Há dois mil anos...

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Capítulo IV

Tragédias e esperanças

SEGUNDA PARTE. • SEGUNDA PARTE.


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A vida real sempre é prosaica, sem fantasia nem sonhos.

Assim decorre a existência das personagens deste livro, na tela viva das realidades nuas e dolorosas do ambiente terrestre.

Os que atingem determinadas posições sociais, bem como os que se aproximam do crepúsculo da vida fragmentária da Terra, poucas novidades têm a contar, com respeito ao curso de cada dia.

Há um período na existência do homem, em que lhe parece não mais haver a precisa pressão psíquica do coração, a fim de que se lhe renovem os sonhos e as aspirações primeiras, figurando-se a sua situação espiritual cristalizada ou estacionária. No íntimo, não há mais espaço para novas ilusões ou reflorescimento de novas esperanças, e a alma, como que em doloroso período de expectação e forçado silêncio, queda-se no caminho, contemplando os que passam, presa aos cordéis da rotina, das semanas uniformes e indiferentes.

 

Estamos vivendo, agora, o ano 57, e a vida dos atores deste drama doloroso apresenta-se quase invariável no desdobramento infindo dos seus episódios comuns e angustiosos.

Apenas uma grande modificação se fizera na residência de Calpúrnia.

Plínio Sevérus, nas suas radiosas expressões de vitalidade física, já havia recebido as maiores distinções por parte das organizações militares que garantiam a estabilidade do Império. Longas e periódicas permanências nas Gálias  e na Espanha  lhe haviam angariado honrosíssimas condecorações, mas, no seu íntimo, a vaidade e o orgulho haviam proliferado intensamente, não obstante a generosidade do seu coração.

Os primeiros ciúmes ásperos da esposa fizeram-se acompanhar de consequências nefastas e dolorosas.

Aos criminosos propósitos de Saul juntaram-se as pérfidas confidências das amigas mentirosas, e Flávia Lentúlia, longe de gozar a ventura conjugal a que tinha direito pelos seus elevados dotes de coração, descera, sem sentir, dados os seus ciúmes desmesurados, aos tenebrosos abismos do sofrimento e da provação.

 

Para um homem da condição de Plínio, era muito fácil a substituição do ambiente doméstico pelas festividades ruidosas do circo,  na companhia de mulheres alegres, que não faltavam em todos os lugares da metrópole do pecado.

Em breve, o carinho da esposa foi substituído pelo falso amor de numerosas amantes.

Debalde procurou Calpúrnia interpor seus bons ofícios e carinhosos conselhos, e, em vão, prosseguia a jovem esposa do oficial romano no seu martírio imperturbável e silencioso.

As raras queixas de Flávia eram guardadas pelo coração generoso da mãe de seu marido, ou, então, confiadas ao espírito do pai, em confidências amarguradas e penosas.

Públio Lêntulus, compreendendo a importância da cooperação feminina na regeneração dos costumes e no reerguimento do lar e da família, incitava a filha ao máximo de resignação e tolerância, fazendo-lhe sentir que a esposa de um homem é a honra do seu nome e o alimento da sua vida e que, enquanto um marido se perverte no torvelinho das paixões desenfreadas, escarnecendo de todos os bens da vida, basta, às vezes, uma lágrima da mulher para que a paz conjugal volte a brilhar no céu sem nuvens do afeto puro e recíproco.

 

Para o espírito de Flávia, a palavra paterna tinha foros de realidade insofismável e ela buscava amparar-se nas suas promessas e nos seus conselhos, julgados preciosos, esperando que o esposo voltasse, um dia, ao seu amor, entre as bênçãos do caminho.

Enquanto isso, Plínio Sevérus dissipava no jogo e nas folganças uma verdadeira fortuna. Sua prodigalidade com as mulheres tornara-se proverbial nos centros mais elegantes da cidade, e poucas vezes buscava o ambiente familiar, onde, aliás, todos os afetos se conjugavam para esclarecer-lhe docemente o espírito desviado do bom caminho.

A morte do velho pretor Sálvio Lêntulus, antes do ano 50, obrigara a família de Públio e os remanescentes de Flamínio aos protocolos sociais junto de Fúlvia e da filha, por ocasião das homenagens prestadas às cinzas do morto que, envolto no mistério da sua passividade resignada e incompreensível, havia passado pelo mundo.

Bastou esse ensejo para que Aurélia retomasse a oportunidade perdida. Um olhar, um encontro, uma palavra e o filho mais moço de Flamínio, enamorado das belezas pecaminosas, restabeleceu o laço afetivo que um amor santificado e puro havia destruído anteriormente.

Em breve, ambos eram vistos com olhares significativos pelos teatros, pelos circos ou pelas grandes reuniões esportivas da época.

 

De todas essas dores, fizera Flávia Lentúlia o seu calvário de agonias silenciosas, dentro do lar que a sua fidelidade dignificava. Nas suas meditações silenciosas, muitas vezes deplorou os antigos desabafos de ciúme injustificável, que constituíram a primeira porta para que o marido se desviasse dos sagrados deveres em família; mas, no seu orgulho de patrícia, ponderava que era muito tarde para qualquer arrependimento dela, considerando, intimamente, que o único recurso era aguardar a volta do esposo ao seu coração fiel e dedicado, com o máximo de humildade e paciência. Nos seus instantes de contristação, escrevia páginas amarguradas e luminosas, pelos elevados conceitos que traduziam, ora implorando a piedade dos deuses, em súplicas fervorosas, ora estereotipando as íntimas angústias em versos comovedores, lidos tão somente pelos olhos de seu genitor que, a chorar de emoção, considerava, muitas vezes, se a desventura conjugal da pobre filha não era igualmente uma herança singular e dolorosa.

 

Por volta do ano 53, desaparecia em trágicas circunstâncias, nos escuros braços da morte, uma das figuras mais fortes desta história.

Referimo-nos a Fúlvia que, dois anos após o falecimento do companheiro, acusava as mais sérias perturbações mentais, além de inquietantes fenômenos orgânicos, provenientes de passados desvarios.

Feridas cancerosas devoravam-lhe os centros vitais e, por dois anos a fio, o corpo emagrecido era forçado às mais penosas e incômodas posições de repouso, enquanto os olhos inquietos e arregalados dançavam nas órbitas, como se nas suas alucinações fosse compelida à vidência dos quadros mais sinistros e tenebrosos.

Nessas ocasiões, não encontrava a dedicação da filha, que não soubera educar, sempre atarefada nos seus constantes compromissos de festas, encontros, representações sociais numerosas.

Mas a misericórdia divina, que não abandona os seres mais desditosos, dera-lhe um filho carinhoso e compassivo para as dores expiatórias.

Emiliano Lúcius, o marido de Aurélia, era desses homens dignos e valorosos, raros na paciência e nas mais elevadas virtudes domésticas.

Noites e noites sucessivas, velava pela velhinha infeliz, que as dores físicas castigavam impiedosamente com o azorrague de suplícios atrozes.

 

Nos seus últimos dias, vamos ouvir-lhe as palavras desconexas e dolorosas. Noite alta, quando as próprias escravas descansavam, subjugadas pela fadiga e pelo sono, parecia que seus ouvidos de louca se aguçavam, espantosamente, para ouvir os ruídos do invisível, dirigindo impropérios às suas antigas vítimas, que voltavam das mais baixas Esferas espirituais para rodear-lhe o leito de sofrimento e morte. Olhos desmesuradamente abertos, como se fixassem visões fatídicas e horrorosas, exclamava a pobre velhinha abraçando-se ao genro, no auge das suas frequentes crises de medo e desesperação inconsciente:

— Emiliano!… — exclamava em atitudes de pavor supremo — Este quarto está cheio de seres tenebrosos!… Não percebes? Ouve bem… Ouço-lhes os impropérios rijos e as sinistras gargalhadas!… Conheceste Sulpício Tarquínius, o grande lictor de Pilatos? Ei-lo que chega com os seus legionários mascarados de treva!… Falam-me da morte, falam-me da morte!… Socorre-me, filho meu!… tem um corpo de dragão que me apavora!…

 

Crises de soluço e lágrimas sucediam-se a essas observações angustiosas.

— Acalma-te, mãe! — exclamava o militar, consternado até às lágrimas — Tenhamos confiança na bondade infinita dos deuses!…

— Ah!… os deuses! — gritava agora a infeliz, em histéricas gargalhadas — os deuses!… onde estariam os deuses desta casa infame? Emiliano, Emiliano, nós é que criamos os deuses para justificar os desvarios de nossa vida!… O Olimpo  de Júpiter é uma mentira necessária ao Estado…  Somos uma caveira enfeitada na Terra com um punhado de pó!… O único lugar que deve existir, de fato, é o inferno,  onde se conservam os demônios com os seus tridentes no braseiro!… Ei-los que chegam em falanges escuras!…

E, apegando-se fortemente ao peito do oficial, gritava disparatadamente, como se buscasse ocultar o rosto, de sombras ameaçadoras:

— Nunca me levareis, malditos!… Para trás, canalhas!… Tenho um filho que me defende de vossas investidas tenebrosas!…

Emiliano Lúcius acariciava bondosamente os cabelos brancos da desventurada senhora, incitando-a a implorar a misericórdia dos deuses, de modo a balsamizarem-se-lhe os rudes padecimentos.

 

De outras vezes, Fúlvia Prócula, como se tivesse a consciência despertada por um raio divino, dizia, mais calma, ao filho que o destino lhe havia dado:

— Emiliano, estou aproximando-me da morte e preciso confessar-te as minhas faltas e grandes deslizes! Perdoa-me, filho, se tamanhos trabalhos te hei proporcionado! Minha existência misérrima foi uma longa esteira de crimes, cujas manchas horrorosas não poderão ser lavadas pelas próprias lágrimas da enfermidade que ora me conduz aos impenetráveis segredos da outra vida! Nunca, porém, consegui ponderar as amarguras terríveis que me esperavam. Hoje, nas pesadas sombras d’alma, sinto que minha consciência se tisna do carvão apagado do fogo das paixões nefastas que me devoraram o penoso destino!… Fui esposa desleal, impiedosa e mãe desnaturada…

Quem se apiedará de mim, se houver uma claridade espiritual após as cinzas do túmulo? Deste leito de loucura e agonia desesperada, vejo o desfile incessante de fantasmas hediondos, que parecem esperar-me no pórtico do sepulcro!… Todos profligam meus crimes passados e mostram-se jubilosos com os padecimentos que me arrastam à sepultura!

Sem uma crença sincera, sinto-me entregue a esses dragões do imponderável, que me fazem evocar o passado criminoso e sombrio!…

Uma torrente de lágrimas de compunção e arrependimento seguia-se a esses instantes vertiginosos, de raciocínio e lucidez.

 

Emiliano Lúcius afagava-lhe, com carinho, a face rugosa, imergindo-se ele mesmo em cismas dolorosas.

Aquele quadro lancinante era bem o fim tempestuoso de uma existência de deslizes clamorosos.

Sim… ele tudo compreendia agora. A rebeldia da esposa, a sua incompreensão, os atritos domésticos, aquela sede insaciável de festas ruidosas em companhia de afetos que não eram os dele, deviam ser os frutos amargos de educação viciada e deficiente. Mas, seu coração estava cheio de generosidade sem limites. Espírito valoroso, compreendia a situação, e quem compreende perdoa sempre.

Uma noite em que a doente manifestava crises acentuadas e profundas, o bondoso oficial ordenou que as servas se recolhessem.

A pobre louca falava sempre, como se fora tocada de energia inesgotável e incompreensível.

Copioso suor inundava-lhe a fronte, tomada de febre alta e constante.

— Emiliano — gritava ela desesperadamente —, onde está Aurélia, que não busca velar à minha cabeceira nas vésperas da morte? Como as falsas amizades de minha vida, terá ela também horror do meu corpo?

— Aurélia — explicou generosamente o oficial — precisava desobrigar-se hoje de um compromisso com as amigas, na organização de alguns serviços sociais!

— Ah! — exclamou a demente, em sinistras gargalhadas — os serviços sociais!… os serviços sociais!… Como pudeste crer nisso, filho meu? Tua mulher, a estas horas, deve estar ao lado de Plínio Sevérus, seu antigo amante, em algum lugar suspeito desta cidade miserável!…

 

Emiliano Lúcius fez o possível para que a infeliz dementada não prosseguisse em suas revelações terríveis e impressionantes, mas Fúlvia continuava o libelo tremendo e doloroso:

— Não, não me prives de continuar… — prosseguia desesperadamente. — Ouve-me ainda! Todas as minhas acusações representam a criminosa realidade… Muitas vezes, a verdade está com aqueles que enlouqueceram!… Fui eu própria que induzi minha infeliz filha aos desvios conjugais…  Plínio Sevérus era o inimigo que ela precisava vencer, na qualidade de mulher… Facilitei-lhe o adultério, que se consumou sob este teto!… Certifica-te, filho meu, da enormidade das minhas faltas!… Horroriza-te, mas perdoa!… E vigia tua mulher para que não continue a trair-te com as suas perfídias torpes, e não venha um dia a apodrecer, lamentavelmente, como eu, num leito de sedas perfumosas!…

O generoso militar acompanhava, boquiaberto e aflito, aquelas revelações assombrosas.

Então a esposa, além de não o compreender no seu idealismo, ainda o traía vergonhosamente, no próprio ambiente sacrossanto do lar? Emoções dolorosas represavam-se-lhe no coração, mas, possivelmente, todas aquelas palavras não passavam de simples delírio febril, na demência incurável. Uma dúvida horrível e impiedosa aninhara-se-lhe no coração angustiado. Algumas lágrimas umedeceram-lhe os grandes olhos tristes, enquanto a enferma dava uma trégua às penosas revelações.

 

Daí a minutos, porém, com voz estentórica, continuava:

— E Aurélia? Que é feito de Aurélia que não vem? Por onde andará minha pobre filha criminosa e infiel? Amanhã, meu filho, hei-de confiar-te os infames segredos da nossa existência desventurada.

Alguém, todavia, penetrara no aposento contíguo, cautelosa e silenciosamente. Era Aurélia, que voltava de uma festividade ruidosa, onde o vinho e os prazeres haviam jorrado em abundância.

Depois de atravessar a porta próxima, ainda ouviu as últimas palavras da mãe, no auge da febre e da desesperação doentia. Ela, que ouvira as tristes revelações de pouco antes, considerou que a doente, no dia imediato, haveria de cumprir a terrível promessa e, num relance, examinou todas as probabilidades de execução da ideia tenebrosa que lhe passara pela mente criminosa e infeliz.

Seus olhos pareciam vidrados de cólera, sob o azorrague de um pensamento mórbido, que lhe aflorara repentinamente no coração frio e impiedoso.

Despiu os trajes da festa, reintegrando-se nos aspectos interiores do lar, e abriu uma nova porta, dirigindo-se ao leito materno, onde acariciou a mãe fingidamente, enquanto o esposo incompreendido a contemplava, de cérebro fervilhante e dolorido, sob o domínio das dúvidas mais acerbas.

— Mãe, que é isso? — perguntou, afetando uma preocupação imaginária — Estás cansada  precisas repousar um pouco.

 

Fúlvia fitou-a profundamente, como se um clarão de lucidez lhe houvesse clareado repentinamente o espírito abatido. A presença da filha tranquilizava de algum modo o seu coração dorido e a consciência dilacerada. Sentou-se com esforço, no leito, afagou os cabelos da filha, como sempre costumava fazer na intimidade, deitando-se em seguida e parecendo com boa disposição de repousar.

Emiliano Lúcius retirou-se da cena considerando que sua presença já não era necessária.

Mas Aurélia continuava a falar com o seu fingido carinho:

— Queres, mãe, uma dose do calmante para o repouso preciso?

A pobre louca, na sua inconsciência espiritual, fez um sinal afirmativo com a cabeça.

A jovem encaminhou-se ao seu aposento privado e, retirando minúsculo tubo de um dos móveis prediletos, deixou pingar algumas gotas numa pequena taça de sedativo, monologando: — “Sim!… um segredo é sempre um segredo… e só a morte pode guardá-lo convenientemente!…

Caminhou, sem hesitação, para o leito materno, onde, por mais de dois anos, jazia a infeliz, devorada pelo câncer e atormentada pelas visões mais sinistras e tenebrosas.

 

Num relance, o horrível envenenamento estava consumado. Ministrada a poção corrosiva e violenta, Aurélia determinou, então, que duas escravas velassem o sono da enferma, como de costume, ao regressar das noitadas ruidosas, esperando o resultado da ação criminosa e injustificável.

Em duas horas, a enferma apresentava os mais evidentes sinais de sufocação sob a ação do corrosivo, que constituía mais um daqueles filtros misteriosos e homicidas da época.

Ao chamamento aflito das servas, todas as pessoas da casa se colocaram a postos, dado o penoso estado da enferma.

Emiliano Lúcius contemplou-lhe os olhos, que se iam apagando no véu da morte, e debalde procurou fazer que a agonizante lhe dissesse ainda uma palavra. Seus membros frios foram-se enrijando devagarinho e da boca começou a escapar-lhe espuma rósea.

Em vão, foram chamados os entendidos da medicina, naqueles derradeiros instantes. Naquela época, nem os esculápios  conheciam os segredos anatômicos do organismo, nem havia polícia técnica para averiguar as causas profundas das mortes misteriosas. O envenenamento de Fúlvia correu por conta das moléstias incompreensíveis que, durante muitos meses, lhe haviam eliminado todos os centros de vitalidade.

 

Contudo, aquela agonia rápida não passou despercebida a Emiliano, que juntou mais uma dúvida penosa aos amargos pensamentos que lhe negrejavam o foro íntimo.

Aurélia buscou representar, do melhor modo, a comédia da sentimentalidade em tais circunstâncias, e depois das cerimônias simplificadas e rápidas, em vista da imediata decomposição cadavérica, que forçou a incineração em breves horas, o antigo lar do pretor Sálvio Lêntulus tornou-se o abrigo de dois corações que se odiavam mutuamente.

Se a esposa infiel, logo após os primeiros dias de luto, retornava à sua existência de regalados prazeres, Emiliano Lúcius nunca pôde esquecer as revelações de Fúlvia, nas vésperas do seu desprendimento, envolvendo-se, então, num véu de tristeza que lhe cobriu o coração por mais de dois anos.

 

Em 54, subia Domício Nero  ao poder, fazendo-se acompanhar de uma depravada corte de áulicos perversos e de concubinas tão numerosas quão desalmadas.

Muito tarde, reconheceu Agripina  a inconveniência de sua atitude maternal, obrigando o imperador Cláudio  a anuir ao casamento de sua filha Otávia  com aquele que, mais tarde, iria eliminar-lhe a própria vida com os maiores requintes de perversidade.

O Fórum  e o Senado  receberam, tremendo, a sombria notícia da proclamação do novo César  pelas legiões pretorianas, não tanto por ele, mas porque sabiam, de antemão, que aquele príncipe ignorante e cruel ia tornar-se um fácil joguete dos espíritos mais ambiciosos e mais perversos da corte romana.

Ninguém, todavia, ousou protestar, tal a série de crimes tenebrosos, perpetrados impunemente, para que Domício Nero atingisse os bastidores do supremo poder.

 

No ano 56, o envenenamento do jovem Britânicus  punha arrepios de terror em todos os patrícios.

Medidas ignominiosas foram postas em prática para humilhar os senadores do Império, que não conseguiram efetivar os seus protestos formais. Todas as famílias mais importantes da cidade conheciam que, diante de si, tinham os filtros venenosos de uma Locusta,  a tirania e a perversidade de um Tigelínus,  ou o punhal de um Aniceto. 

A morte inesperada de Britânicus, porém, provocara certo descontentamento, dando azo a que se manifestassem alguns espíritos mais valorosos.

Entre esses, encontrava-se Emiliano Lúcius, que se viu logo em sérias perspectivas de banimento, tornando-se vigiado pelos inúmeros esbirros do Imperador.

O generoso oficial buscou recolher-se o mais que lhe era possível, evitando a possibilidade de conflitos. Recrudesceram as suas angústias íntimas e as suas meditações tornaram-se mais profundas e dolorosas…

 

E, assim, certa vez, às primeiras horas de uma noite tranquila, quando se recolhia ao lar, contrariamente aos seus hábitos mais antigos, notou que o aposento da esposa estava cheio de vozes animadas e alegres. Observou que Aurélia e Plínio se embriagavam no vinho de seus venenosos prazeres e, olhos traduzindo incoercível espanto, viu que a esposa o traía no próprio tálamo conjugal.

Emiliano Lúcius sentiu que espinho mais agudo lhe penetrava o coração sensível e generoso, ao verificar, por si mesmo, aquela realidade cruel. Teve ímpetos de chamar o amante ao campo da honra para morrer ou eliminar-lhe a vida, mas considerou, simultaneamente, que Aurélia não merecia tal sacrifício.

Enojado de tudo o que se referia à sua época e sentindo-se vencido nas desventuras do seu penoso destino, o nobre oficial retirou-se para o antigo gabinete do pretor Sálvio, onde estabelecera a sede de seus trabalhos diurnos e, tomado de sinistra e dolorosa resolução, abriu velho armário onde se alinhavam pequenos frascos, retirando um deles, de configuração especial, a fim de satisfazer os amargos propósitos do seu espírito exausto.

 

Diante da taça de cicuta, o cérebro dorido perdera-se, por minutos, em pungentes conjeturas; mas, estudando intimamente todas as suas probabilidades de ventura, ponderou, no auge do desespero, que, à traição da mulher, às ameaças de proscrição e de banimento ou à possibilidade de um ataque nas sombras, era preferível o que ele considerava o consolo derradeiro da morte.

Num instante, sem que os amigos espirituais pudessem demove-lo do intento terrível, tal a subitaneidade do gesto desesperado e irrefletido, sorveu o conteúdo de pequena taça, descansando depois a jovem cabeça sobre os braços, estirado num leito próprio do triclínio, mas adaptado ao seu gabinete antigo, abarrotado de mármores e pergaminhos preciosos.

A morte horrível não se fez esperar muito, e, no círculo numeroso de suas relações de amizade, enquanto Aurélia representava nova farsa de pesares imaginários, comentava-se o suicídio de Emiliano, não como consequência direta de suas profundas desilusões domésticas, mas como fruto da tirania política do novo imperador, sob cujo reinado tantos crimes foram cometidos, diariamente, nas sombras.

 

Sozinha, agora, no seu campo de ação, Aurélia entregou-se livremente aos seus desvarios, amplificando as suas inclinações nocivas e procurando reter, cada vez mais junto de si, o homem de suas preferências, objeto de suas desenfreadas ambições.

Em casa dos Lêntulus e dos Sevérus a vida continuava a desfiar o rosário das desventuras.

Havia mais de cinco anos, em 57, que Saul de Gioras se encontrava definitivamente instalado em Roma, sem haver desistido dos seus desejos e propósitos a respeito da esposa do amigo e benfeitor. Consolidada a sua fortuna no comércio de peles do Oriente, não perdia ele as mínimas oportunidades para evidenciar a excelência de sua situação material à mulher cobiçada de longos anos; Flávia Lentúlia, porém, fizera da existência um calvário de resignação, comovedora e silenciosa.

A vida pública do marido era, para o seu espírito, um prolongado e doloroso suplício moral. Sobre o assunto, fazia Saul, de vez em quando, referências indiretas, no intuito de chamar-lhe a atenção para o seu afeto, mas a pobre senhora nele não via outra individualidade, além de um amigo, ou irmão. Debalde, o moço judeu testemunhava-lhe sua admiração pessoal, em gestos de extrema gentileza, buscando oferecer-lhe a sua companhia; mas, a verdade é que os apelos de sua alma impetuosa e apaixonada não encontravam ressonância no coração daquela mulher, que enfeitava com a dor a dignidade do matrimônio.

 

Tocado pelas expressões do seu dinheiro, animava-lhe as esperanças sem o deixar esmorecer nos seus perigosos instintos.

Plínio Sevérus só vinha ao lar de vez em quando, alegando serviços ou viagens numerosas para justificar a continuidade de sua ausência. Mal se precatava ele de que as despesas astronômicas lhe arruinavam, pouco a pouco, as possibilidades financeiras, conduzindo igualmente os seus familiares ao esgotamento de todos os recursos.

Algumas vezes, mantinha colóquios afetuosos com a esposa, a quem se sentia preso pelos laços de afeição eterna e profunda, mas as seduções do mundo eram já muito fortes no seu coração, para serem extirpadas. No íntimo, desejava voltar à calma do lar, à vida carinhosa e tranquila; mas, o vinho, as mulheres e os ambientes ostentosos eram a permanente obsessão do seu espírito combalido; outras vezes, embora amando a esposa ternamente, não lhe perdoava a circunstância da sua superioridade moral, irritando-se contra a própria humildade que ela testemunhava em face dos seus desatinos, e regressava novamente aos braços de Aurélia, como vítima indecisa entre as forças do bem e do mal.

 

No ano 57, a saúde de Calpúrnia, abalada em extremo, obrigara a família a reunir-se em torno do leito da matrona generosa. Pela primeira vez, após o casamento do irmão, voltou Agripa Sevérus de suas longas aventuras em Massília  e em Avênio,  para junto de sua mãe enferma e abatida, atendendo-lhe os apelos, sentidos e carinhosos. Reencontrar Flávia Lentúlia e participar com ela das claridades do ambiente doméstico, foi o mesmo que reviver velho vulcão adormecido.

A um golpe de vista, compreendeu a situação conjugal de Plínio, procurando substituir-lhe o afeto junto da esposa desvelada e carinhosa. Desejava confessar-lhe todo o seu amor ardente e infeliz, mas guardava no coração sublime respeito fraternal por aquela mulher, que confiava nele como irmão muito amado.

Foi assim que, nas alternativas de melhora da velha enferma, Flávia lhe aceitou a companhia para distrair-se nalguns espetáculos da rumorosa cidade da época.

Tanto bastou para que Saul envenenasse os acontecimentos, supondo nessas expansões inocentes uma ligação menos digna, que lhe enchia de pavorosos ciúmes o coração violento e irascível.

 

Na primeira oportunidade, insinuou a Plínio Sevérus todas as suas cavilosas suspeitas, arquitetando, com a sua imaginação doentia, situações e acontecimentos que jamais se verificaram. O esposo de Flávia era desses homens caprichosos, que, organizando um círculo de liberdade ilimitada para si próprio, nada concedem à mulher, nem mesmo no terreno das afeições desinteressadas e puras. Dessa forma, Plínio Sevérus começou a acatar a palavras de Saul, concedendo-lhe aos conceitos insensatos o mais largo crédito, no seu foro íntimo. Ele, que deixara a companheira afetuosa ao abandono e que, por largos anos, dera azo às mais penosas amarguras domésticas, sentiu-se, então, ralado de ciúmes acerbos e inconcebíveis, passando a espionar os menores gestos do irmão e a desconfiar dos mais secretos pensamentos da esposa, esperando que a moléstia irremediável de sua mãe tivesse uma solução na morte, que se presumia para breve, a fim de se pronunciar com mais força na reivindicação dos seus direitos conjugais.

 

Entrava o ano de 58, com amarguradas perspectivas para as nossas personagens.

Um fato, porém, começava ferir a atenção de todas as personagens desta história real e dolorosa.

A dedicação de Lívia à sua velha amiga doente era um exemplo raro de amor fraterno, de carinho e bondade indefiníveis. Oito meses a fio, sua figura franzina e silenciosa esteve a postos dia e noite, sem descanso, junto ao leito de Calpúrnia, provando-lhe com exemplos a excelência dos seus princípios religiosos.

Muitas vezes, a nobre matrona considerou, intimamente, a superioridade moral daquela doutrina generosa, que estava no mundo para levantar os caídos, confortar os enfermos e os tristes, disseminando as mais formosas esperanças com os desiludidos da sorte, em confronto com os seus velhos deuses que amavam os mais ricos e os que oferecessem os melhores sacrifícios nos templos, e aquele Jesus humilde e pobre, descalço e crucificado, de que lhe falava Lívia em suas palestras íntimas e carinhosas.

 

Calpúrnia estava plenamente modificada, às vésperas da morte. A convivência contínua da velha amiga renovara-lhe todos os pensamentos e crenças mais radicadas. Tratava melhor as escravas que lhe beiravam o leito e pedira à Lívia lhe ensinasse as preces do profeta crucificado em Jerusalém, o que ambas faziam de mãos postas, quando os aposentos da enferma ficavam silenciosos e desertos. Nesses instantes, a viúva de Flamínio Sevérus sentia que as dores abrandavam, como se bálsamo suave lhe refrescasse os centros íntimos de força; cessavam as dispneias dolorosas e a respiração quase se normalizava, como se profundas energias do Plano invisível lhe reanimassem o coração escleroso e fatigado.

Ao espírito de Públio não passavam despercebidos esses sintomas de modificação moral da velha matrona, nem tão-pouco o nobre procedimento da esposa, que nunca mais repousou, desde o instante em que a vira inerme e exausta. Os sofrimentos da vida haviam igualmente modificado muito a estrutura da sua organização espiritual e, como nunca, sentia o senador a necessidade de se reconciliar com a esposa, para enfrentar os invernos penosos da velhice que se aproximava.

Não só ele, como Lívia, já haviam ultrapassado meio século de existência e, agora que tão bem conhecia a vida e os seus dolorosos mecanismos de aperfeiçoamento, sentia-se apto a perdoar todas as faltas da esposa, no pretérito, considerando que os seus vinte e cinco anos de martírio moral, no sacrossanto ambiente doméstico, bastavam para redimi-la das faltas que, porventura, houvesse cometido, nas ilusões da mocidade, em terra estranha, conforme supunha em suas falsas observações, filhas ainda da calúnia que lhe destruíra a ventura e a paz de uma existência inteira.

 

Nos primeiros dias ao ano 58, os padecimentos de Calpúrnia foram subitamente agravados, esperando-se a cada momento o penoso desenlace.

Os filhos e os mais íntimos lhe rodeavam o leito, grandemente comovidos, embora reconhecessem a necessidade de repouso para aquele corpo doente e esgotado.

Na antevéspera da morte, a veneranda senhora pediu que a deixassem sozinha com o senador, por algumas horas, alegando a necessidade de confiar a Públio Lêntulus algumas disposições “in extremis”.

Atendida, imediatamente, vamos encontrá-los em íntimo colóquio, como se estivessem juntos pela última vez, para decisão de assuntos importantes e supremos.

 

Públio, ainda em pleno vigor de sua compleição física, tinha os olhos rasos d’água, enquanto a velha matrona o contemplava, deixando transparecer um clarão de viva lucidez nos olhos calmos e profundos.

— Públio — começou ela, gravemente, como se aquelas palavras fossem as suas últimas recomendações —, para os espíritos de nossa formação não pode existir o receio da morte, e é por esse motivo que deliberei falar-te nas minhas horas derradeiras.

— Mas, minha boa amiga — respondeu o senador, franzindo a testa e esforçando-se por dissimular a comoção que lhe ia n’alma, lembrando-se de que, nas mesmas circunstâncias, lhe falara Flamínio pela última vez, entre as paredes daquele quarto —, somente os deuses podem decidir de nossos destinos e só eles conhecem os nossos últimos instantes!…

— Não duvido dessas verdades — acudiu a valorosa patrícia —, mas, tenho a certeza de que as minhas horas na Terra chegam a termo e não quero levar para o túmulo o remorso de uma falta que reconheço haver cometido há mais de dez anos…

— Uma falta? Nunca… Vossa vida, Calpúrnia, foi sempre um dos mais raros exemplos de virtude nesta época de transição e degenerescência dos nossos mais belos costumes…

— Agradeço-te, meu grande amigo, mas tua gentileza não me exime da penitência perante o teu espírito, afirmando que há mais de dez anos errei num julgamento, pedindo-te hoje recebas a minha retificação, talvez tardia, mas ainda a tempo de santificarmos, com o mais justo respeito, uma vida de sacrifícios e de abnegações!…

 

Públio Lêntulus adivinhou que se tratava de sua mulher e, com a voz embargada pela comoção e pelas lágrimas, deixou que a velha amiga continuasse, de olhos enxutos, manifestando o mais subido valor moral em face da morte que se aproximava.

— Refiro-me a Lívia — continuou Calpúrnia, em tom comovido —, a respeito de quem tive a infelicidade de te transmitir uma suposição errônea e injusta, cortando-lhe a última possibilidade de ventura na Terra; mas, a morte renova as nossas concepções da vida e os que estão prestes a abandonar este mundo possuem uma visão mais clara de todos os problemas da existência.

Hoje, meu amigo, digo-te, de alma serena, que tua esposa é imaculada e inocente…

O senador sentia que o pranto lhe brotava espontaneamente dos olhos, mas estava intimamente confortado por saber que a venerável amiga confirmava, agora, as convicções que o tempo lhe aumentara quanto à nobilíssima companheira de sua existência.

— Não to digo simplesmente por uma questão de egoísmo pessoal, em penhor de agradecimento pelas supremas dedicações de Lívia para comigo no decurso desta dolorosa enfermidade — continuou ela, valorosamente. — Um espírito do nosso estofo deve estar com a verdade acima de tudo, e esta minha confissão não se verifica tão somente pelas observações da minha fraqueza toda humana.

 

A realidade, todavia, meu amigo, é que, desde aquela noite em que me pediste opinasse sobre tua esposa e minha desvelada amiga, sinto o espinho de uma dúvida cruel no meu coração dilacerado. Lívia foi sempre a minha melhor companheira, e contribuir para a sua desventura, injustificadamente, era aos meus olhos a suprema falta de toda a vida…

Por onze anos, orei constantemente e ofereci numerosos sacrifícios nos templos, para que os deuses me inspirassem a verdade sobre o assunto e, por todo esse tempo, tenho esperado pacientemente a revelação do Céu… Só hoje, porém, me foi dado obtê-la, já nos pórticos do sepulcro!…

É possível que minha pobre alma, já semi-liberta, esteja participando dos incompreendidos mistérios da vida do além-túmulo e talvez seja por isso que, hoje pela manhã, vi a figura de Flamínio neste quarto!… Era muito cedo e eu estava só, com as minhas meditações e as minhas preces!…

 

Nesse ínterim, a palavra da enferma tornara-se entrecortada de profundas emoções que a dominavam, enquanto Públio Lêntulus chorava, em doloroso silêncio.

— Sim… — prosseguiu Calpúrnia, depois de longa pausa —, no meio de uma luz difusa e azulada, vi Flamínio a estender-me os braços carinhosos e compassivos… No olhar, observei-lhe a mesma expressão habitual de ternura e, na voz, o timbre familiar, inesquecível… Avisou-me que dentro de dois dias penetrarei os mistérios indevassáveis da morte, mas essa revelação do meu fim próximo não me podia surpreender… porque para mim… que há tantos anos vivo no meu exílio de saudade e sombras… acrescido das continuadas angústias da enfermidade longa e dolorosa… a certeza da morte constitui supremo consolo… Confortada pelas doces promessas da visão, as quais me auguravam esse brando alívio para breves horas… perguntei ao espírito de Flamínio sobre a dúvida cruel que me dilacerava há tantos anos… Bastou que o arguísse mentalmente, para que a radiosa entidade me dissesse em alta voz… meneando a cabeça num gesto delicado… como a exprimir infinita e dolorosa tristeza: “Calpúrnia, em má hora duvidaste daquela a quem deverias amar  e proteger como a filha querida e carinhosa… porque Lívia… é uma criatura imaculada e inocente…”

 

Nesse instante  — continuou a enferma, com alguma dificuldade —, tal foi a impressão dolorosa de minhalma… com a surpresa da resposta… que não mais lobriguei a visão carinhosa e consoladora… como se fosse repentinamente chamada às tristes realidades da vida prática…

A velha matrona tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto o senador se entregava silenciosamente ao pranto de suas comoções penosas.

Longos minutos estiveram ambos assim, na atitude de quem dava curso ao remorso e ao sofrimento…

Afinal, foi ainda a valorosa patrícia quem rompeu o pesado silêncio, tomando as mãos do amigo entre as suas mãos descarnadas e brancas, exclamando:

— Públio, fala-te o coração de uma velha amiga, com as verdades serenas e tristes da morte… Acreditas piamente nas minhas dolorosas revelações?…

O senador fez um esforço para enxugar as lágrimas que lhe caíam copiosamente dos olhos, e, movimentando o máximo de energias, replicou firmemente:

— Sim, acredito.

— E que faremos agora… para reparar nossas faltas… ante o coração generoso e justo de tua mulher?…

 

Ele deixou transparecer um clarão de ternura nos olhos e, passando as mãos inquietas pela fronte, como se houvera encontrado solução quase feliz, dirigiu-se à doente, com uma irradiação de alegria e de tranquilidade no semblante, dizendo confortado:

— Sabeis da grande festa do Estado, que se realizará de hoje a poucos dias, na qual os senadores, com mais de vinte anos de serviços ao Império, serão coroados de mirto e rosas, como os triunfadores?

— Sim — respondeu a matrona —, tanto que já pedi a meus filhos que… não obstante a minha morte próxima… te acompanhem nessa justa alegria… porque serás um dos agraciados pelas nossas autoridades supremas…

— Ó minha grande amiga, ninguém pode esperar vossa morte, mesmo porque, não poderemos prescindir da preciosa contribuição da vossa vida; mas, já que cuidamos de reparar o meu erro grave no passado doloroso, esperarei mais uma semana para levar ao espírito de Lívia a expressão do meu reconhecimento, da minha gratidão e do meu profundo amor. Irei a essa festa, a realizar-se sob os auspícios de Sêneca, que tudo tem feito por dissimular a penosa impressão causada pela conduta cruel do Imperador, seu antigo discípulo. Depois de receber a coroa da suprema vitória de minha vida pública, trarei todas as condecorações aos pés de Lívia, como preito justo à sua angustiada existência de penosos sacrifícios domésticos… Ajoelhar-me-ei ante a sua figura santificada e, retirando da fronte a auréola do Império, deporei as flores simbólicas a seus pés, que beijarei humildemente com o meu arrependimento e as minhas lágrimas, traduzindo-lhe gratidão e amor infindos!…

— Generosa ideia, meu filho — exclamou a enferma, sensibilizada —, e peço-te que a executes… no momento oportuno. E, no instante… em que testemunhares à Lívia o teu amor supremo… dize-lhe que me perdoe… porque eu chorarei de alegria… vendo ambos felizes… lá das sombras tranquilas do meu sepulcro.

 

Ambos choravam, comovidos, silenciosamente. Em dado instante, a velha doente apertou as mãos do amigo, como a dizer-lhe um supremo adeus. Calpúrnia fixou nele os grandes olhos claros — a desprenderem irradiações misteriosas, e, com lágrimas de emoção inexprimível, exclamou comovidamente:

— Públio… peço… não te esqueças… do prometido… Ajoelha-te aos pés de Lívia… como aos de uma deusa… de renúncia e de bondade… Não te importe… a minha partida deste mundo… Vai à festa do Senado… reparemos… nossa falta grave… e agora, meu amigo… um último pedido… Vela por meus filhos… como se fossem teus… Ensina-lhes ainda a honradez… a fortaleza… a sinceridade e o bem… Um dia… todos nós… nos reuniremos… na eternidade…

Públio Lêntulus apertou-lhe as mãos, sensibilizado, ajeitando-lhe, nas sedosas almofadas, a cabeça encanecida, enquanto lágrimas de comoção lhe embargavam a voz.

Havia muito que a enferma era atacada, subitamente, de periódicas e prolongadas dispneias.

O senador abriu as portas do largo aposento onde Lívia acorreu, pressurosa, como enfermeira de todos os instantes, enquanto Flávia e algumas servas acudiam com unguentos e outras panaceias da medicina do tempo.

 

Calpúrnia, porém, parecia atacada pelas últimas aflições que a levariam ao túmulo. Por vinte e quatro horas consecutivas, o peito arfou sibilante, como se a caixa torácica estivesse prestes a rebentar sob o impulso de uma força indomável e misteriosa.

Ao fim de um dia e uma noite de azáfama e angústias, a doente parecia haver experimentado ligeira melhora. A respiração fazia-se menos penosa e os olhos revelavam grande serenidade, embora todo o corpo estivesse salteado de manchas azuladas e violáceas, prenunciando a morte. Apenas a afonia continuava, mas, em dado instante, fez um gesto com a mão, chamando Lívia à cabeceira com a terna familiaridade dos antigos tempos. A esposa do senador atendeu ao apelo silencioso, ajoelhando-se, com os olhos cheios de lágrimas e compreendendo, pela intuição espiritual que era chegado o instante doloroso da despedida. Via-se que Calpúrnia desejava falar, inutilmente. Foi então que cingiu Lívia, amorosamente contra o peito osculando-lhe os cabelos e a fronte num esforço supremo e, colando os lábios ao seu ouvido, balbuciou com infinita ternura: — “Lívia, perdoa-me!” Somente a interpelada escutara o brando cicio da agonizante. Foram essas as derradeiras palavras de Calpúrnia. Dir-se-ia que sua alma valorosa necessitava, tão somente, daquele último apelo para conseguir desvencilhar-se da Terra, elevando-se ao Paraíso.

 

Abraçada à incansável amiga, a agonizante depôs novamente a cabeça nas almofadas, para sempre. Suor abundante transbordava de todo o seu corpo, que se aquietou de leve para a suprema rigidez cadavérica e, daí a minutos, seus olhos se fechavam, como se se preparassem para um grande sono. A respiração foi-se extinguindo brandamente, enquanto uma lágrima pesada e branca lhe rolava nas faces enrugadas, como um raio divino da luz que lhe clarificava a noite do túmulo.

As portas do palácio abriram-se, então, para os tributos afetuosos da sociedade romana. Às exéquias da valorosa matrona compareceu o que a cidade possuía de mais nobre e mais fino, em sua aristocracia espiritual, dado o elevado conceito em que eram tidas as peregrinas virtudes da morta.

Terminadas as cerimônias da incineração e guardadas as cinzas ilustres da nobre patrícia nas sombras do jazigo familiar, Flávia Lentúlia assumiu a direção da casa, enquanto seus pais voltavam à residência do Aventino, para o necessário descanso.

 

Faltavam somente quatro dias para a realização das grandes festas, em que mais de uma centena de senadores receberia a auréola do supremo triunfo na vida pública. Públio Lêntulus, que seria dos homenageados na festa memorável, não obstante o luto da família, aguardava o grande momento, com ansiedade. É que, recebida a expressão suprema da vitória de um homem de Estado, levá-la-ia aos pés da esposa, como símbolo perene do seu afeto e do seu reconhecimento da vida inteira. No seu íntimo, arquitetava a maneira mais doce de se dirigir novamente à companheira, no timbre caricioso e suave que a sua voz havia perdido há vinte e cinco anos, e, verificando a continuidade do seu amor, cada vez mais profundo, pela esposa, esperava ansiosamente o instante da sua reintegração na felicidade doméstica.

De noite, naquelas horas longas que se passavam, enquanto o velho coração se preparava para as bênçãos da ventura conjugal, em breves dias, ia ele até às proximidades dos apartamentos da esposa, situados bem distantes dos seus, naqueles prolongados anos de amarguras infindas.

 

Na antevéspera das grandes festividades a que nos referimos, seriam vinte e três horas, quando a sua figura se postara em frente aos aposentos da companheira, antegozando o ditoso momento da penitência, que significava para ele uma alegria suprema.

Enquanto o pensamento se afundava nos abismos do passado longínquo, sua atenção espiritual foi repentinamente despertada pela melodia suave de uma voz de mulher, que cantava baixinho no silêncio da noite. O senador aproximou-se, vagarosamente, da porta, colando o ouvido à escuta… Sim! Lívia cantava em voz apagada e mansa, qual cotovia abandonada, fazendo soar levemente as cordas harmoniosas de uma lira de suas lembranças mais queridas. Públio chorava comovido, ouvindo-lhe as notas argentinas que se abafavam no ambiente restrito do quarto, como se Lívia estivesse cantando para si própria, adormentando o coração humilde e desprezado, para encher de consolo as horas tristes e desertas da noite. Era a mesma composição das musas do esposo, que lhe escapava dos lábios naquele instante em que a voz tinha tonalidades estranhas e maravilhosas, de indefinível melancolia, como se todo o seu canto fosse o lamento doloroso de rouxinol apunhalado:

 

Alma gêmea da minhalma,

Flor de luz da minha vida,

Sublime estrela caída.

Das belezas da amplidão!…

Quando eu errava no mundo,

Triste e só, no meu caminho,

Chegaste, devagarinho,

E encheste-me o coração.


Vinhas na bênção dos deuses,

Na divina claridade,

Tecer-me a felicidade

Em sorrisos de esplendor!…

És meu tesouro infinito,

Juro-te eterna aliança,

Porque sou tua esperança,

Como és todo o meu amor!


Alma gêmea da minhalma,

Se eu te perder, algum dia,

Serei a escura agonia

Da saudade nos seus véus…

Se um dia me abandonares,

Luz terna dos meus amores,

Hei-de esperar-te, entre as flores

Da claridade dos Céus…

 

Daí a minutos, a voz harmoniosa calava, como se fora obrigada a um divino estacato. O senador retirou-se, então, com os olhos marejados de lágrimas, refletindo consigo mesmo: — “Sim, Lívia, de hoje a dois dias hei-de provar-te que foste sempre a luz da minha vida inteira… Beijarei teus pés com a minha humildade agradecida e saberei entornar no teu coração o perfume do meu arrependimento…”

Penetrando no aposento de Lívia, vamos encontrá-la genuflexa, depois de haver deposto, sobre um móvel predileto, a lira das suas recordações. Ajoelha-se, como sempre, diante da cruz de Simeão que, nesse dia, mostrava a seus olhos espirituais uma claridade mais intensa.

 

No curso de suas preces, ouviu a palavra do amigo invisível, cuja tonalidade profunda parecia gravar-se, para sempre, no imo da sua consciência: “Filha — exclamava a voz amiga, do Plano espiritual —, regozija-te no Senhor, porque são chegadas as vésperas da tua ventura eterna e imorredoura! Eleva o pensamento humilde a Jesus, porque não está longe o instante ditoso da tua gloriosa entrada no seu Reino!…”

Lívia deixou transparecer no olhar uma atitude de alegria e surpresa, mas, cheia de confiança e fé na providência divina, guardou, nos refolhos mais íntimos do coração, o conforto daquelas palavras sacrossantas.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

Na Galileia

PRIMEIRA PARTE • PRIMEIRA PARTE
No dia imediato a esses acontecimentos, às primeiras horas da manhã, Públio Lêntulus foi procurado, na intimidade do seu gabinete particular, por Fúlvia, que se lhe dirigiu, criminosamente, nestes termos:

 

— Senador, o ascendente de nossas ligações familiares obriga-me a procurar-vos para tratar de um assunto desagradável e doloroso, mas, nas minhas experiências de mulher, cumpre-me aconselhá-lo a resguardar sua esposa da insídia dos próprios amigos, pois que, ainda ontem, tive oportunidade de surpreendê-la em íntimo colóquio com o governador…

 

O interpelado estranhou aquela atitude insólita, grosseira, contrária a todos os seus métodos de homem de bem.

 

Repeliu dignamente a investida, encarecendo a nobreza moral de sua esposa, passando Fúlvia a relatar-lhe, com os mais exaltados floreios de sua imaginação doentia, a cena da véspera, nas suas mínimas minudências.

 

 

O senador ficou pensativo, mas sentiu-se com a precisa coragem moral para repelir a insinuação caluniosa.

 

— Pois bem — disse ela, terminando a denúncia —, muito longe levais a vossa confiança e boa fé. Um homem nunca perde por ouvir os conselhos da experiência feminina. A prova de que Lívia caminha na estrada larga da prevaricação tê-la-eis muito breve, porquanto ela há-de preferir a partida imediata para Nazaret,  onde o governador buscará encontrá-la.

 

E, dizendo-o, retirou-se apressadamente, deixando o senador algo desalentado e compungido, pensando nos corações mesquinhos que o rodeavam, porque, no tribunal da consciência, não se sentia disposto a aceitar ideia que viesse conspurcar a valorosa nobreza de sua mulher.

 

Imenso véu de sombras cobriu-lhe o espírito sensível e afetuoso. Sentiu que, em Jerusalém, conspiravam contra ele todas as forças tenebrosas do seu destino, experimentando vasto deserto no coração.

 

 

Ali não encontraria a palavra prudente e generosa de um amigo como Flamínio, com quem pudesse desabafar as suas profundas mágoas. Absorto nessas meditações angustiosas, não viu que as pétalas das horas rodopiavam incessantes, nos torvelinhos do tempo. Só muito depois percebeu o vozerio de um dos serviçais de confiança, vindo a saber que Sulpício Tarquínius lhe solicitava o obséquio de uma entrevista particular, pedido a que atendeu com o máximo de atenção.

 

Admitido ao interior do gabinete, o lictor referiu-se, sem preâmbulos, aos fins da visita, explicando com desembaraço:

 

— Senador, honrado com a vossa confiança no caso de vossa transferência para uma estação de repouso, venho sugerir-vos o arrendamento de rica propriedade pertencente a um nosso compatrício nos arredores de Cafarnaum,  encantadora cidade da Galileia,  situada no caminho de Damasco.  É verdade que já escolhestes Nazaret, mas, ao longo da planície de Esdrélon,  as casas confortáveis são muito raras, acrescendo que seríeis obrigado a enormes dispêndios em serviços de remodelação, e benfeitorias. Em Cafarnaum, porém, o caso é diferente. Tenho ali um amigo, Caio Grátus, decidido a arrendar por tempo indeterminado a sua esplêndida vila, que é uma herdade provida de todo o conforto com pomares preciosos, num ambiente de absoluto sossego.

 

 

O senador ouvia o preposto de Pilatos como se o espírito lhe pairasse noutra parte; mas, como se tivesse a atenção subitamente despertada, exclamou, na atitude de quem argumenta consigo mesmo:

 

— De Jerusalém a Nazaret, temos setenta milhas… Onde fica Cafarnaum?…

 

— Muito distante de Nazaret — obtemperou o lictor, com segunda intenção.

 

— Está bem, Sulpício — respondeu Públio, com ares de quem tomou uma resolução íntima, estou muito agradecido pela tua gentileza, que não esquecerei de recompensar em tempo oportuno. Aceito a tua sugestão, que reputo sensata, mesmo porque, de fato, não me pode interessar a aquisição definitiva de qualquer imóvel na Galileia, atenta a necessidade de regressar a Roma, dentro em breve. Ficas autorizado a concluir o negócio, porquanto me louvo nas tuas informações, descansando confiadamente, no teu conhecimento do assunto.

 

Secreta satisfação transpareceu nos olhos de Sulpício, que se despediu com fingido reconhecimento.

 

 

Públio Lêntulus descansou novamente os cotovelos na mesa de trabalho, submerso em profundas cismas.

 

Aquela sugestão de Sulpício chegava no instante psicológico de suas angustiosas cogitações, porque, em face dessa nova providência, conseguiria instalar a família longe de qualquer influência da casa do procurador da Judeia, salvando, assim, a sua reputação dos salpicos ignominiosos da maledicência.

 

A denúncia de Fúlvia, todavia, desdobrava sucessivas preocupações no seu íntimo. Fosse pelo inopinado da calúnia, ou pelo espírito de perversidade com que a mesma fora urdida, seu pensamento mergulhou em ansiosas expectativas.

 

À noite daquele mesmo dia, após o jantar vamos encontrá-lo a sós com Lívia, no terraço da residência do pretor, que, por sua vez, se ausentara de casa por algumas horas, em companhia dos seus familiares, para atender a imperativos de certas pragmáticas.

 

 

Notando-lhe no rosto os sinais evidentes de profunda contrariedade, rompeu a esposa com a encantadora intimidade do seu coração feminino:

 

— Querido, pesa-me ver-te assim, dobrado ao jugo de tamanhos desgostos, quando esta longa viagem deveria restituir-nos a tranquilidade necessária ao desenvolvimento dos teus encargos… Ouso pedir que apresses a nossa mudança de Jerusalém para um ambiente mais calmo, onde nos sintamos mais a sós, fora deste círculo de criaturas cujos hábitos não são os nossos, e cujos sentimentos desconhecemos. Quando partiremos para Nazaret?…

 

— Para Nazaret? — repetiu o senador, com voz irritada e sombria, como se o tocasse o espírito venenoso do ciúme, lembrando, involuntariamente, as acusações infundadas de Fúlvia.

 

— Sim — prosseguiu Lívia, súplice e carinhosa —, pois não foram essas as providências ontem aventadas?

 

— É verdade, querida! — exclamou Públio, já pesaroso, voltando a si dos maus pensamentos que havia abrigado por um instante — mas, resolvi depois instalarmo-nos em Cafarnaum, contrariando as últimas decisões…

 

 

E tomando a mão da companheira, como se buscasse um bálsamo para a alma ferida, sussurrou-lhe de manso:

 

— Lívia, és tudo o que me resta neste mundo!… Nossos filhos são flores da tua alma, que os deuses nos deram para minha alegria!… Perdoa-me, querida… Há quanto tempo tenho vivido absorto e taciturno, esquecendo o teu coração sensível e carinhoso! Parece-me estar despertando agora de um sono muito doloroso e muito profundo, mas despertando com a alma receosa e oprimida. Andam-me, no íntimo, amargurados vaticínios… Temo perder-te, quando quisera encerrar-te no peito, guardando-te no coração eternamente… Perdoa-me…

 

 

Enquanto ela o contemplava, surpresa, seus lábios sequiosos lhe cobriam as mãos de beijos ardentes. E não foram apenas os ósculos afetuosos que brotaram nesse transbordamento de carinhos. Uma lágrima lhe gotejou dos olhos cansados misturando-se às flores da sua afeição.

 

— Que é isso, Públio? Choras? — exclamou Lívia, enternecida e angustiada.

 

— Sim! Sinto os gênios do mal cercando-me o coração e a mente. Meu íntimo está povoado de visões sombrias, prenunciando o fim da nossa felicidade; mas eu sou um homem e sou forte… Querida, não me negues a tua mão para atravessarmos juntos o caminho da vida, porque, contigo, vencerei o próprio impossível!…

 

Ela estremeceu em face dessas observações, que lhe não eram familiares.

 

Num relance, retrocedeu à noite anterior, considerando o atrevimento do governador, que dignamente repelira, experimentando, ao lado da aflição pelo companheiro, soberana tranquilidade de consciência e, tomando ligeiramente as mãos do esposo, levou-o a um canto do terraço, onde se postou à frente de uma harpa harmoniosa e antiga, cantando baixinho, como se a sua voz, naquela noite, fosse o gorjeio de uma cotovia apunhalada:

 

“Alma gêmea da minhalma,

 

Flor de luz da minha vida,

 

Sublime estrela caída

 

Das belezas da amplidão!…

 

Quando eu errava no mundo

 

Triste e só, no meu caminho,

 

Chegaste, devagarinho,

 

E encheste-me o coração.

 

 

Vinhas na bênção dos deuses,

 

Na divina claridade,

 

Tecer-me a felicidade,

 

Em sorrisos de esplendor!…

 

És meu tesouro infinito,

 

Juro-te eterna aliança,

 

Porque eu sou tua esperança,

 

Como és todo o meu amor!” 

 

Tratava-se de uma composição dele, na mocidade, tão ao gosto da juventude romana, dedicada a ela própria, e que o seu talento musical guardava sempre, para circunstâncias especiais do seu sentimento.

 

Naquele instante, porém, sua voz tinha tonalidades diferentes, como se houvera encerrado na garganta uma toutinegra divina, exilada dos prados brilhantes do Paraíso.

 

Na última nota, tocada de tristeza e angústia indefiníveis, Públio tomou-a brandamente de encontro ao peito, forte e resoluto, como se quisesse reter para sempre, no coração, a sua joia de inimaginável pureza.

 

Agora, era Lívia a chorar copiosamente nos braços do companheiro, a beijá-la nos transportes de sua alma leal e, por vezes, impulsiva.

 

 

Depois daquele arroubo emotivo, Públio sentiu-se desanuviado e satisfeito.

 

— Porque não regressarmos a Roma quanto antes? — perguntou Lívia, como se o seu espírito estivesse clarificado por luzes proféticas, com relação aos dias futuros. — Junto dos filhinhos, retomaríamos nossas obrigações habituais, cientes de que a luta e o sofrimento estão em todos os lugares e de que toda alegria significa, neste mundo, uma bênção dos deuses!…

 

O senador ponderou a proposta da companheira, estabelecendo a análise de toda a situação no seu íntimo, obtemperando, por fim:

 

— Tua observação é justa e providencial, minha querida, mas, que diriam os nossos amigos quando soubessem que, depois de tantos sacrifícios com a viagem, havíamos resolvido a permanência de apenas uma semana em região tão distante? E a nossa doentinha? Seu organismo não tem reagido de modo eficaz, em contato com o novo clima? Estejamos confiantes e tranquilos. Apressarei a partida para Cafarnaum e, em breves dias, estaremos em novo ambiente, segundo os nossos desejos.

 

 

Assim aconteceu, efetivamente.

 

Reagindo às vibrações perniciosas do meio, Públio Lêntulus providenciou a solução de todos os problemas atinentes à mudança, fazendo ouvidos moucos às indiretas de Fúlvia enquanto Lívia, escudando-se na superioridade de sua alma, buscava insular-se dentro do pequeno mundo de amor dos dois filhinhos, fugindo à presença do governador, que não desistira dos seus assédios, junto de quem a figura nobre de Cláudia sabia despertar em todos a mais sincera simpatia.

 

Duas servas foram admitidas ao serviço do casal, na perspectiva de sua transferência para Cafarnaum; não que fossem indispensáveis ao desdobramento das atividades domésticas, em face dos servos numerosos trazidos de Roma; contudo, o senador examinara a utilidade dessa providência, considerando que ele e a família viriam a necessitar de um contato mais direto com os costumes e dialetos do povo, reconhecida a circunstância de que ambas conheciam a Galileia.

 

Ana e Sémele, recomendadas por amigos do pretor, foram recebidas ao serviço de Lívia, que as acolheu com bondade e simpatia.

 

 

Trinta dias se passaram nos preparativos da projetada viagem.

 

Sulpício Tarquínius, estimulado pelas vantagens dos próprios interesses materiais, não perdeu ensanchas de captar a plena confiança do senador, organizando a propriedade com minúcias de atenção e gentileza, provocando o contentamento e o elogio de todos.

 

Nas vésperas da partida, Públio Lêntulus compareceu ao gabinete de Pilatos, para o agradecimento das despedidas.

 

Depois de saudá-lo cordialmente, exclamou o governador, com forçada jovialidade:

 

— É pena, caro amigo, que as circunstâncias o conduzam para Cafarnaum, quando esperava ter a satisfação de retê-lo nas vizinhanças de nossa casa, em Nazaret.

 

Mas, enquanto permanecer na Galileia, em vez de minhas habituais visitas a Tiberíade,  procurarei o norte para nos avistarmos.

 

 

Públio manifestou-lhe sua gratidão e reconhecimento e, quando se preparava para sair, o procurador da Judeia continuou, em tom afetuoso e conselheiral:

 

— Senador, não só como responsável pela situação dos patrícios na província, como também na qualidade de amigo sincero, não posso deixá-lo partir à mercê do acaso, tão somente na companhia de escravos e servos de confiança. Acabo de designar Sulpício, homem que me merece inteira confiança, para dirigir os serviços de segurança que vos são devidos. Além dele, mais um lictor e alguns centuriões partirão para Cafarnaum, onde permanecerão às suas ordens.

 

Públio agradeceu cortesmente, sentindo-se confortado com o oferecimento, embora a presença do governador lhe causasse pouca simpatia íntima.

 

 

Afinal, terminados os aprestos de viagem, a compacta caravana se pôs em movimento, atravessando os territórios de Judá  e as montanhas verdes da Samaria,  em demanda da sua estação de destino.

 

Alguns dias foram gastos através das estradas que contornam muitas vezes as águas leves e límpidas do Jordão. 

 

Prestes a chegar a Cafarnaum,  à distância de meio quilômetro de caminho, entre árvores frondosas, junto ao lago de Genesaré,  uma herdade imponente aguardava as nossas personagens para a sua estação de repouso.

 

Sulpício Tarquínius desvelara-se nas mais íntimas minudências, no que dizia com o bom gosto da época.

 

 

A propriedade estava situada em pequena elevação do terreno, rodeada de árvores frutíferas dos climas frios, pois, há dois mil anos, a Galileia, hoje transformada em poeirento deserto, era um paraíso de verdura. Nas suas paisagens maravilhosas, desabrochavam flores de todos os climas. Seu lago imenso, formado pelas águas cristalinas do rio sagrado do Cristianismo, era talvez a mais piscosa bacia em todo o mundo, descansando as suas vagas mansas e preguiçosas ao pé dos arbustos ricos de seiva, cujas raízes se tocavam do perfume agreste dos eloendros e das flores silvestres. Nuvens de aves cariciosas cobriam, em bandos compactos, aquelas águas feitas de um prodigioso azul celeste, hoje encarceradas entre rochedos adustos e ardentes.

 

Ao norte, as eminências nevosas do Hermon  figuravam-se em linhas alegres e brancas, divisando-se ao ocidente as alevantadas planícies da Gaulanítida  e da Pereia,  envolvidas de sol, formando, juntas, um grande socalco que se alonga de Cesareia de Filipe  para o sul.

 

Uma vegetação maravilhosa e única, operando a emanação incessante do ar mais puro, temperava o calor da região, onde o lago se localiza, muito abaixo do nível do Mediterrâneo. 

 

 

Públio e sua mulher sentiram uma onda de vida nova, que seus pulmões aspiravam a longos haustos.

 

Entretanto, o mesmo não acontecia à pequenina Flávia, cujo estado geral piorava ao extremo, contra todas as previsões.

 

Agravaram-se as feridas que lhe cobriam o corpo magrinho e a pobre criança não conseguia mais arredar pé do leito, onde se conservava em profunda prostração.

 

Acentuava-se, desse modo, a angústia paterna que, embalde, recorreu a todos os meios para melhorar as condições da doentinha.

 

 

Um mês havia transcorrido em Cafarnaum onde, mais em contato com os dialetos do povo já não lhes era desconhecida a fama das obras e das pregações de Jesus.

 

Vezes inúmeras, pensou Públio em dirigir-se ao taumaturgo,  a fim de solicitar a sua intervenção a favor da filhinha, atendendo a um apelo secreto do coração. Reconhecia no íntimo, porém, que semelhante atitude representava humilhação para a sua posição política e social, aos olhos dos plebeus e vassalos do Império, examinando as consequências que poderiam advir de tal procedimento.

 

Não obstante essas ponderações, permitia que numerosos servos de sua casa assistissem, aos sábados, às pregações do profeta de Nazaret, inclusive Ana, que se tomara de respeitosa veneração por aquele a quem os humildes chamavam Mestre.

 

Dele teciam os escravos as mais encantadoras histórias, nas quais o senador nada via, além dos arrebatamentos instintivos da alma popular, se bem não deixasse de o surpreender a opinião lisonjeira de um homem como Sulpício.

 

Uma tarde, porém, os padecimentos da pequenina haviam atingido o auge. Além das feridas que, de muitos anos, se haviam multiplicado no corpinho gracioso, outras úlceras surgiram nas regiões da epiderme, antes violáceas, transformando-lhe os órgãos delicados numa pústula viva.

 

Públio e Lívia, intimamente consternados, aguardavam um fim próximo.

 

 

Nesse dia, após o jantar muito simples, Sulpício demorou-se até mais tarde, a pretexto de confortar o senador com a sua presença.

 

É assim que vamos encontrá-los ambos no terraço espaçoso, onde Públio lhe fala nestes termos:

 

— Meu amigo, que me diz desses rumores aqui propalados acerca do profeta de Nazaret? Habituado a não dar ouvidos à palavra ignorante do povo, gostaria de ouvir novamente as suas impressões sobre esse homem extraordinário.

 

— Ah! sim — diz Sulpício, como quem se esforça por se lembrar de alguma coisa —, intrigado com aquela cena que há tempo presenciei e que tive ocasião de relatar na residência do governador, tenho procurado seguir as atividades desse homem, na medida das minhas possibilidades de tempo.

 

Alguns compatrícios nossos o têm na conta de visionário, opinião que compartilho no que se refere às suas prédicas, cheias de parábolas incompreensíveis, mas não no que respeita às suas obras que nos tocam o coração.

 

 

O povo de Cafarnaum anda maravilhado com os seus milagres e posso assegurar-vos que, em torno dele, já se formou uma comunidade de discípulos dedicados, que se dispõem a segui-lo por toda parte.

 

— Mas, afinal, que ensina ele às multidões? — perguntou Públio, interessado.

 

— Prega alguns princípios que ferem as nossas mais antigas tradições, como, por exemplo, a doutrina do amor aos próprios inimigos e a fraternidade absoluta entre todos os homens. Exorta os ouvintes a buscarem o Reino de Deus e a sua justiça, mas não se trata de , o senhor de nossas divindades; ao contrário, fala de um Pai misericordioso e compassivo, que nos segue do Olimpo  e para quem estão patentes as nossas ideias mais secretas. De outras vezes, o profeta de Nazaret se expressa acerca desse reino do Céu com apólogos interessantes e incompreensíveis, nos quais há reis e príncipes criados pela sua imaginação sonhadora, que nunca poderiam ter existido.

 

 

O pior, todavia — rematou Sulpício, emprestando grave entono às palavras —, é que esse homem singular, com esses princípios de um novo reino, avulta na mentalidade popular como um príncipe surgido para reivindicar prerrogativas e direitos dos judeus, dos quais, talvez, queira assumir a direção algum dia…

 

— Que providência adotam as autoridades da Galileia, no exame dessas ideias revolucionárias? — indagou o senador, com maior interesse.

 

— Aparecem já os primeiros indícios de reação, por parte dos elementos mais ligados a . Há alguns dias, quando passei por Tiberíade,  notei que se formavam algumas correntes de opinião, no sentido de levar o assunto à consideração das altas autoridades.

 

— Bem se vê — exclamou o senador — que se trata de simples homem do povo, a quem o fanatismo dos templos judaicos encheu de pruridos de reivindicações injustificáveis. Suponho que a autoridade administrativa nada tem a recear de semelhante pregador, mestre de uma humildade e fraternidade incompatíveis com as conquistas contemporâneas. Por outro lado, ao ouvir de tua boca a descrição dos seus feitos, sinto que esse homem não pode ser criatura tão vulgar, como vimos supondo.

 

— Desejaríeis conhecê-lo mais de perto? — perguntou Sulpício, atencioso.

 

— De modo algum — respondeu Públio, alardeando superioridade. Tal cometimento de minha parte viria quebrar a compostura dos deveres que me competem como homem de Estado, desmoralizando-se minha autoridade perante o povo. Aliás, considero que os sacerdotes e pregadores da Palestina  deveriam fazer estágios de trabalho e de estudo, na sede do governo imperial, a fim de renovar-se esse espírito de profetismo que aqui se observa em toda parte. Em contato com o progresso de Roma, haveriam de reformar suas concepções íntimas acerca da vida, da sociedade, da religião e da política.

 

 

Enquanto os dois mantêm essa palestra sobre a personalidade e os ensinos do mestre de Nazaret, penetremos no interior da casa.

 

No quarto da doentinha, vamos encontrar Lívia e Ana pensando as feridas que cobriam a epiderme da pequenina enferma, agora transformadas em uma só úlcera generalizada.

 

Ana, coração bondoso e meigo, pouco mais velha que sua senhora, se havia transformado em companheira predileta, no círculo dos seus afazeres domésticos. Naquele deserto de corações, era naquela serva, inteligente e afetuosa, que a alma sensível de Lívia encontrara um oásis para as confidências e lutas de cada dia.

 

— Ah! senhora — exclamava a serva, com sincero carinho a lhe transparecer dos olhos e dos gestos —, guardo no coração profunda fé nos milagres do Mestre, acreditando mesmo que, se levássemos esta criança para receber a bênção de suas mãos, sarariam as chagas e ela ressurgiria para o seu amor maternal… Quem sabe?

 

— Infelizmente — respondeu Lívia, com ponderação e tristeza — eu não me atreveria a lembrar essa providência, consciente de que Públio haveria de recusá-la, dada a nossa posição social; mas, francamente, desejaria ver esse homem caridoso e extraordinário de que sempre me falas.

 

 

— Ainda no último sábado, senhora — respondeu a serva, animada pelas palavras de simpatia que acabava de ouvir —, o profeta de Nazaret recebeu nos braços numerosas crianças.

 

Ao sair da barca de , nós o esperávamos em massa, para lhe beber os ensinos consoladores. Precipitamo-nos para ele, ansiosos todos de receber ao mesmo tempo os sagrados eflúvios da sua presença confortadora, mas, nesse dia, muitas mães compareceram à prédica, conduzindo os filhinhos que se confundiam em algazarra ensurdecedora, como um bando de passarinhos inconscientes. Simão e mais alguns discípulos começaram a repreender severamente os meninos, a fim de que não perdêssemos o encanto suave e doce das palavras do Mestre. Mas, quando menos esperávamos, sentou-se Ele na pedra costumeira e exclamou com indizível ternura: — “Deixai vir a mim os pequeninos, porque o reino do Céu lhes pertence.”  Houve, então, prodigioso silêncio entre os ouvintes de Cafarnaum e os peregrinos que haviam chegado de Corazim  e de Magdala,  enquanto aqueles petizes trêfegos acorriam ao seu regaço amoroso, beijando-lhe a túnica com indefinível alegria.

 

 

Muitas crianças eram enfermas que as mães conduziam às pregações do lago,  para que se curassem de mazelas antigas, ou de doenças consideradas incuráveis…

 

— O que me contas é de uma beleza edificante — exclamou Lívia, profundamente emocionada —, entretanto, possuindo à mão todos os recursos materiais, sinto que não poderei receber os altos benefícios do teu Mestre.

 

— E é pena, senhora, porque muitas mulheres de posição o acompanham na cidade. Não somos apenas os mais humildes que comparecemos às suas predicações, mas numerosas senhoras de destaque em Cafarnaum, esposas de funcionários de e de publicanos, assistem às lições carinhosas do lago, confundindo-se com os pobres e os escravos. E o profeta não desdenha a ninguém. A todos convida para o reino de Deus e sua justiça. Contrariamente a todos os enviados do Céu, que conhecemos, ele esquiva-se dos favorecidos da sorte, para manter relações com as criaturas mais infelizes, considerando a todos como irmãos muito amados do seu coração…

 

 

Lívia escutava a palavra da serva com atenção e embevecimento. A figura daquele homem, famoso e bom, exercia atração singular no seu espírito.

 

E, enquanto seus grandes olhos expressavam o maior interesse pelas narrações encantadoras e simples da serva leal, não reparavam ambas que a doentinha as acompanhava com aguçada curiosidade, característica das almas infantis, não obstante a febre alta que lhe devorava o organismo.

 

Neste comenos o senador, após as despedidas de Sulpício, busca o apartamento da pequena enferma, satisfazendo à sua ansiedade paternal.

 

Diante dele, calam-se as duas mulheres, entregando-se tão somente aos afazeres que as retinham junto ao leito da pequenina, agora gemendo dolorosamente.

 

 

Públio Lêntulus debruçou-se sobre o leito da filha, com os olhos rasos de pranto.

 

Brincou com as suas mãozinhas mirradas, e feridas, fazendo-lhe festas, com o coração tocado de infinita amargura.

 

— Filhinha, que queres hoje para dormir melhor? — perguntou com a voz estrangulada, arrancando lágrimas dos olhos de Lívia.

 

Comprar-te-ei muitos brinquedos e muitas novidades… Dize ao papai o que desejas…

 

Copioso suor empastava as excrescências ulcerosas da doentinha, que deixava transparecer angustiosa ansiedade. Notava-se-lhe grande esforço como se estivesse realizando o impossível para responder à pergunta paterna.

 

— Fala, filhinha — murmurava Públio, sufocado, observando-lhe o desejo de expressar qualquer resposta.

 

Buscarei tudo o que quiseres… Mandarei a Roma um portador, especialmente para trazer todos os teus brinquedos…

 

 

Ao cabo de visível esforço, pôde a pequenina murmurar com voz cansada e quase imperceptível:

 

— Papai… eu quero… o profeta… de Nazaret…

 

O senador baixou os olhos, humilhado e confundido em face do imprevisto daquela resposta, enquanto Lívia e Ana, como se fossem tocadas por força invisível e misteriosa, pelo inopinado da cena, escondiam o rosto inundado de pranto.

 

 


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Marcos 10:13

E traziam-lhe meninos para que lhes tocasse, mas os discípulos repreendiam aos que lhos traziam.

mc 10:13
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