Na Seara do Mestre

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CAPÍTULO 3

A Parábola dos dois filhos

Um homem tinha dois filhos. Chamando o primeiro, disse-lhe: 'Filho, vai, hoje, trabalhar na minha vinha'. Este, porém, retruca: 'Não quero ir'. Mais tarde, tocado de arrependimento, foi. Chegando-se ao segundo, disse-lhe o mesmo, isto é: Vai trabalhar na minha vinha'. 'Irei, senhor', retrucou o filho, mas não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai?".

(MATEUS 21:2-8 a 31.)

Eis o conto evangélico em sua singeleza arrebatadora. Meditemo-lo. Comecemos analisando as personagens que nele figuram. Trata-se apenas de um pai e dois filhos.

Aquele, como imagem da Divindade, estes personificando os homens em geral. O pai dirige a ambos os filhos o mesmo apelo: Ide, hoje, trabalhar na minha vinha. Um deles acolhe favoravelmente o convite, prometendo atendê-lo, porém fica somente na promessa. Outro, rejeitando, de modo peremptório, o chamamento paterno, declara abertamente que não irá; mais tarde, refletindo, arrepende-se e vai. Qual dos dois fez a vontade do pai? Tal a pergunta.

A parábola põe em evidência as duas mentalidades religiosas de todos os tempos: a aparente e a real; aquela que se manifesta em intenções e promessas, em aparências e exterioridades, cultos e cerimoniais; e a que se revela em fatos concretos, no procedimento e na conduta retilínea ditada pela consciência dos crentes. Uma, que se pode, com justeza, comparar às parras, e outra, aos frutos abundantes e sazonados. Essas duas categorias de religiosos estão, pois, prefiguradas nos dois filhos: um que diz: "Já vou, meu pai", deixando, porém, de cumprir o prometido. Outro que se nega francamente a anuir à solicitação paterna; todavia, ulteriormente, refletindo, arrepende-se e vai.

Quando, pois, quisermos saber onde estão os cristãos, devemos procurá-los, não entre os que exteriormente se dizem tais, mas no meio daqueles cujos atos reflitam o espírito de justiça, tolerância, renúncia e fraternidade, únicos característicos que assinalam os verdadeiros discípulos de Jesus. É pelos frutos e não pelas ramas e folhas que se conhece a árvore. Res, non verba [Fatos e não palavras].

Encaremos, em seguida, outro aspecto importantíssimo deste modesto conto evangélico.

Notemos bem a atitude do pai daqueles dois filhos, pois essa atitude reflete claramente as condições em que os homens se acham em relação a Deus, o Pai comum de toda a Humanidade. Ele dirigiu aos filhos um simples e natural chamamento, e o fez de modo que eles pudessem, sem constrangimento, aceitá-lo ou não. Não prometeu recompensas e favores ao que o atendesse, nem punição ao que o desobedecesse. Concedeu-lhes liberdade de ação.

Espelha-se aí, nitidamente para os que tiverem olhos de ver, as relações em que estamos, nós, os homens, em face da Lei Natural que nos rege os destinos. A lei é clara e simples, serena e justa. Um apelo, apenas: "Vai, hoje, trabalhar na minha vinha", isto é, cumpre o teu dever; corrige-te, aperfeiçoa-te procurando conhecer-te a ti mesmo. Não faças a outrem o que não desejas que os outros te façam.

Ama o próximo como a ti mesmo, de vez que a cada um será dado segundo as suas obras, e não conforme a crença que adote, ou, ainda, as cerimônias que pratique. Naquele dia, muitos dirão: "Senhor, Senhor, nós profetizamos em teu nome, entoamos cânticos em teu louvor, expelimos demônios e obramos milagres invocando tua presença; mas eu lhes direi abertamente: Não vos conheço; apartai-vos de mim, vós todos que vivestes na iniquidade". (Mateus 7:22-23.) Ainda uma vez: Res, non verba.

São dignas de nota as lições desta historieta cuja simpleza condiz tão bem com a humildade e a sabedoria da escola cristã. Quanta nobreza e eloquência encerra a compostura do pai destes dois filhos! Na sua serenidade, vê-se que ele conhece profundamente o temperamento dos filhos e sabe a maneira eficaz de conduzi-los. Conhece também as consequências — decorrentes da desobediência — que recairão sobre eles. Age, por isso, como onisciente e onipotente. Não tem pressa: confia e espera. Não ameaça com penalidades os desobedientes, nem acena com prêmios e pagas para ser atendido e respeitado. Não quer servos nem lacaios: quer filhos que reflitam o caráter e as qualidades paternas.

Portanto, não age nem humilha: dá liberdade.

Repetimos: quanta nobreza e quanta excelência na atitude dessa figura paterna concebida e plasmada pelo Divino Mestre para nos instruir e esclarecer acerca das relações entre Deus e os homens! Está patente, neste transe da parábola, o livre-arbítrio relativo que gozamos. Em tal, importa a condição de responsabilidade, e, consequentemente, do mérito ou demérito de cada um.

A liberdade é o meio de realizar a evolução dos seres racionais e conscientes. Sem ela não há ação imputável. Dizem que a liberdade é perigosa. Seja; todavia é só no regime da liberdade que se consegue promover o aperfeiçoamento individual. Sem essa condição, jamais se logrará formar e Iconsolidar caracteres, jamais se conseguirá criar personalidades. O bem e o belo, as artes sob suas várias modalidades, as especulações científicas e filosóficas, assim como o sentimento de dignidade e altruísmo, só medram nos climas desanuviados, forros de restrições humilhantes, nos terrenos abertos, banhados pela luz e pelo calor vivificantes do sol da liberdade. A servidão e a doblez são incompatíveis com aqueles que já descobriram em si a origem divina, a centelha sagrada que refulge em suas almas.

Tirai, diz o eminente tribuno e filósofo Castelar, a liberdade da arte, e a arte converter-se-á em algo mais instintivo que o canto das aves; tirai-a do trabalho, e o trabalho se transformará no movimento cego e monótono das máquinas; tirai-a dos afetos, e os afetos, essas grandes molas espirituais, se reduzirão a alguma coisa menos apreciável que os amores brutais das feras;

tirai-a da política, e os povos cairão na indiferença, no marasmo e na apatia sonolenta dos muçulmanos; tirai-a da moral e não haverá mais ação imputável, desaparecendo a responsabilidade; tirai-a, finalmente, da religião e tereis convertido esse liame divino, esse código sublime para a vida e para a morte, em ordenança de polícia, fazendo de Deus agente de ordem pública, esse mesmo Deus que deu a lei de atração aos mundos, para que cumpram a sua eterna harmonia, e a lei da liberdade aos homens, para que estabeleçam uma harmonia mais excelente ainda: a harmonia da justiça.

A ideologia cristã é essencialmente liberal. O seu objetivo é tornar os homens independentes, conforme se infere de todos os postulados evangélicos. São Paulo, o destacado vexilário da fé, dizia com entusiasmo: "Onde há o espírito do Cristo, aí há liberdade". (II Coríntios 3:17.) A recíproca a essa sentença não pode deixar de ser esta outra: Onde domina a servidão, ostensiva ou disfarçada, em todas as esferas de atividade humana, servidão imposta à força ou mantida por meios e processos dissimulados, aí reina o anticristo.

No entanto, ao fazermos a apologia da liberdade como direito natural, apressamo-nos em declarar que todo direito nasce do dever. Quem não cumpre os seus deveres acabará perdendo os seus direitos, isto não só em relação aos indivíduos como também no que respeita aos povos e às nações.

Aqui se funda o dizer de Jesus: "Permanecendo nas minhas palavras, sereis meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres". (João 8:31-32.) Na verdade, no curso da vida, resume-se no dever de viver, e viver honestamente, honrando e dignificando a vida, tanto a própria quanto a alheia, de vez que a vida é a suprema graça, é a herança sagrada havida do Pai celestial.


* * *

Respigando ainda na seara fértil que se nos depara nesta passagem, consideremos a obediência sob seu duplo aspecto, isto é, como virtude que faz jus ao respeito e à admiração, e como expressão de fraqueza ou de vilania.

A obediência só é virtude, e, nesse caso, digna de ser cultivada, quando é espontânea, voluntária e natural, exatamente como no gesto de um dos protagonistas da parábola ora em estudo. É essa obediência que devemos ao nosso Criador e para a qual Ele nos deseja conquistar. Sim, notemos bem, dizemos conquistar, porque Deus não impõe: conquista, granjeia a obediência de seus filhos. A espontaneidade é o característico essencial de toda virtude. A obediência constrangida, determinada por autoridade, por mais legítima que se pretenda essa autoridade, carece de valor moral. A obediência que procede do terror é covarde, é simulada; a que resulta do interesse, ou seja, do propósito de alcançar recompensas presentes ou futuras é venal. Aquele que obedece por medo é pusilânime, e o que faz visando a lucros é negocista. Em nenhum dos casos existe virtude, ambos revelam frouxidão de caráter. Importa, outrossim, em verdadeira heresia pretendermos obedecer ou agradar a Deus para evitar punições ou obter favores. Ele sonda os recônditos mais íntimos do coração humano e conhece perfeitamente bem quais os fatores que determinam os nossos atos e as nossas atitudes. Cumpre, pois, que o obedeçamos assim como o devemos adorar: em espírito e em verdade, tal como Jesus ensinou à mulher samaritana.

Os que se amoldam à falsa obediência constrangem a consciência própria, envilecem-se e se degradam. Aqueles, porém, que cultivam a verdadeira, promovem a emancipação pessoal, acelerando o curso de sua evolução. Tal é a obediência nobre e altiva do homem livre que, de moto próprio, delibera e age, assim como procedeu, atentemos bem, um dos filhos da parábola que estamos comentando. Aquela outra é a obediência do escravo que se movimenta e se agita, ora temendo o azorrague, ora visando a proventos. Tanto o medo como a cobiça são manifestações positivas de inferioridade. A obediência-virtude, que exclui cálculos, é lúcida, é fruto do raciocínio, é filha da gratidão. Aquele moço que, a princípio, rejeitou o convite paterno, mais tarde, entregue às suas próprias cogitações, arrependeu-se, e, voluntariamente, tomou a resolução de ir à vinha do pai. O arrependimento é consequência natural da confissão íntima da conduta individual. Logo, a obediência-virtude nasce da luz, é luminosa, é racional. O filho desobediente que aparece neste apólogo foi vencido pelo sentimento da gratidão que aflorou em sua consciência. Ele reconheceu o direito paterno, originado do amor, desse amor que leva os pais a renunciarem a tudo pela felicidade dos filhos.

Esse é, em realidade, o sentimento que Deus suscita no coração dos pecadores, seus filhos transviados.


* * *

Insistimos ainda na natureza daquele pedido suave e doce que o bondoso e sereno genitor dirigia aos seus filhos:

"Ide, hoje, trabalhar na minha vinha".

Ide, hoje.

O chamamento divino tem sempre esse cunho de atualidade. A hora vem e agora é; são chegados os tempos — assim dizia, há vinte séculos, o Enviado celeste. A palavra do Céu não é para amanhã, é para hoje mesmo, é para o momento.

Deus está no eterno presente. Sua ação é sempre atual.

Quando o descobrimos dentro de nós, opera-se o nosso nascimento espiritual: começamos, desde logo, a viver a vida imortal.

Mas, afinal, que significa trabalhar no vinhedo do Senhor? Esse labor estará, acaso, representado nas grandes metrópoles com os seus arranha-céus, seus palácios, teatros, catedrais, caminhos de ferro, viaturas que devoram distâncias em poucos minutos, como os autos e aviões; estará no rádio, na televisão e em outras tantas expressões do progresso material, de que tanto se ufanam os homens do século, e ao qual, impropriamente, denominam de civilização? A resposta negativa a esta pergunta, estamos a ouvi-la no troar dos canhões, no sibilar das balas, no bombardeio de cidades abertas, no talar dos campos e das searas, na carnificina bárbara e cruel que ensopa o solo de sangue e de lágrimas, quando Deus determinou que ele fosse regado com o suor do nosso rosto. A resposta negativa, ao quesito acima formulado, está, pois, na conduta humana, completamente divorciada, não digamos já da moral evangélica, mas da lei vetusta, que séculos antes do advento cristão foi dada a Moisés, no Sinai: "Não matarás!". (Êxodo 20:13.) Decididamente a obediência cega, ditada pelas autoridades humanas, abriu falência. Dogmas e decretos não atingem a consciência nem o coração humano. Os fatos confirmam a nossa assertiva. O mundo precisa ser cristianizado. Só a moral cristã, revivida em sua simplicidade e pureza primitiva, tem poder para salvá-lo.




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Mateus 21:2

Ide à aldeia que está defronte de vós, e logo encontrareis uma jumenta presa, e um jumentinho com ela; desprendei-a, e trazei-mos.

mt 21:2
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Mateus 7:22

Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas?

mt 7:22
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II Coríntios 3:17

Ora o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade.

2co 3:17
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João 8:31

Jesus dizia pois aos judeus que criam nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos;

jo 8:31
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