Contos Desta e Doutra Vida
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Há longo, longo tempo, compareceram no Tribunal Divino dois homens recém-chegados da Terra.
Um trazia o sinal da muleta em que se apoiara.
Outro mostrava as marcas da coroa que lhe havia adornado a cabeça.
Fariam prova de humildade para voltarem ao mundo ou seguirem além…
Postos, um a um, na balança, o primeiro acusou enorme peso. Era ainda presa fácil de lutas inferiores, parecendo balão cativo.
O segundo, no entanto, revelava grande leveza. Poderia viajar em demanda dos cimos.
Inconformado, contudo, disse o primeiro:
— Onde a justiça divina? Fui mendigo paupérrimo, enquanto ele…
E indicando o outro:
— Enquanto ele era rei… Passei fome, ao passo que muita vez o vi no banquete lauto. Esmolava na rua, avistando-o na carruagem. Conheci a nudez, reparando-o sob manto dourado, quando seguia em triunfo… Vivi entre os últimos, ao passo que ele sempre aparecia como o primeiro entre os primeiros…
O outro baixou a cabeça, humilhado, em silêncio…
Mas o amigo sereno, que representava o Senhor, falou persuasivo:
— Viste-o na mesa farta, mas não lhe percebeste os sacrifícios ao comer por obrigação. Notaste-o de carro; entretanto, não lhe observaste o coração agoniado de dor, ante os problemas dos súditos a que devia assistência. Fitaste-o sob dourado manto, nos dias de júbilo popular; todavia, não lhe contemplaste as chagas de sofrimento moral, diante das questões insolúveis… Conheceste-o entre os maiorais da Terra; entretanto, não sabes quantos punhais de hipocrisia e de ingratidão trazia cravados no peito, embora fosse obrigado a sorrir… Além disso, na posição de soberano, podia ferir e não feriu, humilhar e não humilhou a ninguém, prejudicar e não prejudicou, desertar e não desertou… Na situação de mendigo, não foste lançado a semelhantes problemas da tentação…
Diante do companheiro triste, o ex-monarca recebeu passaporte para a ascensão sublime. Sozinho e em lágrimas, perguntou, então, o ex-mendigo:
— E agora?
O ministro angélico abraçou-o, sensibilizado, e informou:
— Agora, renascerás na Terra e serás também rei.
(.Humberto de Campos)
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