Estante da Vida

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Capítulo XIV

O Guia


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Necessitando melhorar conhecimentos de orientação, acompanhei um dia de serviço do guardião Aurelino Piva, Espírito amigo que desempenha a função de guia comum da senhora Sinésia Camerino, dama culta e distinta, domiciliada em elegante setor do mundo paulista.

Cabia-me aprender como ajudar alguém, individualmente, na posição de desencarnado. Auxiliar em esforço anônimo, exercer o amor silencioso e desconhecido.

Cheguei cedo à residência, cujo pequeno jardim a primavera aformoseava. Quatro horas da manhã, justamente quando Aurelino preparava as forças de sua protegida para o dia nascente. Trabalho de humildade e devotamento.

Na véspera, Dona Sinésia não estivera tão sóbria ao jantar. Excedera-se em quitutes e licores, mas o amigo espiritual erguia-se em piedosa sentinela e, antes que a senhora reabrisse os olhos no corpo, aplicava-lhe passes de reajuste.

— É preciso que nossa irmã desperte tão hígida quanto possível — explicou-me.

E sorrindo:

— Um dia tranquilo no corpo físico é uma bênção que devemos enriquecer de harmonia e esperança. Depois de complicada operação magnética, observei que a tutelada se dispunha a movimentar-se, e esperei. Seis horas da manhã.

Aurelino formulou uma prece, rogando ao Senhor lhe abençoasse a nova oportunidade de trabalho e tive a ideia de tornar a escutar-lhe as palavras confortadoras: “um dia tranquilo no corpo físico é uma bênção…”

A senhora acordou e o benfeitor espiritual postou-se ao lado dela, à feição de pai amoroso, falando-lhe dos recursos imensos da vida que estuavam lá fora, como a buscar-lhe o coração para o serviço com alegria. Dona Sinésia ouvia em pensamento e, qual se dialogasse consigo mesma, recusava a mensagem de otimismo e respondeu às benéficas sugestões, resmungando: “dia aborrecido, tempo sem graça…” Nisso, dois meninos altercaram, lá dentro, com a empregada. Bate-boca em família. Dona Sinésia não se mexeu. Sabia que os dois filhos manhosos nada queriam com estudo, nem suportavam qualquer disciplina, mas não deu bola. Aurelino, porém, correu à copa e eu o acompanhei. O amigo desencarnado apaziguou as crianças e acalmou a servidora da casa, à custa de apelos edificantes. Ajudou os pequenos a encontrarem os cadernos de exercícios escolares que haviam perdido e acompanhou-os até o ônibus. De volta ao interior doméstico, chegou a vez de se amparar o esposo de Dona Sinésia, que deixara o quarto sob grande acesso de tosse. Bronquite velha. Um guardião espiritual, ligado a ele, auxiliava-o, presto; no entanto, Aurelino pensou na tranquilidade de sua protegida e entregou-se à tarefa de colaboração socorrista. Passes, insuflações. O chefe da família estava nervoso, abatido. Aurelino não repousou enquanto não lhe viu o espírito asserenado, diante da empregada, a quem auxiliou de novo, a fim de que o café com leite fosse servido com carinho e limpeza. Logo após, demandou o grande aposento, em que iniciáramos a tarefa, rogando a Dona Sinésia viesse à copa abençoar o marido com um sorriso de confiança. A dama escutou o convite suplicante, através da intuição, mas ficou absolutamente parada sob os lençóis, e, ouvindo o esposo a pigarrear, na saída, comentou intimamente: “não vou com asma, estou farta.”

Sete horas. Aurelino estugou o passo a fim de sustentar o senhor Camerino, na travessia da rua. Explicou-me que Dona Sinésia precisava de paz e, em razão disso, devia ajudar-lhe o marido com as melhores possibilidades de que dispunha. E, atencioso, deu a ele, na espera da condução, ideias de tolerância e caridade, bom ânimo e fé viva para compreender as suas dificuldades de contador na firma a que se vincula.

Regressamos a casa. Dona Sinésia em descanso. Oito horas, quando se levantou. Aurelino sugeriu-lhe o desejo de tomar água pura e informou-me de que se esmerava em defendê-la contra intoxicações. Magnetizou o líquido simples, dotando-o de qualidades terapêuticas especiais e… continuaram serviços e preocupações. Trabalho de proteção para Dona Sinésia, em múltiplas circunstâncias pequeninas suscetíveis de gerar grandes males; apoio à empregada de Dona Sinésia, para que não falhassem minudências na harmonia do lar; remoção de obstáculos a fim de que contratempos não viessem perturbar a calma de Dona Sinésia; socorro incessante às crianças de Dona Sinésia, ao retornarem da escola; cooperação indireta para que Dona Sinésia escolhesse os pratos capazes de lhe assegurarem a necessária euforia orgânica; inspirações adequadas de modo a que Dona Sinésia encontrasse boas leituras; amparo constante ao senhor Camerino, tanto quanto possível, a fim de que Dona Sinésia não se afligisse.

Enfim, Dona, Sinésia, sem a obrigação de ser agradecida, já que não identificava os benefícios contínuos que recebia, teve um dia admirável, enquanto Aurelino e eu estávamos realmente estafados, não obstante a nossa condição de Espíritos sem corpo físico.

À noite, porém, justamente quando Aurelino se sentou ao meu lado para dois dedos de prosa, Dona Sinésia, desatenta, feriu o polegar da mão esquerda com a agulha que manejava para enfeitar um vestido.

Bastou isso e a senhora desmandou-se aos gritos: — Oh! meu Deus! meu Deus!… ninguém me ajuda! Vivo sozinha, desamparada!… Não há mulher mais infeliz do que eu!…

Positivamente assombrado, espiei Aurelino, que se mantinha imperturbável, e observei:

— Que reação é esta, meu amigo? Dona Sinésia recolheu socorro e bênçãos durante o dia inteiro!… como justificar este ataque de cólera por picadela sem importância nenhuma?!…

Aurelino, entretanto, sorriu e falou paciente:

— Acalme-se, meu caro. Auxiliemos nossa irmã a reequilibrar-se. Esta irritação não há de ser nada. Ela também, mais tarde, vai desencarnar como nós, e será guia…


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier

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