Na Seara do Mestre

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CAPÍTULO 28

A razão e a fé à luz dos evangelhos

Uma das grandes conquistas do neo-espiritualismo está na harmonia que veio estabelecer entre a razão e a fé, que, como é sabido, permaneciam, quais forças antagônicas, em perene conflito.

Como resultado dessa anomalia verificava-se outra, de não menos importância: o divórcio entre a Religião e a Ciência, cujas atividades se entrechocavam escandalosamente, dando mão forte ao materialismo, de um lado, e contribuindo, de outro, para o fomento de superstições e fanatismo.

A razão malsinada pelos crentes, e a fé ridicularizada pelos pensadores, determinavam um estado de confusão, do qual advinham funestas consequências atingindo todas as camadas sociais.

O Espiritismo veio pôr termo a essa perturbação, demonstrando o perfeito ajuste, os liames indissolúveis que unem a fé à razão, e, consequentemente, a Religião à Ciência.

Kardec, compilando e concatenando os postulados espiritualistas à luz da revelação, estabeleceu este belo aforismo: "Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade".

Nem pode deixar de ser assim. A fé que teme confrontos não é fé, pois o caráter desta virtude, tão encarecida nas páginas evangélicas, é, precisamente, o destemor, a energia latente que encerra e transmite àqueles que a cultivam. Tal valor deriva da natureza íntima da fé que percebe e sente a sua própria força. Ora, perceber é ato de raciocínio, portanto, não pode afastar-se da razão que é o instrumento do qual o Espírito se serve para investigar e assimilar a Verdade.

Por isso, na zona luminosa em que o novel espiritualismo pontifica, a razão e a fé acham-se irmanadas, caminham juntas como amigas inseparáveis que mutuamente se auxiliam, compreendendo as condições de interdependência em que se encontram. A relação natural entre ambas é de colaboração, e não de rivalidade. Tal é, de fato, a posição em que se acham aquelas duas expressões de energias anímicas, visto que Deus não dotou o Espírito de faculdades que reciprocamente se combatessem e anulassem. Não nos deu o sentimento para crer e o entendimento para repelir a crença. O coração não tem por função combater o cérebro; todos os órgãos agem para o mesmo fim, por isso que a vida física ou corpórea depende da sinergia, isto é, da simultaneidade ou concurso de ação de todos os instrumentos e aparelhos orgânicos.

O mesmo fenômeno se verifica no que respeita à vida psíquica. A fé que o sentimento aninha deve ser controlada pela razão. Deus, em seu amor e onipotência, equipou os Espíritos de modo que nada lhes faltasse para saírem vitoriosos na luta a sustentar contra tudo quanto possa embaraçar-lhes a caminhada pela senda gloriosa do progresso, na consumação do senso próprio da vida. Basta que se disponham à peleja com perseverança e denodo, para que a vitória lhes sorria. Através da luz alcançada pelo esforço pessoal, o caminho da redenção abre-se diante deles acenando-lhes com a liberdade, justo galardão dos que porfiam manejando a armadura espiritual: inteligência, vontade e sentimento.


* * *

Alega-se que a razão humana é falha, sujeita às conturbações passionais, conduzindo, como sói acontecer, o homem ao erro. Semelhante critério, assaz capcioso, faz que muita gente veja um perigo no uso da razão em se tratando de questões espirituais. É curiosa a exceção. Aconselha-se o raciocínio e a meditação em todas as circunstâncias, exceto no que concerne ao problema do destino e das altas finalidades da vida, quando tal matéria é precisamente aquela que mais de perto nos interessa, reclamando a mais ponderada reflexão e estudo, por isso que dela decorrem efeitos que nos atingem no presente, com reflexos seguros no porvir.

Com relação às falhas da razão humana, cumpre indagar: como sabemos disso, senão pela própria razão? Ora, se a nossa razão erra, é mediante o seu mesmo concurso que reconheceremos o erro e poderemos repará-lo. Logo, a razão é o instrumento que empregamos, tateando embora nas trevas da nossa ignorância, para descobrirmos a luz.

Demais, os poderes anímicos se desenvolvem pelo uso, qual acontece com os membros e os músculos da nossa estrutura física. A função faz o órgão — reza a sabedoria do prolóquio. A razão, pois, quanto mais utilizada, maior capacidade aquisitiva e poder de discernimento adquirirá.

Inversamente, quanto menos empregada, menores serão as suas possibilidades. A quem tem muito, mais ainda se lhe dará — ensina o Divino Mestre em linguagem alegórica, na "Parábola dos talentos".

Portanto, nada de temores vãos. Submetamos ao cadinho da razão todas as questões que nos afetam, especialmente as que se referem aos destinos do nosso "ser". A fé cega, baseada em alheia autoridade, precisa e deve ser substituída pela fé lúcida apoiada e alicerçada na legítima autoridade da razão própria de cada crente.

Racionalismo não é sinônimo de ateísmo como erroneamente se imagina. A moral racionalista ressuma de todos os livros evangélicos. Jesus jamais pretendeu fazer prosélitos passivos que aceitassem sem exame nem provas as doutrinas que predicava. A confirmação tácita do que ora dizemos ressalta do processo de ensino empregado pelo Excelso Educador. Seu método, eminentemente pedagógico, tem por escopo despertar e desenvolver nos educandos as faculdades psíquicas latentes. Basta considerarmos estas frases, por Ele várias vezes repetidas no remate das suas prédicas, para nos certificarmos deste asserto: "Quem tiver ouvidos de ouvir, ouça. Quem tiver olhos de ver, veja". Tais sentenças, bem expressivas, constituem veemente apelo ao raciocínio dos ouvintes; pode-se mesmo considerá-las como um cartel de desafio lançado à inteligência do auditório a que o Mestre se dirigia. Há ainda a consignar outras comprovações em abono do racionalismo cristão, destacando-se dentre elas a série de parábolas ensinadas pelo Senhor, encerrando, por meio das formas simples e sugestivas em que foram vazadas, as mais transcendentes moralidades, os mais edificantes ensinamentos. O sistema parabólico é essencialmente racionalista. Se Jesus fosse partidário do fideísmo, teria imposto por autoridade os princípios doutrinários que professava e difundia. Porém, jamais o fez. As muitas alegorias e semelhanças que imaginou para ilustrar os seus discursos, sobre o problema do "ser" e do destino, atestam cabalmente o seu processo racional de educação.

O racionalismo não colide absolutamente com a revelação, fonte preciosa que é de aprendizagem e fator destacado na obra da evolução humana. Ao contrário, serve-se dela como valiosíssimo subsídio na aquisição e conquista das virtudes que formam e consolidam os caracteres. É pela razão que podemos aquilatar do alto valor e importância das revelações. Sem o seu concurso, as revelações não seriam aproveitadas devidamente como propulsoras do progresso.

Sucederia com elas o que acontece com as sementes caídas em terreno estéril. Para os que raciocinam, um relâmpago que fende o negrume do presídio terreno é o bastante para fazer descortinar sublimes maravilhas até então ignoradas.

Newton, descobrindo a lei da atração universal, e Kardec, codificando e coordenando a consoladora Doutrina Espírita, são exemplos marcantes de duas mentalidades racionalistas habituadas a observar, deduzir e concluir, tirando de fenômenos banais e corriqueiros consequências e ilações extraordinárias. Que viu Newton? A queda duma maçã. Que viu Kardec? Uma pequena mesa acionada por inteligências do Espaço. No entanto, porque tiveram olhos de ver, da observação de ambos resultou verdadeira revolução no mundo da Física e no da Filosofia moral e religiosa.

A luz projetada por esses dois gênios espancou as trevas da ignorância, libertando o homem de velhas erronias e superstições, descortinando-lhe vastos e imensos horizontes, jamais imaginados.


* * *

Ainda em abono das nossas asserções, vamos citar uma passagem evangélica bem característica. Queremos reportar-nos ao caso de Tomé: Quando os apóstolos contaram a Tomé, que, durante sua ausência, o Senhor, redivivo, lhes aparecera conforme havia prometido, aquele retrucou:

"Só acreditarei vendo e tocando o seu corpo". Dias após, de novo Jesus se manifesta no meio deles, e, dirigindo-se ao discípulo incrédulo, então presente, disse-lhe: "Vem, apalpa-me e verifica se sou eu mesmo; um fantasma não tem carne nem ossos como eu tenho". Tomé, emocionado e confuso, cai de joelhos em terra, deixando escapar dos seus lábios a seguinte exclamação: "Meu Senhor! e meu Deus!". E Jesus acrescenta: "Agora crês, por que viste? Bem-aventurados os que não viram e creram". (João 20:24-29.) Os fideístas pretendem ver no episódio acima referido, e particularmente na frase de Jesus ora citada, o preconício da fé incondicional, da crença fundada no princípio de autoridade. Enganam-se, porém, redondamente. Precisamente o oposto é o pensamento do insigne Mestre. Bem-aventurados os que não viram e creram — é uma sentença profundamente sábia, que encerra a apologia do raciocínio em matéria de crença. Ensina que não é com os olhos que se crê, mas com a razão. Os que se louvam exclusivamente no testemunho dos sentidos são, em geral, crentes superficiais cuja fé não tem base sólida. Encarnam a figura exata daquela semente a que se refere a Parábola do semeador, que germinou no pedregulho, vindo a fenecer aos primeiros raios solares, porque não tinha raízes bastante profundas. Os sentidos nos levam a enganos e decepções sempre que desacompanhados do exame refletido e ponderado da razão.

Se Tomé fosse homem habituado ao raciocínio, tendo seguido e observado Jesus em sua peregrinação terrena, teria armazenado, em sua mente, dados e elementos mais que suficientes para não duvidar da promessa, sobretudo, do poder do Mestre para cumpri-la em seu devido tempo. A razão e a fé são forças morais que agem concomitantemente.

S. Paulo definiu a fé como — "a dedução do que não conhecemos através do que conhecemos". Portanto, a fé nasce da observação. É fruto de dedução e indução, processos estes de investigações genuinamente pedagógicas, porque racionais. Esta operação mental é que Tomé não soube fazer. A fé que resulta dos sentidos, e só nos sentidos se apoia, é ilusória, é uma espécie de miragem que se vai desvanecendo à medida que a inteligência firma o seu império. Daí o motivo do ceticismo e da incredulidade reinantes em nossa época.

No estado vigente de evolução intelectual, torna-se necessário mostrar as grandes realidades da vida imortal por meio de comprovações e testemunhos compatíveis com o grau de desenvolvimento atingido pela Humanidade contemporânea. A época das imposições, do autoritarismo, das ameaças e terrores passou, para não mais voltar, em que pese aos seus partidários. O magister dixit [O mestre falou] não encontra eco na mentalidade nova do século. Os velhos métodos, ora caducos, precisam ser, e serão fatalmente substituídos, para que se consiga fazer luz no que respeita aos magnos problemas da vida e do destino, de cuja ignorância decorrem a rebelião, a intranquilidade e as perturbações sociais, hoje espalhadas por toda a face do nosso orbe.

Bem-aventurados os que não viram e creram — isto é, bem-aventurados os que fundam a sua crença não no prestígio tumultuário dos sentidos exaltados, mas na força serena e calma da razão. É sabido que a constante exaltação sensorial determina o eclipse da razão. Por isso, a fé cega produz efeito diametralmente oposto àquele que resulta da fé iluminada e racional. Esta aproxima o homem de Deus e da sua justiça, gera convicção e otimismo, enquanto aquela produz fanatismo e descrença.

Quando Jesus fez que Pedro afirmasse três vezes que o amava, anulando assim as três negativas com que aquele apóstolo, em tempo, o renegaria, acrescentou: "Se realmente me amas, apascenta as minhas ovelhas".

Esta expressão do Senhor, com relação aos pecadores, deve ser tomada no sentido afetivo e carinhoso, nunca, porém, na acepção de irracionais, de seres passivos que se movem tangidos pelo cajado de um ovelheiro ou zagal. A Humanidade não é um rebanho, mas uma família de Espíritos, embora de relativa evolução, cônscios, todavia, das suas responsabilidades, no uso e gozo das nobres faculdades herdadas do Pai celestial, dentre as quais se sobreleva a razão.

Sempre que o Evangelho se reporta à fé, encarecendo o valor desta virtude, fá-lo considerando-a como a manifestação dum poder, duma força indómita capaz de obrar prodígios. "Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis aos sicômoros: transplantai-vos daí, e eles vos obedecerão.

Direis às montanhas: arredai-vos dos vossos fundamentos, e elas atenderão ao vosso apelo".

Tais expressões figuradas revelam a natureza da fé preconizada pelo Mestre. Trata-se duma potência íntima, apta a remover dificuldades insuperáveis aos olhos do vulgo. Ora, essa máscula energia não é produto de geração espontânea.

Há de ser, e realmente é, fruto de convicções muito profundas que constituíram objeto de prolongados estudos e de meditações acuradas.

"Tudo é possivel àquele que crê" — eis outro aforismo evangélico de grande alcance filosófico. É preciso, porém, não julgar a priori tais sentenças, emprestando-lhes um significado miraculoso ou fantasmagórico. Crer não se resume em aceitar. Entre estes dois verbos há um abismo de distância.

Aceitar é um ato de vontade mais ou menos discricionário.

Crer é perceber, é sentir uma realidade; é função do raciocínio, é, numa palavra, ato de assimilação consciente. Notemos bem esta diferença. Quem se dispõe a aceitar uma doutrina qualquer pode fazê-lo independente da aquiescência da razão e até do bom senso. Motivos de ordem vária induzem, por vezes, o indivíduo a aceitar ou rejeitar este ou aquele postulado, esta ou aquela asserção. A autoridade alheia, por exemplo, leva muita gente a adotar princípios sobre esta ou aquela matéria. O espírito de imitação e as sugestões do meio são fatores que, a seu turno, contribuem para tal.

Crer, no seu sentido real, é coisa muito diversa. Ninguém pode crer no que não entende, naquilo que não passou pelo cadinho da sua razão, recebendo, por meio dessa faculdade, a devida confirmação. Crer é compenetrar-se, é saturar-se da evidência das coisas concebidas e estruturadas na retorta duma razão trabalhada e afeita aos processos de discernimento e julgamento. Quanto mais racional é a crença, tanto mais profundas e radicadas são as convicções que gera no Espírito. Quem realmente crê está certo da veracidade daquilo que constitui objeto da sua crença. Não vacila, não titubeia, mantém-se firme, coerente e consequente em sua conduta, quaisquer que sejam as emergências e conjunturas da vida.

A crença é resultado de esforço intelectual, nasce das meditações, das experiências por vezes amargas e dolorosas, do recolhimento e da concentração de esforços dos poderes anímicos na pesquisa e investigação dos fatos que nos interessam.

Aceitar não é crer, assim como comer não é o mesmo que digerir. Podemos aceitar dez, vinte, cem mistérios ou dogmas, tidos como infalíveis, mas não podemos crer em nenhum. Aceitar é ato passivo, não demanda esforço mental; é tudo quanto pode haver de mais fácil e vulgar. Na sociedade em que vivemos, aceita-se muita coisa por mera convenção, comodismo ou interesse. O fim visado não é encontrar a verdade: é satisfazer às variadas formas do orgulho humano e gratificar os sentidos. Proliferam, por isso, os elementos acomodatícios que procuram ajustar-se à máquina social, simulando o que são e dissimulando o que na realidade não podem deixar de ser. Em aceitar, pode haver ou não haver sinceridade. Aceita-se de boa ou de má-fé. Quem crê está invariavelmente convencido, há sempre sinceridade na crença veraz, por isso que resulta do entendimento pessoal, portanto, do foro íntimo onde pontifica a consciência.

Meditemos nestas particularidades. O homem pode ser forçado a aceitar, nunca, porém, a crer. O aceitar é dos lábios, o crer procede das profundezas da alma.

Mais um pormenor importante: Há notável diferença nos efeitos que resultam do crer e do aceitar. Os que crêem reformam-se e se transformam continuamente. A fé é força incoercível que supera e remove todos os obstáculos, por maiores que sejam. Os que aceitam permanecem estacionários e petrificados, sem nenhuma alteração em seu estado e condições anteriores.

Tais são os motivos que justificam plenamente a sentença já comentada, do Divino Instrutor da Humanidade: Bem-aventurados os que não viram e creram.

Veneremos, pois, a razão, bendizendo a Deus por nos haver outorgado tão preciosa quão extraordinária faculdade. A luz do corpo são os olhos. A luz do Espírito é a razão.

Aqueles, os órgãos visuais, veem o exterior que nos cerca;

aquela, mediante a inteligência, vê o interior. E a verdade, como judiciosamente disse Flammarion, não está no que distinguimos com os sentidos. O que se observa no plano exterior são apenas reflexos e miragens. As realidades da Vida permanecem no interior, isto é, no invisível. O que vemos são efeitos cujas causas estão ocultas. Só a razão as pode perceber, só o coração as pode sentir. A razão é instrumento de Deus, para libertar e engrandecer as criaturas; a força e a astúcia são aprestos dos Césares de todos os tempos, que escravizam e envilecem os povos.

Proclamamos, com todo o entusiasmo e ardor que nos comunica a fé consciente que professamos e propagamos: Salve, Razão! Três vezes salve! Farol brilhante, foco potentíssimo cujo esplendor e majestade procedem do Céu como a própria luz dos astros, como a mesma luz do Sol que ilumina, aquece e vivifica a Humanidade!

Ave Razão — guia da nossa inteligência, escudo de nossa vontade, reguladora do nosso sentimento!




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João 20:24

Ora Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus.

jo 20:24
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