Coração e Vida

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Capítulo XXXI

Justiça


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Este episódio aconteceu, há tempos,

E está guardado na memória

De quantos compartilham desta história.


Um condenado à morte pela forca

Acusado de um crime,

Sem proteção a que se arrime,

Tudo aceitou sem reclamar.


A hora da execução chegara, enfim…

Muita gente na praça se adensava

No intuito de aplaudir

A presença da morte, em estranho festim.

Explodiam na tarde clara e quente

Estas palavras de clamor:

— “Morte ao bandido!… Morte ao matador!…”


O prisioneiro chega e encontra o sacerdote

Que o seguirá na cena derradeira…

Em torno, a multidão

Gritava rumorosa e galhofeira…

Mas entre o padre e o réu se estabelece

A conversa ligeira

Que o povo crê, no fundo, condensar

O amparo de um conselho e a bênção de uma prece

Que o ministro de Deus promove com pesar.

— “Filho — diz o pastor — sei que estais inocente,

Posso agora dizer esta verdade,

Questão de consciência e lealdade

Que preciso estender a toda gente…”


— “Padre, como sabeis?”

— Interrogou ansioso o réu aflito —

“Se estou no fim, segundo as nossas leis?”


O sacerdote amigo

Aconchegou-se mais ao penitente

E lhe falou, paternalmente:

— “Na semana passada,

Ouvi a confissão inesperada

Do homicida infeliz…

Ele morreu comigo, após contar-me

Calculando as palavras, uma a uma,

Que não tendes culpa alguma…

No derradeiro alento,

Cansado de remorso e sofrimento,

Pediu-me vos livrasse, ante as autoridades,

Documentadamente,

Porquanto, ele somente

É o responsável pelo crime

Que vos foi imputado injustamente,

E devo executar-lhe as últimas vontades”.


No entanto, o sentenciado

Estampando na face uma expressão de horror,

Disse, em tom abafado:

— “Padre amigo,

Nesse crime, não fui o matador;

Quanto a isto, já sei,

Mas deixai que se cumpra a exigência da lei”.

E, fitando o pastor, de modo inesquecível

Rematou, afinal:

— “A justiça é de Deus e o remorso é terrível…

Recordai vosso irmão assassinado,

Há quase cinco anos,

Por entre espancamentos desumanos?

O rapaz despojado

Da fortuna de um banco que trazia?

Aquele vosso irmão que amáveis tanto,

Pelo qual vossa mãe morreu de saudade e de pranto,

Cuja morte no mundo

Permanece envolvida em mistério profundo?”


O sacerdote ouvira, trêmulo e assombrado

Mas nada respondeu…

Após comprida pausa, disse o condenado:

— “O assassino fui eu…

Não me livreis da forca a que me entrego,

Já não aguento mais a culpa que carrego…”


Pálido, o sacerdote

Exclamou, fatigado:

— “Para mim, já não sois o sentenciado,

Sois também nosso irmão

Mereceis nosso amor,

Em nome do Senhor,

Estais vós perdoado…”


Mas, nisso, a multidão

Crendo haver terminado aquele entendimento,

Que lembrava um diálogo discreto,

Avançou sobre o preso, em tumulto completo…

Não houve qualquer tempo

Para maior explicação.

Aos gritos delirantes

De “morte ao matador”

Sob a guarda robusta

Que tomara feitio protetor,

O infeliz a tremer, triste e descalço,

Subiu ao cadafalso…


Alguns momentos mais,

E o corpo entremostrando angústia indefinida,

Balançava sem vida.

E, na turba, a gritar, perante a horrível cena,

Entre vaias finais e assovios plebeus,

O sacerdote em pranto,

Sem que o povo lhe ouvisse a palavra serena,

Murmurava, sozinho, em pequeno recanto:

— “A justiça é de Deus… A justiça é de Deus…”




Maria Dolores
Francisco Cândido Xavier

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