Estante da Vida
Versão para cópiaA arte de elevar-se
Delfim Mendes era estudante aplicado, na escola do Espiritismo cristão, sempre atencioso nas discussões filosóficas, a cujo brilho emprestava diligente cooperação; entretanto, fugindo aos testemunhos pessoais no trabalho renovador, vivia em regime de perenes reclamações. Interpretava os ricos por gênios malditos do desregramento e os pobres por fantasmas do desespero.
A cada passo, asseverava sob escura revolta:
— A Terra é um despenhadeiro de sombras sem fim… Como nos livraremos deste horrível sorvedouro?
Tanto se habituou às queixas infindáveis que, certa noite, quando Fabiano, o Espírito-diretor da reunião que frequentava, expunha conclusões evangélicas de alto sentido, desfechou-lhe vasta dose de extemporâneas indagações:
— Benfeitor amado, como conquistar o desligamento do purgatório do mundo? Por todos os lugares da Terra, vejo a maldade dominante. Nas pessoas inteligentes, identifico a crueldade deliberada; nas pessoas incultas, reparo a preguiça sistemática. De todos os ângulos da existência, no plano selvagem em que nos encarnamos, surgem aguilhões…
E, quase lacrimejante, rematava:
— Que fazer para fugir desta moradia tenebrosa da expiação?
O Espírito amigo escutou, benevolente, e quando o silêncio voltou a pesar na assembleia, comentou, bondoso:
— Um homem trabalhador, depois da morte, em razão de certo relaxamento espiritual, foi colhido pelas redes de Satanás e desceu aos infernos, ralado de espanto e dor. Lá dentro, passou a ver as figuras monstruosas que povoavam o abismo e, por muitos dias consecutivos, gemeu nos tanques móveis de lava comburente. Acostumado, porém, ao esforço ativo, pouco a pouco se esqueceu dos poços vulcânicos que o cercavam e sentiu fome de trabalho benéfico. Arrastou-se, dificilmente, para fora da cratera em que jazia atolado até à cintura e, depois de perambular pelas margens, à maneira dum réptil, encontrou um diabo menor, com o braço desconjuntado, e deu-se pressa em socorrê-lo. Esforçou-se, ganhou posição sobre uma trípode, que se destinava ao arquivo de velhas tridentes esfogueadas, e agiu, tecnicamente, restituindo-lhe o equilíbrio. O perseguidor, algo comovido, incumbiu-se de melhorar-lhe a ficha. Daí a momentos, uma sereia perversa passou, exibindo defeituosa túnica, como quem se dirigia a zonas festivas. O prestimoso internado pediu permissão para ajudá-la, afirmando haver trabalhado num instituto de beleza terrestre, e tantos laçarotes lhe aplicou à vestimenta que a criatura diabólica se afastou, reconhecida. Continuando a arrastar-se, encontrou um grupo de condenados a cavar profunda cisterna, e, conhecedor que era do problema, forneceu-lhes valiosas instruções. Encorajado pelos elogios de todos, seguiu caminho para diante, no pavoroso domínio de que era prisioneiro, encontrando um gigante do mal, caído por terra, a vomitar lodo e sangue, depois de conflito feroz com poderoso inimigo, mais vigoroso em brutalidade. O dedicado colaborador do bem apiedou-se dele e guardou-lhe a horrenda cabeça entre as mãos. Como não possuísse adequado material de socorro, soprou-lhe ao coração, com o desejo ardente de infundir-lhe novo ânimo e, com efeito, o gênio maléfico despertou, sensibilizado, e contemplou-o com o enternecimento que lhe era possível. A fama do piedoso sentenciado espalhou-se e um dos grandes representantes de Satanás chegou a solicitar-lhe os serviços num caso melindroso, em que se fazia imperiosa a colaboração de uma pessoa competente, humilde e discreta. Com tamanho acerto agiu o encarcerado que a direção do abismo conferiu-lhe o direito da palavra. E o trabalhador, lembrando o ensinamento do Mestre que determina seja dado a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, (Mt
Nesse ponto, o guia espiritual interrompeu a narrativa e, talvez porque Delfim Mendes o contemplasse, expectante, riu-se, bondoso, e concluiu:
— Você, Delfim, sente-se na Terra como se estivesse no inferno. Pense, fale e procure agir, como se fosse no Céu, e o próprio mundo restituirá você ao Paraíso, compreende?
O irrequieto companheiro enterrou a cabeça nas mãos alongadas, mas não respondeu.
(.Humberto de Campos)
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