faltou à palavra.


Na hora justa, elegante e bem posto, alcançou o jardim, encontrando o suposto benfeitor da véspera a esperá-lo no isolado recinto verde, onde ele e Lucila costumavam sonhar.

Abraçou-o Teódulo, imperturbável.

— Trago o coração pulando no peito — disse o rapaz, tremendo de ansiedade —; acaso, os deuses me favorecem?

— Como não? — respondeu, cordial, o intendente de Opílio — os imortais nunca desprezam a juventude…

— E Lucila? — atalhou o recém-chegado, impaciente.

— Ela e a mãezinha virão ter conosco. O avô deseja que o assunto do casamento seja carinhosamente examinado. Ninguém se oporá, desde que os pombinhos se entendam e sejam felizes.

Marcelo esfregou as mãos, contente, e comentou, espontâneo:

— Oh! a glória enfim!… O amor vitorioso uma herança polpuda!…

— Sim, realmente — afirmou o amigo, com indefinível inflexão de voz —, receberás a herança que, naturalmente, será justo esperares da vida.


O moço fitou as janelas iluminadas do casarão magnífico e, voltando-se para o interlocutor, exclamou, encantado:

— Oh! como passa o tempo devagar!… Teódulo, serás recompensado. Dar-te-ei bons cavalos e bolsa farta! conta comigo. Sou o homem mais ditoso da Terra!…

Enlaçado por Marcelo, que transbordava alegria, o companheiro concordou, muito calmo:

— Sim, graças aos deuses, vejo-te no lugar que te compete.

Solicitou ao rapaz aguardasse alguns instantes e demandou o interior doméstico, alegando a necessidade de comunicar-se com as senhoras.

Decorridos alguns minutos, Teódulo reapareceu com uma salva de prata, em que duas taças de primorosa beleza ladeavam gracioso recipiente de vinho, exclamando para Volusiano:

— Celebremos nosso triunfo! Mãe e filha não tardam. Em poucos momentos, as tochas brilharão.

O líquido espumou, convidativo, e o rapaz aceitou a taça que Teódulo lhe oferecia.

— Por Dioniso! o protetor do vinho, da Natureza e da felicidade! — saudou o aventureiro de Massília, embriagado de esperança.

— Por Dioniso! — repetiu o companheiro sem pestanejar.


Marcelo sorveu a bebida até à última gota, contudo, quando tentou repor o copo no lugar primitivo, sentiu que um fogo indefinível lhe queimava a garganta. Quis gritar, mas não conseguiu. Por alguns instantes, guardou a impressão de que a sua cabeça rodopiava inexplicavelmente sobre os ombros. Não mais se aguentou nas pernas e caiu desamparado no florido piso de mármore, ferindo a nuca.

Teódulo inclinou-se, auxiliando-o a situar-se em decúbito dorsal.

Rouquenhos gemidos escapavam-lhe do peito.

Cravou no envenenador os olhos injetados, a fuzilarem de ódio e amargura, em meio das sombras, e, tentando expulsar a baba sanguinolenta que lhe escorria da boca, indagou em voz sumida:

— Porque me matas… covarde?…

— Esperavas a proteção dos deuses — replicou Teódulo, cínico —, e a morte é a herança que os imortais reservam aos homens de tua laia.

— Malditos!… malditos!…


Foram essas as suas derradeiras palavras, porque, a breve tempo, inteiriçaram-se-lhe os membros e cadaverizou-se-lhe o semblante numa triste carantonha.

O assassino afastou-se, ligeiro, ao encontro de alguém que o observava, por trás de frondosa tília.

Era Helena, que sorriu satisfeita, à informação de que tudo fora consumado.

Acompanhou o amigo, até ao minúsculo pavilhão que as trepadeiras abafavam, e, à claridade mortiça de uma tocha, contemplou o cadáver ainda quente.

— Era um belo homem! — comentou, insensível — poderia ter sido amado e feliz se soubesse conservar o pé no degrau em que nasceu.

Permutou inolvidável olhar com o agente de suas decisões, qual se estivessem selando, sem palavras, mais um escuro compromisso moral, e afastou-se.


Quando a noite se fez mais avançada, o próprio Teódulo, com o traje característico dos escravos da casa de Vetúrio, abandonou o jardim conduzindo um fardo, em grande carrinho de mão, comumente utilizado em serviços de higiene.

Afastou-se, cauteloso, evitando o contato com os transeuntes retardatários, e atravessou, aparentemente tranquilo, vasta extensão da via pública, até alcançar a margem do rio.

As brisas que sopravam do Tibre balsamizaram-lhe o cérebro atormentado.

Aí descansou, preocupado e cismático. A Lua minguada parecia uma lanterna que se imobilizara no céu, a fim de espreitar-lhe a consciência culpada…

Refletiu maduramente, fitando, acabrunhado, o pequeno acervo de carne fria a que Volusiano se reduzira…


Os mistérios da vida e da morte fustigaram-lhe o espírito. Terminaria a existência no túmulo? Horas antes, vira Marcelo deslumbrado pela alegria de viver. Aquelas mãos, porém, que ele observara nervosas e quentes, estavam agora geladas e inertes. A boca palradora quedara-se hirta. Algumas gotas de veneno conseguiriam eliminar um homem para sempre?

Dolorosa inquietação aflorou-lhe nalma.

Haveria justiça no aniquilamento do próximo, sem maior investigação?

Estariam Helena e ele em condições de reprovar alguém?

Buscava o remorso corroer-lhe o pensamento, contudo, opôs-lhe resistência.

Procurando fugir de si mesmo, caminhou para o Tibre, centralizou a atenção no corpo das águas móveis e durante largos minutos esperou uma oportunidade para desfazer-se da carga.


Quando imensa mole de nuvens cobriu a Lua empobrecida, adensando as sombras em torno, ergueu-se, lesto, e, descobrindo o cadáver, arrojou-o à corrente líquida.

Em seguida, mais aliviado, tomou o caminho de volta a casa.

No dia imediato, a vítima foi encontrada. Todavia, no anfiteatro, em cujos bastidores deixara numerosos amigos, quem não se recordava de que Marcelo vivia dominado, entre o vinho e a aventura? A morte dele, por isso, foi interpretada por acidente sem maior importância, mesmo porque os despojos foram recolhidos a reduzida distância da casa de Aprígia, de cuja mocidade e atrativos se fizera fervoroso admirador.

A notícia espalhou-se, rápida, não tardando a penetrar o domicílio de Vetúrio, onde a jovem Lucila foi tomada de intraduzível angústia.

Helena, que contava com os efeitos do acontecimento isolou-a num quarto particular, onde a moça, aflita e desarvorada, se rendeu a deplorável depressão orgânica.

Por três dias, amparada pela genitora e por Anacleta, demorou-se em absoluta inconsciência, abeirando-se da morte.

Pouco a pouco, no entanto, emergiu da prostração.

O vigor juvenil superara o abatimento íntimo.

Embora triste e desencantada, Lucila tornou a alimentar-se, recuperando as cores de saúde que lhe aformoseavam o rosto.


E, percebendo-lhe as melhoras positivas, a filha de Vetúrio pôs-se de novo em campo na execução gradual do plano que lhe obscurecia a desalmada cabeça.

Pretextando a necessidade de atender a diversas solicitações de amigos gauleses, comunicou a Opílio a deliberação de realizar algumas visitas, pedindo-lhe informações sobre a família de Jubélio Carpo.

O velho mostrou-se desiludido.

Esclareceu tratar-se de antigo proprietário rural, cuja casa se erguia, sólida, havia muitos anos, na .

Conhecera Jubélio na juventude, mas perdera-o de vista. Ignorava-lhe a sorte e acreditava que a filha devia desistir de semelhante procura.

Helena, porém, era demasiado decidida para desanimar. E tomando o carro, em companhia de Teódulo, buscou a residência, segundo a indicação.

Acolhidos atenciosamente, os visitantes foram conduzidos por um rapaz imberbe a enorme salão, onde o chefe da família lhes ofereceu agradável recepção.


O administrador de Vetúrio, com a palavra, expôs a finalidade que os levava até ali. Reportou-se à magnanimidade de Jubélio, que se transformara em benfeitor de um amigo, entremeando a apresentação com perguntas respeitosas.

O anfitrião, que exibia o rosto rubicundo de um homem amadurecido no uso e no abuso do vinho, ouviu, amavelmente, e explicou:

— Devo dizer-lhes, antes de tudo, que meus pais faleceram, faz mais de dez anos. Sou Saturnino, o primogênito, e atual responsável pelos negócios da família.

Diante de uma ligeira observação de Teódulo, exalçando a bondade dos genitores, falou, sarcástico:

— Meus pais realmente foram campeões da alforria indébita. Se fossem chamados a governar, teriam empobrecido o Império Romano. Aliás, várias vezes foram acusados de nazarenos, porque a benevolência neles era qualquer coisa semelhante à loucura.

Os recém-chegados compreenderam, de pronto, com que espécie de comerciante iriam entrar em contato.


O empregado de Opílio aventurou uma pergunta sobre o velho afinador de Lião, ao que Saturnino ajuntou, apressado:

— Dos assentamentos em nosso poder, sei que Basílio, escravo de nossa casa, foi afastado das obrigações habituais, sob compromisso, como alguns outros servidores cujo paradeiro desconhecemos.

Estampou enigmático sorriso e acrescentou:

— Nossos interesses têm sido vilmente explorados. Há mais de dez anos venho procurando corrigir grandes erros e sustar clamorosas usurpações.

Imprimindo imensa doçura na voz, Helena ponderou, muito calma:

— Reconheço que não teremos qualquer dificuldade para um bom entendimento. Acontece que Basílio, hoje velhinho, é nosso valioso cooperador na Gália Lugdunense. Tamanhos serviços devemos a ele e tanto se aflige o nosso admirável colaborador com os débitos do passado, que prometemos providenciar a transferência da dívida para nós outros.


Os olhos de Saturnino iluminaram-se, de súbito.

Com inequívocos sinais de ambição e alegria, respondeu, entusiasmado:

— Por Júpiter! ainda existe honestidade na Terra! É a primeira vez que encontro um devedor preocupado em auxiliar-nos. Não oporemos qualquer embargo à transação. Basílio será definitivamente liberado.

Rogou licença para afastar-se alguns instantes e, logo após, trouxe consigo a documentação existente.

Os visitantes não regatearam.

Saturnino ajuntou à importância legal significativa quantia de juros, e Teódulo, a um sinal da companheira, pagou todo o montante, sem pestanejar.


Na posse de elementos comprobatórios do resgate, os dois se retiraram e, em caminho, Helena dirigiu-se ao companheiro, explicando:

— Agora, temos o velho patife em nossas mãos. Ele e a filha não nos escaparão. Meu plano está progredindo regularmente. Avancemos para os novos fatos. Combinarei com meu pai o teu regresso imediato à colônia. Serás o emissário de uma carta minha a Taciano, implorando-lhe a vinda urgente a Roma, em companhia de Blandina. Tomarei por pretexto a enfermidade de Lucila, que pintarás para a imaginação dele como estando em processo de morte gradativa. Estou convencida de que meu esposo atenderá. Calcularemos o tempo preciso para voltarmos a Lião, antes que ele possa cruzar as águas. Aportando aqui, não mais nos encontrará, de vez que instruirei meu pai a fim de justificar o nosso retorno precipitado, a conselho médico, numa tentativa suprema de salvar a doente. Achar-nos-emos, assim, em Lião, suficientemente desembaraçados para o trabalho punitivo. Conseguirei algumas cartas importantes para incentivar a perseguição aos nazarenos e poderemos apresentar o afinador como escravo fugido e revolucionário perigoso. Agitaremos as autoridades governamentais. Com a documentação que possuímos, o filósofo e a filha estão naturalmente liquidados.


Meditou, cabisbaixa, por alguns momentos, e concluiu:

— Assim, quando Taciano e Blandina estiverem de regresso a casa, serão surpreendidos pelo serviço já terminado.

O amigo, espantado, concordou, presto:

— Efetivamente; o projeto está perfeito. Helena silenciara.

Teódulo deitou-lhe os olhos assombrados, sem saber se fora invadido pela admiração ou pelo medo.

A breves minutos, o carro estacou ante os jardins de Vetúrio.

Anoitecia…

O crepúsculo tisnava-se de espessa neblina, semelhante ao nevoeiro moral que envolvia aquelas almas em sombra.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

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Atos 3:6

E disse Pedro: Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo o Nazareno, levanta-te e anda.

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