CAPÍTULO XIII

Características dos Milagres

Os milagres no sentido teológico
• Item 1 •
Na sua acepção etimológica, a palavra milagre (de mirari, admirar) significa: admirável, coisa extraordinária, surpreendente. A Academia a definiu assim: Um ato do poder divino contrário às leis conhecidas da Natureza.
Na acepção usual, essa palavra perdeu, como tantas outras, a significação primitiva. De geral que era, tornou-se de acepção restrita. No entender das massas, um milagre implica a ideia de um fato extranatural; no sentido teológico, é uma derrogação das Leis da Natureza, por meio da qual Deus manifesta o seu poder. Tal é, com efeito, a sua acepção vulgar, que se tornou o sentido próprio, de modo que só por comparação e por metáfora se aplica às circunstâncias ordinárias da vida.
Uma das características dos milagres propriamente ditos é o fato de ser inexplicável, realizando-se, por isso mesmo, com exclusão das leis naturais. E tanto essa é a ideia que se lhe associa que, se um fato miraculoso vem encontrar explicação, se diz que já não constitui milagre, por mais surpreendente que seja. O que, para a Igreja, confere valor aos milagres é justamente a origem sobrenatural deles e a impossibilidade de serem explicados. Firmou-se tão bem sobre esse ponto que toda assimilação dos milagres aos fenômenos da Natureza constitui para ela uma heresia, um atentado contra a fé, tanto assim que excomungou e até queimou muita gente por não ter querido crer em certos milagres.
Outro caráter do milagre é o fato de ser insólito, isolado, excepcional. Logo que um fenômeno se reproduz, quer espontânea, quer voluntariamente, é que está submetido a uma lei e, desde então, seja ou não conhecida a lei, não pode ser um milagre.

Os milagres no sentido teológico
• Item 2 •
Aos olhos dos ignorantes, a Ciência faz milagres todos os dias. Se um homem realmente morto for chamado à vida por intervenção divina, haverá verdadeiro milagre, por ser esse um fato contrário às Leis da Natureza. Mas, se em tal homem houver apenas aparência de morte, se lhe restar uma vitalidade latente e a Ciência, ou uma ação magnética qualquer, conseguir reanimá-lo, para as pessoas esclarecidas ter-se-á dado um fenômeno natural, mas, para o vulgo ignorante, o fato passará por miraculoso. Lance um físico, do meio de certas campinas, um papagaio elétrico e faça que o raio caia sobre uma árvore e certamente esse novo Prometeu será tido por armado de diabólico poder. Se, porém, Josué houvesse detido o movimento do Sol, ou antes, da Terra, aí sim, teríamos verdadeiro milagre, visto não existir nenhum magnetizador dotado de poder suficiente para operar semelhante prodígio.
Os séculos de ignorância foram fecundos em milagres, porque se considerava sobrenatural tudo aquilo cuja causa não se conhecia. À medida que a Ciência revelou novas leis, o círculo do maravilhoso se foi restringindo; mas como a Ciência ainda não havia explorado todo o campo da Natureza, larga parte dele ficou reservada para o maravilhoso.

Os milagres no sentido teológico
• Item 3 •
Expulso do domínio da materialidade pela Ciência, o maravilhoso se encastelou no da espiritualidade, no qual encontrou o seu último refúgio. O Espiritismo, ao demonstrar que o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, força que incessantemente atua em concorrência com a força material, faz que voltem ao âmbito dos efeitos naturais os que dele haviam saído, porque, como os outros, tais efeitos também se acham sujeitos a leis. Se for expulso da espiritualidade, o maravilhoso já não terá razão de ser e só então se poderá dizer que passou o tempo dos milagres. (Cap. I, item 18.)

O Espiritismo não faz milagres
• Item 4 •
O Espiritismo vem, pois, por sua vez, fazer o que cada ciência fez no seu advento: revelar novas leis e explicar, conseguintemente, os fenômenos compreendidos na alçada dessas leis. Esses fenômenos, é certo, se prendem à existência dos Espíritos e à intervenção deles no mundo material. Ora, dizem, é justamente nisso que consiste o sobrenatural. Mas, então, seria preciso provar que os Espíritos e suas manifestações são contrários às Leis da Natureza; que aí não há, nem pode haver, a ação de uma dessas leis.
O Espírito nada mais é do que a alma sobrevivente ao corpo; é o ser principal, visto que não morre, enquanto o corpo não passa de um acessório que se destrói. Sua existência, portanto, é tão natural depois, como durante a encarnação; está submetido às leis que regem o princípio espiritual, como o corpo está sujeito às leis que regem o princípio material; mas como esses dois princípios têm necessária afinidade, como reagem incessantemente um sobre o outro, como da ação simultânea deles resultam o movimento e a harmonia do conjunto, segue-se que a espiritualidade e a materialidade são duas partes de um mesmo todo, tão natural uma quanto a outra, não sendo, pois, a primeira uma exceção, uma anomalia na ordem das coisas.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 5 •
Durante a sua encarnação, o Espírito atua sobre a matéria por intermédio do seu corpo fluídico ou perispírito, dando-se o mesmo quando ele não está encarnado. Como Espírito, faz o que fazia o homem, na medida de suas capacidades; apenas, por já não ter o corpo carnal para instrumento, serve-se, quando necessário, dos órgãos materiais de um encarnado, que vem a ser o que se chama médium. Procede então como alguém que, não podendo escrever por si mesmo, se vale de um secretário, ou que, não sabendo uma língua, recorre a um intérprete. O secretário e o intérprete são os médiuns do encarnado, do mesmo modo que o médium é o secretário ou o intérprete de um Espírito.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 6 •
Já não sendo o mesmo no estado de encarnação o meio em que os Espíritos atuam e os modos por que atuam, os efeitos também são diferentes. Tais efeitos só parecem sobrenaturais porque se produzem com o auxílio de agentes que não são os de que nos servimos. Desde, porém, que esses agentes estão na Natureza e as manifestações se dão em virtude de certas leis, nada há de sobrenatural ou de maravilhoso. Antes de se conhecerem as propriedades da eletricidade, os fenômenos elétricos passavam por prodígios aos olhos de certa gente; a partir do momento em que se conheceu a causa, desapareceu o maravilhoso. Dá-se o mesmo com os fenômenos espíritas, que não saem mais das leis naturais do que os fenômenos elétricos, acústicos, luminosos e outros, que serviram de fundamento a uma imensidão de crenças supersticiosas.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 7 •
Entretanto, dir-se-á, admitis que um Espírito pode levantar uma mesa e mantê-la no espaço sem ponto de apoio; não é isso uma derrogação da lei da gravidade? – Sim, da lei conhecida. Conhecem-se, porém, todas as leis? Antes que se houvesse experimentado a força ascensional de certos gases, quem diria que uma pesada máquina, transportando vários homens, pudesse triunfar da força de atração? Aos olhos do vulgo, isso não pareceria maravilhoso, diabólico? Aquele que, há um século, tivesse proposto a transmitir um telegrama a 500 léguas e receber a resposta dentro de alguns minutos teria passado por louco; se o fizesse, teriam acreditado estar o diabo às suas ordens, porque então só o diabo era capaz de andar tão depressa. Hoje, no entanto, não só se reconhece possível o fato, como ele parece muito natural. Por quê, pois, um fluido desconhecido não teria a propriedade de contrabalançar, em dadas circunstâncias, o efeito da gravidade, como o hidrogênio contrabalança o peso do balão? É, com efeito, o que ocorre no caso de que se trata. (O Livro dos Médiuns, Segunda parte, cap. IV.)

O Espiritismo não faz milagres
• Item 8 •
Estando na Natureza, os fenômenos espíritas se hão produzido em todos os tempos; mas precisamente porque seu estudo não podia ser feito pelos meios materiais de que dispõe a ciência vulgar, permaneceram muito mais tempo do que outros no domínio do sobrenatural, de onde o Espiritismo agora os retira.
Baseado em aparências inexplicáveis, o sobrenatural deixa livre curso à imaginação que, a vagar pelo desconhecido, gera as crenças supersticiosas. Uma explicação racional, fundada nas Leis da Natureza, reconduzindo o homem ao terreno da realidade, fixa um ponto de parada aos transviamentos da imaginação e destrói as superstições. Longe de ampliar o domínio do sobrenatural, o Espiritismo o restringe até aos seus extremos limites e lhe derruba o último refúgio. Se é certo que ele faz crer na possibilidade de alguns fatos, não menos certo é que, por outro lado, impede a crença em muitos outros, porque demonstra, no campo da espiritualidade, a exemplo da Ciência no âmbito da materialidade, o que é possível e o que não o é. Todavia, como não alimenta a pretensão de haver dito a última palavra seja sobre o que for, nem mesmo sobre o que é da sua competência, ele não se apresenta como absoluto regulador do possível e deixa de lado os conhecimentos reservados ao futuro.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 9 •
Os fenômenos espíritas consistem nos diferentes modos de manifestação da alma ou Espírito, seja durante a encarnação, seja no estado de erraticidade. É pelas manifestações que produz que a alma revela sua existência, sua sobrevivência e sua individualidade; julga-se dela pelos seus efeitos; sendo natural a causa, o efeito também o é. São esses efeitos que constituem objeto especial das pesquisas e do estudo do Espiritismo, a fim de chegar-se a um conhecimento tão completo quanto possível da natureza e dos atributos da alma, como das leis que regem o princípio espiritual.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 10 •
Para os que negam a existência do princípio espiritual independente e, por conseguinte, negam a existência da alma individual e sobrevivente, a Natureza toda está na matéria tangível; todos os fenômenos que se referem à espiritualidade são, para esses negadores, sobrenaturais e, portanto, quiméricos. Não admitindo a causa, não podem admitir os efeitos e, quando estes são patentes, eles os atribuem à imaginação, à ilusão, à alucinação e se negam a aprofundá-los. Daí a opinião preconcebida que os torna inaptos a apreciar judiciosamente o Espiritismo, porque partem do princípio da negação de tudo que não seja material.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 11 •
Embora o Espiritismo admita os efeitos, que são a consequência da existência da alma, não se segue que admita todos os efeitos qualificados de maravilhosos e que se proponha a justificá-los e dar-lhes crédito; que se faça campeão de todos os devaneios, de todas as utopias, de todas as excentricidades sistemáticas, de todas as lendas miraculosas. Seria preciso conhecê-lo muito pouco para pensar assim. Seus adversários julgam opor-lhe um argumento sem réplica, quando, depois de terem feito eruditas pesquisas sobre os convulsionários de Saint-Médard, sobre os calvinistas das Cevenas, ou sobre os religiosos de Loudun, chegaram a descobrir fatos patentes de embuste, que ninguém contesta. Mas essas histórias serão, porventura, o evangelho do Espiritismo? Seus adeptos já terão negado que o charlatanismo haja explorado em proveito próprio alguns fatos? que a imaginação os tenha criado? que o fanatismo os haja exagerado muitíssimo? Ele não é mais solidário com as extravagâncias que se cometam em seu nome do que a Ciência com os abusos da ignorância e a verdadeira religião com os abusos do fanatismo. Muitos críticos julgam o Espiritismo pelos contos de fadas e pelas lendas populares, ficções daqueles contos. O mesmo seria julgar a História pelos romances históricos e pelas tragédias.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 12 •
Na maior parte das vezes os fenômenos espíritas são espontâneos e se produzem sem nenhuma ideia preconcebida da parte das pessoas com que eles se dão e que, em regra, são as que neles menos pensam. Existem alguns que, em certas circunstâncias, podem ser provocados pelos agentes denominados médiuns. No primeiro caso, o médium é inconsciente do que se produz por seu intermédio; no segundo, age com conhecimento de causa, de que resulta a classificação de médiuns conscientes e médiuns inconscientes. Estes últimos são os mais numerosos e se encontram com frequência entre os mais obstinados incrédulos que, assim, praticam o Espiritismo sem o saberem, nem quererem. Por isso mesmo, os fenômenos espontâneos têm capital importância, visto não se poder suspeitar da boa-fé dos que os obtêm. Dá-se aqui o que se dá com o sonambulismo que, em certos indivíduos, é natural e involuntário, enquanto em outros é provocado pela ação magnética. [1]
Quer esses fenômenos resultem ou não de um ato da vontade, a causa primeira é exatamente a mesma e em nada se afasta das leis naturais. Os médiuns, portanto, não produzem coisa alguma de sobrenatural; por conseguinte, não fazem nenhum milagre. As próprias curas instantâneas não são mais milagrosas do que os outros efeitos, já que resultam da ação de um agente fluídico, que desempenha o papel de agente terapêutico, cujas propriedades não deixam de ser naturais por terem sido ignoradas até agora. O epíteto de taumaturgos, dado a certos médiuns pela crítica ignorante dos princípios do Espiritismo é, pois, totalmente impróprio. A qualificação de milagres atribuída, por comparação, a esta espécie de fenômenos, somente pode induzir em erro sobre o verdadeiro caráter deles.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 13 •
A intervenção de inteligências ocultas nos fenômenos espíritas não os torna mais milagrosos do que todos os outros fenômenos devidos a agentes invisíveis, porque esses seres ocultos que povoam os espaços são uma das forças da Natureza, força cuja ação é incessante sobre o mundo material, tanto quanto sobre o mundo moral.
Esclarecendo-nos acerca dessa força, o Espiritismo nos dá a solução de uma imensidade de coisas inexplicadas e inexplicáveis por qualquer outro meio e que, em tempos recuados, passaram por prodígios. Do mesmo modo que o magnetismo, ele revela uma lei, se não desconhecida, pelo menos mal compreendida; ou, melhor dizendo, conheciam-se os efeitos, porque eles se produziram em todos os tempos, porém não se conhecia a lei, e foi o desconhecimento desta que gerou a superstição. Conhecida essa lei, desaparece o maravilhoso e os fenômenos entram na ordem das coisas naturais. Eis por que os espíritas não operam milagres quando fazem que uma mesa se mova sozinha, ou que os mortos escrevam, do mesmo modo que o médico não opera um milagre quando faz que um moribundo reviva, ou o físico, quando faz que o raio caia. Aquele que pretendesse fazer milagres com o auxílio desta ciência ou seria um ignorante do assunto ou um enganador de tolos.

O Espiritismo não faz milagres
• Item 14 •
Considerando-se que o Espiritismo repudia toda pretensão às coisas miraculosas, fora da sua esfera haverá milagres, na acepção usual desta palavra.
?igamos, primeiramente, que entre os fatos reputados milagrosos, ocorridos antes do advento do Espiritismo e que ainda ocorrem no presente, a maior parte, se não todos, encontram explicação nas novas leis que ele veio revelar. Esses fatos, portanto, se compreendem, embora sob outro nome, na ordem dos fenômenos espíritas e, como tais, nada têm de sobrenatural. Fique, porém, bem entendido que só nos referimos aos fenômenos autênticos, e não aos que, com a denominação de milagres, são produto de uma indigna charlatanice, com vistas a explorar a credulidade. Tampouco nos referimos a certos fatos lendários que podem ter tido, originariamente, um fundo de verdade, mas que a superstição ampliou até o absurdo. É sobre esses fatos que o Espiritismo vem projetar luz, fornecendo meios de separar a verdade do erro.

Deus faz milagres?
• Item 15 •
Quanto aos milagres propriamente ditos, Deus, sem dúvida, pode fazê-los, visto que nada lhe é impossível. Mas será que os faz? Ou, em outras palavras, derroga as leis que Ele mesmo estabeleceu? Não cabe ao homem prejulgar os atos da Divindade nem subordiná-los à fraqueza do seu entendimento. Contudo, em face das coisas divinas, temos, para critério do nosso juízo, os próprios atributos de Deus. Ao poder soberano, Ele reúne a soberana sabedoria, devendo-se, pois, concluir que nada faz de inútil. Por quê, então, faria milagres? Para atestar o seu poder, dizem. Mas o poder de Deus não se manifesta de maneira muito mais eloquente pelo grandioso conjunto das obras da Criação, pela sábia previdência que essa Criação revela, tanto nas mais gigantescas quanto nas mais insignificantes, e pela harmonia das leis que regem o mecanismo do Universo, do que por algumas pequeninas e pueris derrogações que todos os prestidigitadores sabem imitar? Que se diria de um engenheiro mecânico que, para provar a sua habilidade, desmantelasse um relógio construído pelas suas mãos, obra-prima de ciência, a fim de mostrar que pode desmanchar o que fizera? Seu saber, ao contrário, não ressalta muito mais da regularidade e da precisão do movimento da sua obra.
? questão dos milagres propriamente ditos não é, pois, da alçada do Espiritismo; mas, ponderando que Deus não faz coisas inúteis, a Doutrina emite a seguinte opinião: Não sendo necessários os milagres para a glorificação de Deus, nada no Universo se produz fora do âmbito das leis gerais. Deus não faz milagres, porque, sendo, como são, perfeitas as suas leis, não lhe é necessário derrogá-las. Se há fatos que não compreendemos, é que ainda nos faltam os conhecimentos necessários.

Deus faz milagres?
• Item 16 •
Admitindo que Deus houvesse alguma vez, por razões que não podemos apreciar, derrogado acidentalmente leis por ele mesmo estabelecidas, tais leis já não seriam imutáveis. Mesmo, porém, que semelhante derrogação seja possível, ter-se-á, pelo menos, de reconhecer que só Ele, Deus, dispõe desse poder; sem se negar ao Espírito do mal a onipotência, não se pode admitir que lhe seja permitido desfazer a obra divina, operando, de seu lado, prodígios capazes de seduzir até os eleitos, pois que isso implicaria a ideia de um poder igual ao de Deus. É, no entanto, o que ensinam. Se Satanás tem o poder de sustar o curso das leis naturais, que são obra de Deus, sem a permissão deste, é mais poderoso que a Divindade. Logo, Deus não possui a onipotência e se, como pretendem alguns, delega poderes a Satanás, para mais facilmente induzir os homens ao mal, falta-lhe a soberana bondade. Em ambos os casos, há negação de um dos atributos sem os quais Deus não seria Deus.
Esta a razão por que a Igreja distingue os bons milagres, que procedem de Deus, dos maus milagres, que procedem de Satanás. Como, porém, diferenciar um do outro? Seja satânico ou divino, nem por isso um milagre deixa de ser uma derrogação das leis emanadas unicamente de Deus. Se um indivíduo é curado por suposto milagre, quer seja Deus quem o opere, quer Satanás, não deixará por isso de ter havido cura. É preciso fazer ideia muito acanhada da inteligência humana pretender-se que semelhantes doutrinas possam ser aceitas nos dias de hoje.
Reconhecida a possibilidade de alguns fatos considerados miraculosos, deve-se concluir que, seja qual for a origem que se lhes atribua, eles são efeitos naturais de que se podem utilizar Espíritos encarnados ou desencarnados, como de tudo, como da própria inteligência e dos conhecimentos científicos de que disponham, para o bem ou para o mal, conforme neles predominem a bondade ou a perversidade. Um ser perverso, valendo-se do saber que haja adquirido, pode fazer coisas que passem por prodígios aos olhos dos ignorantes; mas quando tais efeitos dão em resultado um bem qualquer, seria ilógico atribuir-lhes uma origem diabólica.

Deus faz milagres?
• Item 17 •
Mas, dizem, a religião se apoia em fatos que não são explicados nem explicáveis. Inexplicados, talvez; inexplicáveis, é outra questão. Que sabe o homem das descobertas e dos conhecimentos que o futuro lhe reserva? Sem falar do milagre da Criação, o maior de todos sem contestação possível, já pertencente ao domínio da lei universal, não vemos reproduzirem-se hoje, sob o império do magnetismo, do sonambulismo, do Espiritismo, os êxtases, as visões, as aparições, as percepções a distância, as curas instantâneas, as suspensões de mesas, as comunicações orais e outras com os seres do mundo invisível, fenômenos conhecidos desde tempos imemoriais, tidos outrora por maravilhosos e que presentemente se demonstra pertencerem à ordem das coisas naturais, de acordo com a lei constitutiva dos seres? Os livros sagrados estão cheios de fatos desse gênero, qualificados de sobrenaturais; como, porém, se encontram fatos análogos e até mais maravilhosos ainda em todas as religiões pagãs da Antiguidade, se a veracidade de uma religião dependesse do número e da natureza de tais fatos, não se saberia dizer qual a que devesse prevalecer.

O sobrenatural e as religiões
• Item 18 •
Pretender-se que o sobrenatural é o fundamento indispensável de toda religião, que é a pedra angular do edifício cristão, é sustentar perigosa tese. Assentar as verdades do Cristianismo sobre a base exclusiva do maravilhoso é dar-lhe fraco alicerce, cujas pedras facilmente se soltam com o passar dos dias. Essa tese, de que se constituíram defensores eminentes teólogos, leva direto à conclusão de que, em dado tempo, já não haverá religião possível, nem mesmo a cristã, desde que se chegue a demonstrar que é natural o que se considera sobrenatural, visto que, por mais que se acumulem argumentos, não se conseguirá sustentar a crença de que um fato é miraculoso depois de se haver provado que não o é. Ora, a prova de que um fato não é uma exceção nas leis naturais é quando pode ser explicado por essas mesmas leis e que, podendo reproduzir-se por intermédio de um indivíduo qualquer, deixa de ser privilégio dos santos. Não é do sobrenatural que necessitam as religiões, mas do princípio espiritual, que elas confundem erradamente com o maravilhoso e sem o qual não há religião possível.
O Espiritismo considera a religião cristã de um ponto de vista mais elevado; dá-lhe uma base mais sólida do que a dos milagres: as leis imutáveis de Deus, que regem tanto o princípio espiritual como o princípio material. Essa base desafia o tempo e a Ciência, porque o tempo e a Ciência virão sancioná-la.
Deus não se torna menos digno da nossa admiração, do nosso reconhecimento, do nosso respeito, por não haver derrogado suas leis, grandiosas, sobretudo, pela imutabilidade que as caracteriza. Não há necessidade do sobrenatural para que se preste a Deus o culto que lhe é devido. A Natureza não é de si mesma tão imponente, a ponto de dispensar o que quer que seja para provar o poder divino? A religião encontraria menos incrédulos se, em todos os pontos, fosse sancionada pela razão. O Espiritismo nada tem que perder com semelhante sanção; ao contrário, só pode ganhar. Se alguma coisa o tem prejudicado na opinião de muitas pessoas, foi precisamente o abuso do maravilhoso e do sobrenatural.

O sobrenatural e as religiões
• Item 19 •
Se tomarmos a palavra milagre em sua acepção etimológica, no sentido de coisa admirável, teremos milagres incessantemente sob as vistas. Aspiramo-los no ar e os calcamos com os pés, porque tudo é milagre na Natureza.
Querem dar ao povo, aos ignorantes, aos pobres de espírito uma ideia do poder de Deus? Mostrem-no na sabedoria infinita que preside a tudo, no admirável organismo de tudo o que vive, na frutificação das plantas, na apropriação de todas as partes de cada ser às suas necessidades, de acordo com o meio onde ele é posto a viver. Mostrem-lhes a ação de Deus na vergôntea de um arbusto, na flor que desabrocha, no Sol que tudo vivifica. Mostrem-lhes a sua bondade na solicitude que dispensa a todas as criaturas, por mais ínfimas que sejam, a sua previdência, na razão de ser de todas as coisas, entre as quais nenhuma é inútil, no bem que sempre decorre de um mal aparente e temporário. Façam-lhes compreender, principalmente, que o mal real é obra do homem e não de Deus; não procurem amedrontá-los com o quadro das penas eternas, em que acabam não mais crendo e que os levam a duvidar da bondade de Deus; antes, deem-lhes coragem, mediante a certeza de poderem um dia redimir-se e reparar o mal que hajam praticado. Apontem-lhes as descobertas da Ciência como revelações das Leis Divinas e não como obras de Satanás. Ensinai-lhes, finalmente, a ler no livro da Natureza, constantemente aberto diante deles, nesse livro inesgotável, em que se acham inscritas em cada página a bondade e a sabedoria do Criador. Eles, então, compreenderão que um Ser tão grande, que com tudo se ocupa, que por tudo vela, tudo prevê, forçosamente dispõe do poder supremo. O lavrador o verá ao arar o seu campo, e o desventurado, nas suas aflições, o bendirá dizendo: Se sou infeliz, é por minha culpa. Então, os homens serão verdadeiramente religiosos, racionalmente religiosos, sobretudo, muito mais do que acreditando em pedras que suam sangue ou em estátuas que piscam os olhos e derramam lágrimas.

[1]N. de A. K.: O Livro dos Médiuns, Segunda parte, cap. V; Revista Espírita – exemplos: agosto e dezembro de 1865.

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