Ave, Cristo!
Versão para cópiaFim de luta
Depois de alguns dias de meditação, na dependência da igreja, Taciano entendeu-se com o velho Ênio, que lhe anotou as ponderações, atencioso.
Embora cego, não se conformava em pesar ao orçamento da instituição. Não sabia como agradecer o devotamento de Pudens, que se fizera credor do seu melhor carinho. Se pudesse, ali permaneceria ao lado dele, a servi-lo com dedicação e respeito, até ao fim dos dias que lhe restassem na Terra. Entretanto, não se achava só. Precisava cuidar do futuro de Quinto Celso e, em razão disso, não lhe cabia demorar-se.
Contudo, acentuava triste, não desejava tornar à casinha do bosque. As reminiscências da filha atassalhavam-lhe o coração. A ausência de Blandina trouxera-lhe um vácuo irremediável.
Confiaria, desse modo, a Ênio os valiosos arquivos de Basílio e venderia a residência, os carros e os cavalos. Com o produto da transação, pagaria as dívidas em que se empenhara, transferindo-se com o filho para Roma.
Tinha por lá a filha mais velha. Lucila nunca se afinara integralmente com ele, mas isto não a levaria a trair a voz do sangue. Era rica e decerto se compadeceria da situação a que fora arrojado. Indubitavelmente não lhe negaria proteção, quando lhe visse a penúria.
Pretendia, assim, colocar-se sob o patrocínio dela, em companhia do filho adotivo, cuja idade reclamava atenção.
Em Roma, com as relações de que ainda julgava dispor, situaria o rapaz em condições honrosas para aguardar dignamente o futuro…
Pudens escutou-lhe os planos e não se opôs à realização deles.
Reiterou-lhe, porém, a sua amizade e simpatia, ofertando-lhe os préstimos. Porque a aventura de tão longa viagem para recomeçar a vida? A igreja poderia incumbir-se, discretamente, da educação de Celso, e ele mesmo, Taciano, não estaria sem trabalho. Havia doentes a consolar, imensidade de serviços a fazer…
O viúvo de Helena, contudo, não renunciara, de todo, ao orgulho de classe. Alcançara alguma tolerância, mas achava-se ainda longe do verdadeiro desprendimento de si mesmo. Não exporia Celso ao flagelo das perseguições periódicas. Amava-o bastante para arrojá-lo, sem defesa, à desconsideração social. Senti-lo-ia mais seguro na grande metrópole.
Possuía em Roma não apenas a filha, que, certamente, lhes garantiria a subsistência, mas também poderosos amigos, com marcada influência na Corte.
Contaria com os elos do passado para encaminhar o filho adotivo na vida pública.
Quinto Celso era senhor de primorosa inteligência. Ligara-se a ele pelos mais íntimos laços do carinho e da confiança. Estimava-o com excessos de zelo, de ternura… Desde o instante em que o recebera das mãos de Lívia, de partida para as regiões da morte, nele descobrira uma joia valiosa para o escrínio vivo de sua alma. Habitualmente, refletia no mistério da comunhão sublime e perfeita em que se entrelaçavam. Tinha a ideia de haver reencontrado um amor celeste que o tempo não conseguira apagar. Ouvindo-o, embevecido, julgava, muitas vezes, que recuperara a companhia paternal. Aquela sensatez na apreciação da vida, aquela cultura polimórfica e aquelas facilidades de expressão, características da conversação do filho adotivo, recordavam-lhe os inesquecíveis entendimentos com Quinto Varro nos jardins da residência do padrasto. A graça e a lógica, a compreensão e a sabedoria inata eram as mesmas. Inexplicavelmente, passara a raciocinar pela cabeça do jovem, nos grandes momentos de luta. Buscava nele, instintivamente, a palavra final nos assuntos graves e a orientação adequada no caminho espinhoso. Amava-o com todos os recursos afetivos de sua alma obstinada e bravia, mas leal e sincera. Somente por ele queria agora viver e porfiar nas lides amargas do mundo.
Como relegá-lo, pois, a incerto destino em Lião? Ênio verificou que não lhe competia argumentar. O Cristianismo ainda era considerado fora da lei. As represálias de ordem política caíam invariavelmente de surpresa sobre o ânimo dos adeptos. Não seria lícito, pois, forçar uma solução tendente a favorecer-lhe os pontos de vista.
Celso, convidado a opinar, asseverou que somente lhe interessava o contentamento paterno. Seguiria Taciano com a fidelidade de sempre.
O infortunado patrício, desse modo, passou do plano à ação.
Vendeu a casa, as bigas e os animais que lhe pertenciam ao novo senhor da antiga Vila Vetúrio, entretanto, o dinheiro recebido de Álcio mal chegou para o pagamento dos débitos contraídos. Restava-lhe apenas o suficiente para a viagem.
Ainda assim, não se lhe modificou o projeto.
Lião asfixiava-o.
A saudade de Blandina e a cegueira inesperada constringiam-lhe o coração. Desejava retirar-se dali, expandir-se, desalojar o próprio pensamento e tudo esquecer.
Pudens, no entanto, generoso e precavido, entendeu-se com Celso e deu-lhe uma carta para um amigo humilde, mas sincero, que morava na via de Óstia. O pai adotivo levava reduzidas possibilidades. Talvez precisassem do concurso de alguém, antes do primeiro contato com a viúva de Galba. Assim, na hipótese de qualquer dificuldade, poderiam recorrer a Érato Marcelino, velho cristão abandonado pela família, que se refugiara na fé, vivendo entre a renúncia e a caridade.
O rapaz recolheu as instruções prazerosamente. Desse modo, não estaria sozinho para superar os obstáculos. Para não melindrar o pai, guardou a missiva, cuidadoso, e as despedidas se fizeram comoventes.
Zarpando de Massília, ligeira galera deixou-os em Óstia, que ainda ostentava os belos monumentos do porto de Trajano.
O cego, apoiando-se no moço, respirava os ares da pátria com manifesta alegria.
Os recursos escasseavam. Contudo, ouvindo as entusiásticas referências de Celso quanto à formosa baía hexagonal que o mencionado imperador mandara construir, recomendou ao filho adotivo procurasse a moradia de Fúlvio Espêndio, um companheiro da mocidade que, segundo informações recebidas na Gália, ali se recolhera em soberba chácara.
Espêndio naturalmente os receberia de bom grado.
Recordava-lhe a figura imponente nos jogos e a alegria espontânea com que se entregava às libações, depois dos concursos bem ganhos.
O reencontro ser-lhe-ia valioso.
Decerto, o amigo dar-lhe-ia pousada condigna e providenciaria adequada condução que os levasse confortavelmente a Lucila…
Enquanto meditava, conversando consigo mesmo, Celso, norteado pelos esclarecimentos de vários transeuntes, bateu à entrada de graciosa vila, encravada no centro de tranquilo pomar.
Um escravo bem posto veio atender.
Esperançado, Taciano tomou a palavra e perguntou pelo amo, enunciando a sua posição de companheiro do pretérito que não o abraçava havia longos anos.
Dai a momentos, um patrício de rosto menos simpático, tipo acabado da decadência, apareceu, coxeante e desleixado.
Mirou os visitantes, detidamente, e, depois de estampar fria expressão de desprezo que gelou Quinto Celso, indagou, irritadiço:
— Que desejam?
— Oh! é a mesma voz!… — gritou o filho de Varro, estendendo instintivamente os braços. — Fúlvio, meu amigo, reconheces-me? Sou Taciano, o velho aliado das competições…
O romano recuou aborrecido e bradou:
— Que insolência! Por Júpiter, nunca te vi!… não comungo com a peste…
Iludido pela própria confiança, o recém-chegado, retomando o apoio nos ombros do filho, explicou-se um tanto desapontado:
— Não te recordas de nossos exercícios em casa de Vetúrio, meu padrasto e meu sogro? Tenho ainda a impressão de ver-te manejando o gládio reluzente ou então comandando a biga ligeira, que voava ao galope de teus belos cavalos brancos…
— Não passas de reles impostor! — tornou Espêndio encolerizado. — Taciano é um homem da minha condição. Vive honradamente nas Gálias. É um patrício. Jamais me apareceria em tua execrável miséria. Gaulês imbecil! Com certeza, abusaste do meu antigo companheiro para extorquir-lhe informações com que invadir-me a residência e assaltar-me!… Biltre! Vagabundo! Deves ser algum nazareno extraviado, conduzindo até aqui este jovem ladrão!… Rua! Rua!… Ponham-se daqui para fora!… para fora!…
Fúlvio, possesso, indicava-lhes a praça pública, enquanto o amigo arruinado enxugava o pranto copioso que lhe fluía dos olhos mortos.
Quando o portão metálico foi cerrado pelo dono da casa com grande violência, o desencantado viajante voltou sobre os mesmos passos em que se havia dirigido até ali…
O moço, adivinhando-lhe a dor, abraçou-o, com mais ternura, como a reafirmar-lhe que ele, Taciano, não se achava só.
Agradecido, o infortunado pai de Blandina, esboçando a resignação e a humildade no rosto, observou:
— Em verdade, meu filho, não tenho agora outro amigo senão tu mesmo. O ouro e a posição costumam mostrar a amizade, onde a amizade não existe. É impossível que Fúlvio não me reconhecesse… Sou hoje, porém, uma sombra do campo social. Perdi tudo… o dinheiro, a mocidade, a saúde e o renome familiar… Sem tais predicados, receio que a própria filha me desconheça…
Ante a dolorida inflexão daquela voz, o rapaz tentou enveredar-se pela estrada do otimismo e da esperança.
Que o pai não se inquietasse. Ele, Celso, estava moço e forte. Trabalharia por ambos. Nada lhes faltaria. Quanto à hospedagem por algum tempo, trazia recomendações de Pudens para um velho amigo deste. Érato, segundo os esclarecimentos do benfeitor de Lião, devia morar em ponto muito próximo. Se Taciano concordasse, não precisariam recorrer à proteção da viúva de Galba. Viveriam singelamente os dois. Conseguiriam alguma casinha humilde em que pudessem recomeçar. As relações de Ênio em Roma poderiam auxiliá-los, com a necessária segurança…
O pai adotivo anuiu, reconfortado, explicando que o seguiria com o maior prazer, entretanto, nada poderia assentar em definitivo, enquanto não se entendesse convenientemente com Lucila, para nortear-se dentro dos novos rumos.
Não seria justo alhear-se da filha.
Se encontrasse nela o acolhimento que esperava, suavizariam as agruras da sorte e Celso obteria os mestres que ele idealizara em suas paternais esperanças. Contudo, na hipótese de a filha mostrar-se endurecida e ingrata, render-se-iam ambos às circunstâncias e reiniciariam a luta, conforme as aflições que o destino lhes ditasse.
Enquanto conversavam, o moço guiava-o, estrada afora como se fora velho conhecedor da via de Óstia.
Desejoso de amenizar-lhe as agruras, o rapaz procurava distraí-lo descrevendo-lhe as magnificências do pôr do sol e todos os aspectos interessantes que se lhe deparavam.
Taciano sorria.
Guardava a impressão de rever pelos olhos da memória a paisagem banhada na luz crepuscular.
Avançaram longo trecho de caminho, quando se abeiraram de mísero pardieiro restaurado.
Atento aos informes de Ênio, o moço convenceu-se de que haviam atingido o domicílio de Érato.
Entretanto, sentiu-se como quem já houvera estado ali, antes. As paredes humildes, o teto inclinado para o chão, a porta rústica, tudo lhe parecia familiar.
Aquele era o mesmo tugúrio de Lisipo de Alexandria, onde Quinto Varro encontrara Corvino pela primeira vez. O velho Lisipo conhecera igualmente a palma do martírio, partindo, como tantos, ao encontro do Mestre da Cruz, mas a pequenina construção, embora passasse de cristão a cristão, continuava a ser abençoada oficina de serviço à fé.
No passado, Varro não pudera conduzir o filhinho querido às reuniões evangélicas, como pretendia, pois que Cíntia exercia sobre ele a vigilância materna… Sofrera longos anos de saudade e flagelação moral, atravessara o sacrifício e a própria morte, mas soubera resignar-se e esperar.
O tempo premiava-lhe a constância…
Pela misericórdia do Senhor, tornara à existência corpórea, retomara o veículo da carne e, Espírito eterno metamorfoseado em Quinto Celso, reassumira a direção do destino de Taciano, impelindo-o para Jesus, consoante o seu antigo ideal…
Cerca de quarenta e quatro anos haviam passado desde que Taciano renascera… e o trabalho do amor continuava, diligente e sublime.
A choupana de Lisipo, qual ponto marcante de sua batalha espiritual, era a mesma… Simples como a serenidade inalterável do Cristo e acolhedora como a sua doutrina de luz…
Extasiado, Celso descreveu para o cego a beleza pura daquele ninho de humildade e, tão emocionado se revelou, que o pai adotivo supôs comovidamente haverem encontrado naquele pouso um minúsculo palácio, escondido sob a copa de florido arvoredo…
Estranhamente feliz, o rapaz bateu à porta.
Um velho de semblante calmo veio abrir.
O moço fez mudo sinal, dando-lhe a entender a sua condição de adepto do Evangelho, e o rosto do ancião abriu-se em largo e luminoso sorriso.
Abraçou os recém-chegados com palavras de carinhoso e fidalgo acolhimento.
E, enquanto Celso se referia ao noticiário de Ênio Pudens, Taciano sentou-se num banco rústico, sentindo-se envolvido por uma tranquilidade que, havia muito, desconhecia.
A brisa fresca, penetrando pelas janelas, parecia acariciadora mensagem da Natureza.
Dois sobrinhos de Érato, Berzélio e Máximo, ambos escultores, presentes na sala humilde, partilhavam a conversação.
O dono da casa lera a missiva de Ênio e regozijava-se. Era um companheiro de muitos anos. Conheciam-se desde a infância.
Achava-se ao dispor de Celso e Taciano em tudo o que lhes pudesse ser útil.
O rapazinho explicou então que o pai e ele necessitavam de asilo até o dia seguinte, quando se avistariam com uma parenta que talvez pudesse ajudá-los. Pretendiam fixar residência na grande metrópole, mas viam-se naturalmente deslocados.
O anfitrião mandou servir ligeiro repasto de pão, azeite e legumes e o entendimento prosseguiu, fraternal.
O genro de Vetúrio, que intimamente não aderira ao Cristianismo, para alegrar o filho adotivo escutava os comentários, sorrindo. Observava Celso tão inexplicavelmente entusiasmado que, de modo algum, se animaria a perturbá-lo. O velho, os sobrinhos e o rapaz afinavam-se com tal perfeição que davam a ideia de serem velhos conhecidos no mais íntimo reencontro.
Máximo e Berzélio abnegados cultores da Boa Nova, salientavam as dificuldades da vida em Roma. Surgira nova crise de violência e inquietação. A derrota do imperador Valeriano, escandalosamente aprisionado pelos persas, criara atmosfera ameaçadora para os núcleos cristãos.
Egnácio Galieno, o filho do imperador humilhado, subira ao poder. Pessoalmente, tinha simpatia pelo Cristianismo torturado, da qual, pouco depois, ofereceria públicas demonstrações. Mas, no rigor dos conflitos sociais, o novo imperante devia curvar-se aos desejos das classes dominadoras. A força dos editos de 257 e 258, que geraram tremenda e cruel repressão aos serviços do Evangelho, reaparecera com bastante vigor. Potentados e autoridades, como de costume, atribuíam os desastres políticos do Império à ira dos deuses, revoltados com o imenso proselitismo cristão.
A fúria dos perseguidores, porém, amainava-se, à frente das famílias cristãs mais importantes, para recrudescer diante dos pobres e dos pequeninos.
Os cárceres jaziam repletos.
O anfiteatro de Vespasiano estava oferecendo funções sucessivas.
Os anciães e mentores da Igreja recomendavam particularmente aos escravos e aos plebeus pobres evitar ajuntamentos na via pública.
Inúmeros senhores, congregados na faina de coibir a expansão evangélica, não vacilavam em denunciar os servidores menos favorecidos como inimigos da ordem pública, exigindo represálias e punições.
Considerando a probabilidade de ações subversivas, os tribunais regurgitavam de magistrados e demagogos.
Segundo a opinião do patriciado em decadência, os cristãos que pregavam a fraternidade eram arguidos de responsáveis pela onda de pensamento renovador.
As festas em louvor de Galieno demorar-se-iam ainda por tempo indeterminado.
O governo, por seus dignatários mais representativos, desejando entreter o povo impressionado com as vitórias de Sapor, promovera variadas exibições.
Além das preces públicas, ante a imagem de Júpiter, do sacrifício de animais no Capitólio, das fartas distribuições de azeite e de trigo, das corridas eletrizantes e das lutas ferozes entre gladiadores de nomeada, a matança de cristãos menos classificados nas esferas sociais prosseguia em sinistros espetáculos noturnos.
Não seria mais aconselhável permanecessem os dois viajantes da Gália convenientemente reclusos, até que a tormenta cessasse?
Ante a pergunta do anfitrião, que permanecia no ar, Taciano lembrou a necessidade de ganharem o centro urbano, sem demora. Competia-lhe aparecer, no Aventino, na manhã do dia imediato.
E porque Máximo perguntasse a Quinto Celso qual era a opinião dele, o moço respondeu, bem humorado:
— Nada temo. Tenho dois grandes amores: Jesus e meu pai. Como não pretendo perder meu pai, estarei muito feliz com a vontade de Nosso Senhor que nos uniu. Se realizarmos nossos desejos, estaremos juntos e, se algum sofrimento aparecer no caminho, não nos separaremos.
A observação conquistou o sorriso de todos e o próprio Taciano, feliz por haver encontrado no mundo alguém que o amava assim tanto, mostrou no semblante sinais inequívocos de reconforto e contentamento.
Caíra a noite, e o céu se recamara de um sem número de iriantes estrelas.
À claridade de duas tochas a reduzida assembleia comentou, ainda, por bastante tempo, a respeito dos árduos trilhos da Boa Nova, detendo-se em considerações especiais sobre os mártires que, por mais de dois séculos, vinham tombando em serviço à Humanidade.
Taciano, silencioso, tudo ouvia, com discrição e respeito, até que Marcelino ofereceu aos hóspedes a enxerga limpa e modesta, em que deviam repousar.
Na manhã seguinte, puseram-se ambos em caminho.
Avançaram esperançosos pela via Ostiense e estavam prestes a entrar na cidade quando, nas adjacências da Pirâmide de Céstio, notou Celso compacto ajuntamento. Duas pobres mulheres haviam sido presas sob enorme algazarra popular. Os gritos: “às feras”, “às feras”, partiam da turba ameaçadora.
O moço abraçou o pai, com o cuidado de quem se propunha defender um tesouro, e vararam a massa.
De informação a informação, ganharam o Aventino e tomaram a direção do Templo de Diana, em cujos arredores não tiveram dificuldade para localizar o magnífico palacete de Lucila.
Taciano sentia o coração precípite, na atormentada caixa do peito…
Como seria recebido? condoer-se-ia a filha do infortúnio em que o destino o arrojara?
Relacionou alguns pormenores da aristocrática vivenda de Vetúrio, onde passara a mocidade, e Celso confirmava-lhe as reminiscências, entre curioso e preocupado.
Atendidos no portão de acesso por um dos escravos que se incumbiam da jardinagem, foram por ele encaminhados ao átrio.
O viúvo de Helena indagou acerca de servidores que ali conhecera, em outro tempo, mas os seus velhos laços afetivos haviam desaparecido.
Solicitou a presença da senhora, mas, findos alguns instantes de espera, um mordomo irrepreensível veio avisar que Lucila estava ocupada, no ensaio de bailados importantes, e que, por isso mesmo, não recebia visitas.
Taciano, porém, insistiu.
Reportou-se à sua condição de pai e pronunciou nomes de família que obrigaram o interlocutor a reconsiderar a recepção desatenciosa.
O servo tornou à intimidade doméstica e, transcorridos alguns minutos, Lucila apareceu em companhia do tribuno Caio Perciliano, algo pálida, mas com indisfarçável expressão de ironia e indiferença a se lhe pintar no rosto castigado de cosméticos.
Celso observou-lhe o sarcasmo e teve medo.
Aquela não poderia ser a mulher que buscavam.
Lucila era o retrato da crueldade feminina, emoldurado na impudência.
Ela fixou o cego, comprimindo os músculos da face, enlaçou o amante num gesto felino e falou, zombeteira:
— Com que então sou procurada por ilustres parentes?
Somente ao ouvi-la, percebeu o genitor quão modificada deveria encontrar-se para dirigir-lhe a palavra com tanta malícia na voz.
Ainda assim, num esforço sacrificial para identificar-se, rogou, comovedoramente:
— Minha filha!… minha filha!… sou eu, teu pai!… estou cego! Recorro à tua proteção como um náufrago!…
Ela, todavia, não assinalou a dor que envolvia aquelas frases suplicantes. Desferiu fria gargalhada e disse ao companheiro:
— Caio, se eu não soubesse que meu pai está morto, naturalmente me enganaria.
— Não, Lucila! não morri! não me desconheças!… — bradou o genitor, angustiado — estou agora sozinho! não me abandones!… Ajuda-me pela memória de Blandina, que também já partiu!… Vim de Lião à tua procura… Tenho sofrido bastante! Acolhe-me por piedade! por amor aos deuses, por devotamento à que sempre patrocinou a nossa casa!…
A viúva de Galba não se traiu.
Com incrível dureza de coração falou ao tribuno, intrigado:
— Este velho deve ser algum louco da terra em que nasci. Blandina era realmente minha irmã que descansou sob o amparo dos imortais, segundo notícias que recebemos há dias.
E, com significativo entono, prosseguiu:
— Meu pai morreu em Baias, justamente quando tive a infelicidade de perder minha mãe.
O cego, entretanto, ajoelhou-se e suplicou:
— Filha, foge à injustiça e à maldade!… Em nome de nossos antepassados, desperta a consciência! não permitas que o dinheiro e os prazeres te anestesiem os sentimentos!…
Exasperada, Lucila cortou-lhe a palavra, gritando para um escravo próximo:
— Cróton! apressa-te! traze o cão de guarda!… Expulsa daqui estes ladrões gauleses!…
Imediatamente, selvagem mastim apareceu, feroz.
Precipitou-se rápido sobre Quinto Celso que abraçava Taciano, buscando preservá-lo, mas, quando pequena ferida surgiu, sangrando no braço do rapaz, Perciliano, incomodado, interferiu, recolhendo a fera.
Olhando os visitantes que se retiravam, cabisbaixos, o moço cochichou aos ouvidos da amante:
— Querida, não transformemos isto aqui num tribunal. Procedamos com sabedoria. Esta bela vivenda não é para os desagradáveis misteres da justiça. Tranquiliza-te. Se estes vagabundos conhecem-te a família, podem realmente ameaçar-nos a ventura. Serão corrigidos a tempo…
E, despedindo-se, acrescentou:
— Serão presos. O anfiteatro, nas grandes festas, é a nossa máquina de limpeza.
Lucila sorriu com a expressão de uma gata reconhecida e Caio passou a acompanhá-los.
Taciano, surpreendido e indignado, não teve lágrimas para chorar. O desejo inútil de vingança obcecava-lhe o pensamento. O amor que ainda consagrava à primogênita transformara-se, de repente, em ódio roaz. Se pudesse — pensava —, mataria a própria filha, crendo que esse era o único recurso para quem como ele havia ajudado a gerar um monstro.
Celso, porém, afagando-lhe a cabeça, enquanto caminhavam, induzia-o à calma e ao perdão. Voltariam à casa de Marcelino. Recomeçariam a luta de outro modo.
Escutando-o, o desventurado patrício pouco a pouco sossegou a própria mente e lembrou o dia em que ele mesmo mandara soltar um cão bravio sobre o próprio pai que o visitava carinhosamente.
Na acústica da memória, ouviu, de novo, os gritos de Silvano, pedindo socorro, e, na tela íntima, como se as retinas agora funcionassem para dentro, reviu a fisionomia angustiada de Quinto Varro a implorar-lhe, em vão, entendimento e misericórdia.
O retorno ao pretérito doía-lhe ao coração…
Acabrunhado, registrava as palavras de Celso que o impeliam à bondade e ao esquecimento do mal e, admitindo estar sob o guante da justiça celeste, por fim desafogou em lágrimas a opressão da alma.
A lembrança do passado alterara-lhe, porém, o íntimo. Algo lhe renovara o campo mental.
Com surpresa para si mesmo, passou do ódio à comiseração.
Reconheceu que Lucila, tanto quanto ele próprio na juventude, trazia o sentimento intoxicado de negras ilusões.
Pobre filha! — refletia, amargurado — quem lhe servirá de instrumento à dor necessária do futuro?
Desciam os dois, abraçados e tristes, vigiados pela astúcia de Perciliano; mas quando se mostraram suficientemente distantes da principesca residência, o tribuno, invocando o auxílio de pretorianos na via pública, denunciou-os como cristãos relapsos e contumazes ladrões, asseverando que lhe haviam assaltado o domicílio.
Enredados de surpresa, Taciano e o rapaz foram detidos sem consideração.
Tentando restabelecer a verdade, o cego levantou dignamente a cabeça e clamou:
— Guardas, protesto! Eu sou um cidadão romano.
Um dos assalariados de Caio prorrompeu em gargalhadas e observou:
— Que valioso histrião para o teatro! Representaria admiravelmente o papel de algum patrício degradado.
Não valeram frases fortes do irreconhecível genro de Vetúrio.
A breves instantes, a multidão chocarreira e preguiçosa os envolveu. Ironias e impropérios foram vociferados a esmo.
E, humilhados e mudos, Taciano e Celso, de corpo fatigado e dolorido, foram trancafiados em velhos subterrâneos do Esquilino, que jaziam repletos de escravos cristãos e mendigos infelizes, considerados como trânsfugas sociais.
Para Taciano, que tinha os olhos amortalhados em noturna sombra, os quadros exteriores não se mostravam fundamentalmente transformados, mas Celso, embora firme na fé, verificou, assombrado toda a angústia daqueles corações relegados ao labirinto dos cárceres, avaliando a extensão dos padecimentos deles.
Aqui e ali, velhos deitados gemiam, dolorosamente, homens esquálidos encostavam-se a paredes enegrecidas cobrindo o rosto com as mãos, mulheres andrajosas abraçavam crianças semimortas…
Todavia, acima dos gemidos casados ao cheiro fétido, cânticos em surdina elevavam-se, harmoniosos.
Os cristãos agradeciam a Deus a graça da dor e da flagelação, regozijando-se com a palma do sofrimento.
Celso encontrou suave encanto naqueles hinos, e Taciano, entre a revolta e o tormento moral, perguntava a si mesmo de que milagroso poder estaria revestido o profeta galileu para sustentar, acima do tempo, a fidelidade de milhares de criaturas que sabiam louvá-lo, em pleno infortúnio, com absoluto olvido da miséria, da aflição e da morte…
Dois guardas corpulentos, providos de lanternas e de chuços, conduzindo-os a um cubículo, conversavam, animados.
— Felizmente, todos os prisioneiros serão liquidados amanhã — informava um deles —; a febre maligna reapareceu. Tivemos hoje trinta mortos!
— Eu sei — resmungou o outro —, os coveiros estão alarmados.
E, sarcástico, acentuou:
— Admito que as próprias feras recusarão tanta pestilência.
— As autoridades estão agindo com sabedoria — disse o interlocutor —; o espetáculo, como sabes, contará com alguns animais africanos, entretanto, para que o povo não se impressione com os enfermos, teremos postes e cruzes, em que os doentes sejam aproveitados como tochas vivas.
Taciano, desesperado, tentou ainda a última reação.
— Soldados — clamou, digno —, não existem, acaso, juízes em Roma? é possível prender os cidadãos sem motivo justo e condená-los, sem exame?
Um dos soldados imediatamente lhe respondeu à pergunta com violento empurrão, localizando-os, por fim, numa cela estreita e úmida.
Quinto Celso, auxiliado pelos mortiços raios da luz que de galerias afastadas chegava até eles, encontrou alguns trapos que se amontoavam no chão, à guisa de cama, e rogou ao pai adotivo descansassem um pouco.
Daí a instantes, um carcereiro de fisionomia selvagem veio trazer a ração do dia, alguns pedaços de pão negro e água poluída que o rapaz, sedento, bebeu a goles largos.
Conversaram ambos, longamente, reportando-se o jovem aos imperativos da conformação e da paciência, que o cego escutava, constrangido, como se devera sorver o fel da mais deslavada injustiça, sem direito à mínima reação.
Muito mais tarde, quando julgaram haver chegado a noite, dormiram enlaçados um ao outro, tocados de inquietantes perspectivas…
No dia imediato, porém, Celso amanheceu febril.
Acusava dores por todo o corpo, tinha sede e cansaço.
Taciano, aflito, apelou para o carcereiro, suplicando-lhe medicação adequada, mas não obteve senão água lodosa que o moço tragava, sofregamente.
O filho de Varro, de alma ansiada, passeou o pensamento pelos tempos idos, relembrando a casa farta e os dias venturosos, refletindo, entretanto, com mais intensidade nas duras provas que lhe haviam castigado os pais queridos. Como pudera o genitor sobreviver, por tantos anos, às tempestades morais que lhe desabaram sobre o destino?
Experimentou imenso remorso pelos dias que perdera, entronizando a si mesmo no mentiroso altar da vaidade…
Como pudera crer-se superior aos outros homens?
Ponderou o martírio de quantos como ele mesmo estariam reclusos naqueles subterrâneos infectos, garroteados pela perseguição que não mereciam…
Ainda que lhe não fosse possível aceitar o Cristianismo, porque não se decidira a penetrar o desventurado campo da miséria do seu tempo? Quantos escravos tinha visto, amargando pavorosas aflições, junto de filhinhos doentes ou quase mortos? quantos vezes proferira ordens iníquas, tiranizando enfermos, no serviço rural? Teve a impressão de que velhos servidores se levantavam, em sua própria mente, e riam-se agora de sua dor…
A respiração ofegante de Celso atribulava-o.
Porque a febre lhe poupava o corpo, preferindo-lhe o filho do coração? porque não nascera ele, Taciano, entre escravos misérrimos? A servidão ter-lhe-ia sido um bálsamo. Achar-se-ia então eximido das terrificantes recordações que lhe infernavam a consciência.
Com as lágrimas a lhe saltarem dos olhos, afagava Celso, consolando-o…
Algumas horas passaram, marcando expectação e tortura, quando todos os reclusos receberam ordem de remoção.
Abertas as grades, saíram, grupo a grupo, sob os gritos dos guardas que cuspinhavam pragas e insultos. Os mais fortes vinham algemados, com extensas feridas nos pulsos, todavia, a maior parte deles constituía-se de enfermos cansados, de mulheres subnutridas, de crianças esqueléticas e velhos trêmulos.
Ainda assim, todos os prisioneiros sorriam, contentes… É que tornavam ao sol e ao ar puro da Natureza. O vento fresco na via pública reanimava-os…
Celso sentiu prodigiosamente reavivadas as energias. Recobrou o bom ânimo e guiava o pai com a ternura de sempre. Contagiado pela sublime esperança que transparecia do rosto de todos os companheiros, revelou ao cego a irradiante e geral alegria.
Ninguém ignorava o destino próximo.
Sabiam que, à semelhança de um rebanho encaminhado ao abate, não lhes cabia aguardar senão o extremo sacrifício no matadouro. Mas, revelando a certeza numa vida mais alta, os cristãos avançavam, de cabeça erguida e serena, com a humildade e o perdão a se lhes estamparem no semblante, parecendo estranhos às frases escarnecedoras dos soldados, verdadeiros magarefes empedernidos no ofício da morte.
Depois da marcha forçada, avizinharam-se do anfiteatro, onde imundo recinto os aguardava para o espetáculo noturno.
Celso, deslumbrado, contemplou o Anfiteatro Flaviano, que se erguia imponente, depois da valiosa restauração mandada efetuar por Alexandre Severo.
A fachada, dividida em quatro pisos, ornava-se nos três primeiros com meias colunas dóricas, jônicas e coríntias, entre as quais se abriam arcadas, que nos dois andares médios alojavam primorosas estátuas. Tudo emprestava austera grandeza àquele monumento arquitetônico.
Carros suntuosos, liteiras, quadrigas e bigas rodeavam o edifício.
Quem observasse, desprevenidamente, semelhante colosso que poderia imortalizar a glória de uma raça, não suspeitaria de que, ali, um grande povo não sabia senão cultivar a ociosidade e a orgia, a brutalidade e a morte.
Um tribuno de fisionomia execrável leu algumas ordens aos sentenciados do dia, enquanto pretorianos de coração enrijecido ameaçavam os velhinhos cujo passo se fazia mais lento na direção do cárcere.
Os seguidores do Evangelho, contudo, pareciam extremamente distantes do quadro que inspirava revolta e sofrimento.
Homens esfarrapados abraçavam-se felizes e mulheres de feições macilentas osculavam os filhos com o entusiasmo de quem se aprestava para o encontro com a felicidade perfeita.
Não haviam podido cantar no trajeto entre a masmorra e o anfiteatro, mas assim que se viram unidos numa cela enorme, da qual deviam marchar para a morte, entoaram hosanas ao Cristo, com o júbilo de criaturas eleitas para o esplendor de triunfo supremo, em que iriam receber a coroa da imortalidade.
De outras prisões, chegaram novos contingentes. E dentre os recém-chegados, Celso, feliz, descobriu Érato Marcelino.
O amigo de Ênio fora detido, na noite da véspera, quando ouvia o Evangelho, no cemitério de Calisto.
O reencontro constituía uma bênção.
Até mesmo Taciano, que se mantinha circunspecto e angustiado, experimentou súbito reconforto.
O ancião da Via Ostiense narrava, com a ventura a sorrir-lhe nos olhos, como fora recolhido à masmorra, e reafirmava o seu reconhecimento ao Céu pela graça de lhe ser permitido receber a vitória espiritual através do martírio.
Ante a curiosidade alegre de todos os que o rodeavam, exibiu pequeno fragmento de um rolo ensebado e leu as belas palavras da primeira missiva do apóstolo 1ts
— “Regozijai-vos sempre”!
Bem humorado, informou, contente:
— Irmãos, da minha existência de quase oitenta anos, este pedaço dos Sagrados Escritos é tudo o que me resta…
E acentuou:
— Rejubilemo-nos!… Quem vive no Evangelho, encontra a Divina Alegria… Dos milhões de chamados neste século, fomos nós dos escolhidos! Louvemos a glória de morrer à maneira do óleo que se queima na mecha para que a luz resplandeça! As árvores mais nobres são reservadas à formação do pomar, o mármore mais puro é destinado pelo artista à obra-prima!…
Num arroubo de alma, observou:
— Os grãos mais sadios da fé viva transformam-se, nos dentes das feras, em alva farinha para que não falte o pão da graça à mesa das criaturas!… Cresça em nós a esperança, pois está escrito: “Sê fiel até à morte, e eu te darei a coroa da vida.”
Aqueles apontamentos provocaram radiosa floração de felicidade em todos os semblantes.
A assembleia andrajosa e extática parecia tomada de infinita ventura.
Érato, levantando o ânimo de Celso com as suas palavras de coragem, erguia a voz, associando-se aos cânticos de regozijo.
Taciano, silencioso, perguntava, a si mesmo, por que motivo fora trazido ao testemunho dos cristãos, quando, em verdade, nunca lhes esposara os compromissos…
Que irresistível destino o arrebatava, assim, para aquele Cristo de que sempre fugira, deliberadamente? porque se enredara com os “galileus” de tal sorte que não lhe restava outra alternativa senão a de comungar com eles no sacrifício? Por que decisão dos imortais se afeiçoara tanto a Quinto Celso que, no fundo, era um rapaz de origem anônima, passando a amá-lo e a querê-lo, qual se lhe fora filho do coração?
Concentrado reconstituía o pretérito, indagando, indagando…
Não mais dispunha, entretanto, de muito tempo para o solilóquio mental.
Lá fora, aglomerava-se a multidão.
A noite avizinhava-se, fria e sem nuvens.
Começara o vozerio na cávea do monumental edifício, ecoando nos alicerces.
À medida que se adensavam as sombras, crescia, rumoroso, o movimento popular.
Elevou-se gradativamente a gritaria da massa que, em se casando com a música de alaúdes, tímbales e pandeiretas, dava agora para ensurdecer.
Os prisioneiros, porém, que somente deveriam comparecer na arena, no encerramento do espetáculo, oravam e cantavam, quando algum deles, mais esclarecido, não ocupava a atenção dos ouvintes com exortações comoventes e encorajadoras, recordando a glória de Jesus Crucificado e o exemplo dos mártires na fé.
Depois de variados jogos, em que muitos lutadores perderam a vida, e em seguida às danças exóticas, o cenário se modificou.
Postes e cruzes, revestidos de substâncias resinosas, foram levantados à frente de quase cem mil espectadores delirantes.
Os cristãos doentes foram separados daqueles que deveriam tomar parte na exibição com movimentos livres e, dentre eles, Quinto Celso, pelo seu aspecto enfermiço, foi violentamente arrancado às mãos paternas.
De olhos confiantes, o moço pediu a Érato guiasse Taciano até ao poste onde ele se encontrasse, e, enquanto dois rios de lágrimas deslizavam pelas faces do filho de Varro, a este recomendou o jovem, intrépido:
— Coragem, meu pai! Estaremos juntos… A morte não existe e Jesus reina para sempre!…
Depois de pesados minutos de expectação, os presos foram tangidos no rumo da arena festiva, mas, como se estranho poder celeste lhes vibrasse nas cordas da alma, louvavam o Senhor que os esperava no Céu.
Homens de rosto hirsuto e velhos cambaleantes, aleijados e mendigos, anciãs aureoladas de neve e mulheres em quem a maternidade se revelava exuberante, jovens e crianças de semblante risonho cantavam felizes, firmemente esperançados no sermão das bem-aventuranças.
Apoiado nos ombros frágeis de Érato, Taciano registrava em si mesmo inesperada e sublime renovação.
Aquelas almas dilaceradas pela injustiça do mundo realmente não adoravam deuses de pedra.
Para inspirar semelhante epopeia de amor e renúncia, esperança e felicidade, à frente da morte, Jesus deveria ser o Enviado Celeste, a reinar soberanamente nos corações.
Mergulhara-se-lhe a alma em misteriosa alegria…
Sim, finalmente reconheceu, naqueles instantes supremos, que, semelhante a prolongado e tremendo temporal, o tempo passara por ele, destruindo os ídolos mentirosos do orgulho e da vaidade, da ignorância e da ilusão…
A ventania do sofrimento deixara-lhe as mãos vazias.
Tudo perdera…
Estava só.
Mas, naqueles momentos breves, encontrara a única realidade digna de ser vivida — Cristo, como o ideal de humanidade superior que lhe cabia ir ao encontro e alcançar…
Lembrou-se de Blandina, de Basílio e de Lívia, guardando a impressão de que os três se achavam, ali, estendendo-lhe os braços em sorrisos de luz.
Recordou Quinto Varro, com indizível carinho.
Reencontraria o genitor, além da morte?
Nunca experimentara tamanha saudade de seu pai como naquele minuto rápido… Daria tudo para revê-lo e para afirmar-lhe à ternura que, por aqueles instantes da morte, a vida, efetivamente, não lhe fora vã!…
Chorava, sim! no entanto, pela primeira vez, chorava de compreensão e reconhecimento, emotividade e alegria…
Recordou quantos lhe haviam ferido o coração, no curso da existência, e, como se estivesse a reconciliar-se consigo próprio, a todos enviou pensamentos de jubilosa paz…
Os estreitos passos daquela redentora caminhada de alguns metros haviam, porém, terminado…
Amparando-se em Marcelino, escutou os gritos selvagens dos espectadores, que se apinhavam nas bancadas do pódio e dos menianos, nas galerias, nos patamares, nos vomitórios e nas escadas.
Milhares e milhares de vozes reclamavam, em coro, animalescas:
— Às feras! Às feras!…
Contudo, intimamente renovado, Taciano sorria…
Após ligeira busca, Érato encontrou o poste em que Celso fora ligado para o sacrifício e cumpriu o que prometera, reaproximando pai e filho para o instante supremo.
— Meu filho! meu filho!… — soluçava Taciano, feliz, tateando o corpo de Celso, cujas mãos de carne não mais poderiam acariciá-lo — eu senti o poder do Cristo em mim!… agora, eu também sou cristão!…
Exultando de satisfação íntima, por haver atingido a realização do maior e do mais belo sonho de sua vida, Celso bradou:
— Louvores sejam entoados a Deus, meu pai! Viva Jesus!…
Nesse mesmo instante, soldados ébrios atearam fogo aos lenhos, que se inflamaram facilmente.
Gemidos, apelos discretos, rogativas de socorro e orações abafadas, partidas de vários pontos, fizeram-se ouvir por entre labaredas crescentes que, ao crepitar da madeira, se desdobravam no ar, semelhantes a serpentes inquietas, proclamando a vitória da iniquidade, enquanto leões, panteras e touros bravios penetravam a espaçosa arena, incentivando o furor da turba, sedenta de sensação e de sangue.
Ajoelhando-se diante de Quinto Celso que o contemplava, embevecidamente, o cego compreendeu que o fim havia chegado e rogou:
— Meu filho, ensina-me a orar!…
As chamas, porém, ganhavam o corpo do rapaz, a contorcer-se.
Celso, contudo, reprimindo o próprio sofrimento, falou, calmo, banhado em paz:
— Meu pai, façamos a prece de Jesus, que Blandina pronunciava!… Pai nosso que estás nos Céus… oremos em voz alta…
As feras esfaimadas abocanhavam corpos e estracinhavam vísceras humanas, aqui e ali, mas, como se vivesse agora tão somente para a fé que o iluminava à última hora, Taciano, genuflexo, repetia a comovedora oração:
— Pai nosso, que estás nos Céus, santificado seja o teu nome… Venha a nós o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na Terra como no Céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje, perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores… não nos deixes cair em tentação e livra-nos do mal, porque teu é o Reino, o Poder e a Glória para sempre!… Assim seja!… (Mt
O romano convertido não mais ouviu a palavra do filho.
A cabeça de Celso tombara para a frente, desgovernada…
Taciano ia erguer a voz, quando patas irresistíveis rojaram-no ao saibro argenteado da arena.
Turvou-se-lhe o cérebro, mas, em seguida ao choque rápido, qual se o Cristo lhe enviasse milagrosa claridade às pupilas mortas, recuperou a visão e identificou-se ao lado do seu próprio corpo, que jazia imóvel numa poça de areia sanguinolenta.
Procurou Quinto Celso, mas, oh! divina felicidade!… Viu que do poste de martírio emergia, não o filho adotivo, mas seu próprio pai, Quinto Varro, que lhe estendia os braços, murmurando:
— Taciano, meu filho, agora poderemos trabalhar, em louvor de Jesus, para sempre!…
Deslumbrado, reparou que as almas dos heróis abandonavam os despojos, envolvidas em túnicas de luz por entidades que mais se assemelhavam a formosos arcanjos aéreos.
Beijou as mãos paternas como alguém que saciava saudades terrivelmente sofridas e tentava algo dizer, quando viu Blandina, Basílio, Lívia e Rufo, cantando de alegria no grupo de Espíritos venturosos em que formavam Corvino, Lucano, Hortênsia, Silvano e outros paladinos da fé, todos a lhe dirigirem sorrisos de confiança e de amor!…
Por cima do corpo negro do , desafiando-lhe as trevas, centenas de almas radiantes seguravam lirial estandarte, em que brilhava a saudação tocante e sublime:
— Ave, Cristo! os que vão viver para sempre te glorificam e saúdam!
Deslumbrante caminho descerrara-se nos céus…
Embriagado de júbilo, Quinto Varro colou o filho de encontro ao peito e, rodeado pela grande assembleia dos amigos, avançou para o alto, como um lutador vitorioso que conseguira subtrair ao pântano de sombra um diamante castigado pelos cinzéis da vida, para fazê-lo brilhar à plena luz…
Cá em baixo, a crueldade gritava, em regozijo.
A chusma delirava na contemplação de corpos incendidos, no sinistro banquete da carnificina e da morte, mas, ao longe, no firmamento ilimitado, cuja paz retratava o amor inalterável de Deus, as estrelas fulguravam, apontando aos homens de boa vontade glorioso porvir…
] (Nota do Autor espiritual) — Ap
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Mateus 6:9
Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
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Apocalipse 2:10
Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais tentados; e tereis uma tribulação de dez dias. Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida.
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I Tessalonicenses 5:16
Regozijai-vos sempre.
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