Coração e Vida

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Capítulo XVIII

Cantiga da Reencarnação


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Um homem agonizava, mas embora

Não pudesse expressar palavra alguma,

Na sombra interior que o desarvora,

Pede em silêncio ao corpo:

— “Ampara-me, por Deus!

Eu não quero morrer, ajuda, corpo amigo,

Não te quero deixar, preciso estar contigo,

Sem ti temo cair em abismos fatais…”


Era o apelo de instantes derradeiros

Naquele portador de moléstia obscura,

Que ainda não chegara aos cinquenta janeiros

E que tudo indicava

Estar descendo à morte prematura.


De consciência lúcida, lembrava

Em contrição sincera,

As forças que gastara, inutilmente,

As noites dos excessos de aguardente

E os abusos sem conta que fizera…


E, ante a morte a surgir, sempre mais perto,

Continua a rogar ao corpo enfraquecido:

— “Corpo que Deus me deu, não me deixes caído,

Quero mais tempo, a fim de preparar-me

Para aceitar sem medo e sem alarme,

A ideia de perder-te e entrar em rumo incerto”.


Entretanto,

De espírito cansado

A desfazer-se em pranto,

Nas vascas da agonia,

Ouviu a voz do corpo fatigado,

Que, por fim, lhe dizia:


“Escuta, meu amigo

Eu sou teu servo e sei que és meu senhor,

Sempre te obedeci com desvelado amor,

Deus me criou para a missão

De atender-te em completa servidão.

Nunca me viste a desobedecer

As ordens que me deste

Fossem justas ou não,

Porquanto o meu dever

É o de servir-te sem reclamação.

Mas indaga de ti quanta vez me impuseste

Noitadas de prazer, ruinosas ou vazias,

Depredando-me as próprias energias

Que Deus me concedeu, em teu favor…

Embora eu te avisasse

Com a minha própria dor

Que o remorso produz tristeza e enfermidade,

Adquiriste, displicente,

Cargas de sombra sobre a própria mente,

Culpas e culpas sem necessidade…

Repito: sou teu servo e, em nada te condeno,

Mas demonstrando entendimento estreito,

Gastaste-me as reservas sem proveito,

Consumindo-me as forças,

A pedaços de abuso e a doses de veneno…

Dei-te tudo o que eu tinha,

Nada me resta agora,

Senão me recolher à derradeira hora,

Em que eu deva tornar, com segura presteza,

À recomposição da natureza!…”


O homem ouviu o corpo em despedida

Mas não tinha defesa

Contra os próprios desmandos, ante a vida…

No silêncio de mágoa indefinida,

Voltou-se para Deus em oração,

Pediu misericórdia, amparo e proteção,

E, ante o corpo que se lhe enrijecia,

Chorou o companheiro que perdia…


Longo tempo passou, em clima de amargura,

No entanto, ao se afundar em crises de loucura,

Fez-se-lhe a prece continuada,

Nos sofrimentos em que avança

Um clarão de esperança…

Tinha nódoas de culpa, em lágrimas sofria

Mas o Céu lhe apontava a luz de novo dia…

No íntimo, o Senhor o exortava somente

A regressar ao mundo e tentar novamente

Extinguir em si mesmo os males que trazia…


O Espírito em falência, exânime, inseguro

Pensou nas novas bênçãos do futuro,

Viu a reparação por justiça e dever,

E agradecendo aos Céus

Gritou feliz, livre mas preso ao chão:

— “Glória a Deus pela bênção de sofrer,

Glória à reencarnação que obterei um dia,

A fim de achar na dor a essência da alegria,

O dom de trabalhar e a graça de nascer!”




Maria Dolores
Francisco Cândido Xavier

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