Há dois mil anos...

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Capítulo VII

Teias do infortúnio

SEGUNDA PARTE. • SEGUNDA PARTE.
Parecia que o ano 58 estava destinado a assinalar os mais penosos incidentes para a vida do senador Lêntulus e de sua família.

A morte de Calpúrnia e o falecimento inesperado de Lívia, dolorosos acontecimentos que impuseram à casa um luto permanente, obrigaram Plínio Sevérus a conchegar-se um pouco mais ao ambiente doméstico, onde instituíra uma trégua aos seus desatinos de homem ainda novo, para viver em relativa calma ao lado da esposa.

Aurélia, contudo, na violência de suas pretensões, não descansava. Conseguindo introduzir uma serva astuta junto de Flávia, de conformidade com antigo projeto da sua mentalidade doentia, iniciou a sinistra execução de um plano diabólico, no sentido de envenenar, vagarosamente, a rival retraída e desditosa.

A princípio, observou a filha do senador que lhe surgiam algumas erupções cutâneas que, consideradas de somenos importância, foram tratadas tão somente à pasta de miolo de pão misturado ao leite de jumenta, medicamento havido na época, como específico dos mais eficazes para a conservação da pele. A esposa de Plínio, todavia, queixava-se incessantemente de fraqueza geral, apresentando o mais profundo desânimo.

 

Quanto a Plínio, o retomar a normalidade da vida pública e entregar-se, de novo, ao violento amor de Aurélia, foi questão de poucos dias, regressando à vida espetaculosa, com a amante e, agora, com a situação sentimental muito agravada pelas caluniosas denúncias de Saul, acerca das relações afetuosas de Agripa com a esposa.

Plínio Sevérus, embora generoso, era impulsivo: no regime familiar, seu espírito era o desses tiranos domésticos, que, adotando a conduta mais desregrada e incompreensível, não toleram a mínima falta no santuário da família. A despeito de sua orientação errônea e condenável, passou a vigiar constantemente o irmão e a esposa, com a feroz impulsividade do leão ofendido.

Saul de Gioras, por sua vez, despeitado com a sublime afeição fraternal entre Flávia e Agripa, o qual continuava com a dedicação silenciosa do seu amor de renúncia, não perdia ensejo para envenenar o coração impetuoso do oficial, levando-lhe as calúnias mais torpes e injustificáveis.

Agripa, na sua generosidade e no seu sentimentalismo, não podia adivinhar as ciladas que o enredavam na vida comum e prosseguia com a preciosa atenção de sua amizade, junto da mulher que não podia amá-lo senão com sublimado amor fraterno.

O ex-escravo dos Sevérus não perdia contudo as esperanças procurando frequentemente o velho Araxes, que aumentava de cupidez e ambição à medida que se lhe multiplicavam os anos, aguardava ansiosamente o instante de realizar sua apaixonada aspiração.

Observando que Flávia Lentúlia dispensava funda afeição a Agripa, não trepidou em ver sinceramente nos seus menores gestos uma prova de amor intenso e correspondido, procurando insinuar-se por todos os modos, a fim de captar-lhe, igualmente, o interesse e a atenção.

 

Uma noite, depois de mais de dois meses de expectativa ansiosa para atingir seus fins ignóbeis, conseguiu ficar só, absolutamente só, em companhia da jovem senhora, que se mantinha em breve repouso em largo divã do espaçoso terraço.

Do alto, contemplavam-se os mais belos panoramas da cidade, então clareada pelo brilho das primeiras estrelas, na languidez suave do crepúsculo. As brisas cariciosas da tarde tranquila traziam sons de alaúdes e harpas, tangidos nas vizinhanças, como se fossem vozes harmoniosas do seio imenso da noite.

Saul fixou a mulher cobiçada, contemplando-lhe o formoso e delicado semblante de madona, de uma palidez de neve, sob o domínio de um langor doentio e inexplicável!… Aquela criatura representava o objeto de todas as suas aspirações violentas e rudes, a meta da sua felicidade impossível e impetuosa. Na materialidade dos seus sentimentos, não a podia amar como se fora um irmão, e sim com a brutalidade dos seus impuros desejos.

— Senhora — disse resoluto, depois de fitar-lhe o rosto demoradamente —, há muitos anos espero um minuto como este, para poder confessar-vos a enorme afeição que vos dedico. Quero-vos acima de tudo, até da própria vida! Sei que para mim estais num plano inacessível, mas, que fazer, se não consigo dominar esta adoração, este intenso amor de minhalma?

 

Flávia abriu desmesuradamente os olhos serenos e tristonhos, tomada de penosa surpresa…

— Senhor Saul — revidou corajosamente, triunfando da sua emoção —, serenai vosso ânimo. Se me tendes tamanha afeição, deixai-me no caminho dos meus deveres, onde precisa conservar-se toda mulher ciosa da sua virtude e do seu nome! Calai, portanto, vossas emoções neste sentido, porque o amor que me confessais não pode passar de um desejo violento e impuro!…

— Impossível, senhora! — ajuntou o liberto, desesperado. — Já fiz tudo por esquecer-vos… Tenho feito tudo o que era possível para afastar-me definitivamente de Roma, desde o dia infausto em que vos vi pela primeira vez!… Regressei para Massília decidido a nunca mais voltar, porém, quanto mais me apartava da vossa presença, mais se me enchia a alma de tédio e de amargura! Fixei-me aqui, novamente, onde tenho vivido da minha desventura e das minhas tristes esperanças!… Por mais de dez anos, senhora, tenho esperado pacientemente. Sempre tributei respeito às vossas indiscutíveis virtudes, aguardando que um dia vos cansásseis do esposo infiel que o destino colocou, impiedosamente, no vosso caminho!…

Agora, pressinto que esgotastes o cálice das amarguras domésticas, porque não hesitastes em ceder ao afeto de Agripa… Desde que vos vi na companhia de um homem que não é o vosso marido, tremo de ciúmes, porque sinto que fostes talhada apenas para mim… Ardo em zelos, senhora, e todas as noites sonho intensamente com os vossos carinhos e com a doce ternura de vossas palavras, que me enchem a alma toda, como se de vós tão somente dependesse toda a felicidade da minha vida!…

Atendei aos apelos da minha afeição interminável! Não me façais esperar mais tempo, porque eu poderia morrer!…

 

Flávia Lentúlia ouvia-o, agora, entre surpreendida e aterrada. Quis levantar-se, mas, faltou-lhe o ânimo preciso. Mesmo assim, teve a coragem necessária para responder-lhe:

— Enganai-vos! — entre mim e Agripa existe apenas uma afeição santificada e pura, de irmãos que se identificam nas provações e nas lutas da vida.

Não aceito as vossas insinuações acrimoniosas à vida particular de meu marido, porque, tenha ele a conduta que lhe aprouver na existência, eu devo ser a sentinela do seu lar e a honra do seu nome…

Se puderdes compreender o respeito devido a uma mulher, retirai-vos daqui, porque os vossos propósitos de traição me causam a mais funda repugnância!

— Deixar-vos?! Nunca! … — exclamou Saul, com terrível entono. — Esperar tantos, anos e nada conseguir? Nunca, nunca!…

E avançando para a senhora indefesa, que se levantara num esforço supremo, abraçou-lhe o busto, em ânsias apaixonadas, retendo-a nos braços impulsivos, por um rápido minuto.

Saul, todavia, na sua excitação e terrível impulsividade, não teve ânimo para resistir à força sobre-humana com que a pobre senhora se defendeu naquele transe penoso para a sua alma sensível, e perdeu a presa que se lhe escapou inopinadamente das mãos criminosas, descendo imediatamente aos seus aposentos, onde se recolheu, chorando as lágrimas da sua dignidade ofendida, mas evitando qualquer nota escandalosa sobre o incidente.

 

Só no dia seguinte, à noite, Plínio Sevérus regressou a casa, encontrando a esposa desalentada e abatida.

Censurando-lhe a ausência, na intimidade conjugal, o esposo infiel respondeu-lhe secamente:

— Mais uma cena de ciúmes? Bem sabes que isso é inútil!

— Plínio, meu querido — esclareceu entre lágrimas —, não se trata de ciúme, mas da justa defesa de nossa casa!…

E, em rápidas palavras, a desventurada criatura o pôs ao corrente de todos os fatos; todavia, o oficial esboçou um sorriso de incredulidade, acentuando com certa indiferença:

— Se esta longa história é mais um artifício de mulher ciumenta, para me reter na insipidez do ambiente doméstico, todo o esforço é dispensável, porque Saul é o meu melhor amigo. Ainda ontem, quando me encontrava em sérias aperturas financeiras para resgatar algumas dívidas, foi ele quem me emprestou oitocentos mil sestércios. Seria melhor, portanto, que prezasses mais alto a honra do nosso nome, abandonando as tuas relações com Agripa, já excessivamente comentadas, para que eu alimente qualquer dúvida!

E, assim falando, retirou-se novamente para os prazeres da vida noturna, enquanto a consorte amargava, em silêncio, o seu inominável martírio moral, sentindo-se abandonada e incompreendida, sem qualquer esperança.

 

Alguns dias correram lentos, amargos, dolorosos…

Flávia, dado o seu natural retraimento feminino, não teve coragem de confiar ao pai, já de si tão acabrunhado pelos golpes da vida, a sua enorme amargura.

Agripa, observando-lhe o abatimento, buscava confortar-lhe o coração com generosas palavras, examinando as perspectivas de melhores dias no porvir.

A pobre senhora, todavia, definhava a olhos vistos, sob o domínio das moléstias inexplicáveis que lhe dominavam os centros de força e sob a tortura íntima dos seus penosos segredos.

Saul de Gioras, como se tivesse todos os seus instintos açulados por aquele minuto em que tivera entre os braços impetuosos a mulher dos seus desejos impulsivos, jurava, intimamente, possuí-la a qualquer preço, enchendo-se dos mais terríveis propósitos de vingança contra o filho mais velho de Flamínio. Foi assim que continuou a frequentar o palácio do Aventino, tomado das intenções mais sinistras.

 

Respeitando as antigas tradições da família Sevérus, que sempre fizera questão de proporcionar àquele liberto um perfeito tratamento de amigo íntimo, Públio Lêntulus, embora a pouca simpatia que lhe inspirava, concedia-lhe o máximo de liberdade na sua residência, sem de leve suspeitar dos seus propósitos condenáveis. Agora, Saul não buscava a intimidade da família nem procurava avistar-se, de modo algum, com a esposa de Plínio ou com o pai, conservando-se na companhia dos servos da casa ou permanecendo nos aposentos particulares de Agripa ou do irmão, que nunca lhe haviam negado a mais sincera confiança.

Da sua permanência nas sombras, todavia, procurava observar os mínimos gestos do irmão mais velho de Plínio, que, atendendo à situação de abatimento de Flávia Lentúlia, se conservava horas a fio, muitas vezes, em companhia do velho senador, nos seus apartamentos privados, ora prolongando as suas tristes esperanças no futuro, com a possíveis compreensão do irmão, ora dando-lhe a conhecer os versos mais admirados da cidade, comentando-se, fraternalmente, as bagatelas encantadoras da vida social.

 

Diariamente, contudo, o sicofanta  Saul procurava o marido de Flávia, para colocá-lo ao corrente de fatos injustificáveis e inverossímeis, a respeito da vida íntima de sua mulher.

Plínio Sevérus dava todo o crédito aos desarrazoamentos do falso amigo, afervorando cada vez mais sua dedicação a Aurélia, que lhe empolgava o coração, assediado e enceguecido pelas mais torpes tentações da vida material.

Envenenado pelas intrigas criminosas e reiteradas de Saul, licenciara-se o oficial, de modo a realizar uma viagem às Gálias, com a amante, por satisfazer-lhe caprichosos desejos há muito manifestados.

No dia da partida para Massília,  de onde pretendia demandar o interior da província, foi procurado por Saul na residência de Aurélia, a qual ficava próximo do Fórum,  ouvindo-lhe, em febre de ódio, as mais tremendas afirmativas, terminadas com esta aleivosa sugestão:

— Se quiseres verificar por ti mesmo a traição de Agripa e tua mulher, volta hoje à noite, furtivamente, à tua casa e busca penetrar inesperadamente no teu quarto. Não precisarás, então, dos zelos da minha dedicação amiga, porque encontrarás teu irmão em atitudes decisivas.

 

Naquele momento, Plínio Sevérus ultimava os preparativos de viagem, tendo mesmo, pela manhã, apresentado suas despedidas em casa, aos mais íntimos familiares; para justificar os imperativos de sua ausência, alegara determinações expressas da chefia de suas atividades militares, embora fossem muito diversos os verdadeiros e inconfessáveis motivos da partida.

Ouvindo, entretanto, as graves denúncias do liberto judeu, o oficial preparou-se para enfrentar qualquer eventualidade, dirigindo-se, à noite, para o palácio do Aventino, com o espírito atormentado por tigrinos sentimentos.

O liberto, porém, que planejava executar seus projetos criminosos, nas suas intenções impiedosas e terríveis, postou-se, à noitinha, com a cumplicidade natural de todos os servidores da casa, nos apartamentos particulares de Agripa, procedendo de tal modo que os próprios escravos não poderiam atinar com a sua permanência nos aposentos referidos.

 

À noite, Plínio Sevérus procurou a casa, inopinadamente, com surpresa para alguns criados, que tinham ciência de suas despedidas e, sem dizer palavra, enceguecido pelas calúnias injuriosas do falso amigo, penetrou cautelosamente no gabinete da esposa, ouvindo a voz despreocupada do irmão, embora não conseguisse identificar o que dizia.

Abrindo um pouco a cortina sedosa e delicada, viu Agripa nos seus gestos de carinho íntimo o fraterno, acariciando as mãos de Flávia, com um leve e doce sorriso.

Por muito tempo observou-lhes, ansioso, os menores gestos, surpreendendo-lhes as recíprocas demonstrações de suave estima fraternal, representados, agora, a seus olhos cegos de ódio e ciúme, como os mais francos indícios de prevaricação e adultério.

No auge da desesperação, abriu as cortinas num gesto brusco penetrando a câmara conjugal, como se fora um tigre atormentado.

— Infames! — acentuou em voz baixa e enérgica, procurando evitar a escandalosa assistência dos criados. — Então, é deste modo que manifestam o respeito devido à dignidade do nosso nome?

 

Flávia Lentúlia, com os seus padecimentos físicos fundamente agravados, fez-se pálida de neve, enquanto Agripa enfrentava o terrível olhar do irmão, singularmente surpreendido.

— Plínio, com que direito me insultas desta forma? — perguntou ele energicamente. — Saiamos daqui, imediatamente. Discutiremos as tuas injuriosas interpelações no meu quarto. Aqui permanece, uma nobre criatura enferma e abandonada pelo esposo, que lhe humilha o nome e os melindres com a vileza de um proceder criminoso e injustificável, uma senhora que requer o nosso amparo e o nosso respeito!…

Os olhos de Plínio Sevérus fuzilavam de ódio, enquanto o irmão se levantou serenamente, retirando-se para os seus aposentos, acompanhado do oficial que fremia de raiva, agravada pela humilhação que lhe infligia a calma superior do adversário.

Chegados, porém, aos aposentos de Agripa, o impulsivo oficial, depois de numerosas acusações e reprimendas, explodia em exclamações deste jaez:

— Vamos! Explica-te, traidor!… Então, lanças a lama da tua ignomínia sobre o meu nome e te acovardas nesta serenidade incompreensível?!

— Plínio — disse ponderadamente Agripa, obrigando o interlocutor a calar por alguns momentos —, é tempo de pores termo aos teus desatinos.

Como poderás provar semelhante calúnia contra mim, que sempre te desejei o maior bem? Qualquer comentário menos digno, acerca da conduta de tua mulher, é um crime imperdoável. Falo-te, nesta hora grave dos nossos destinos, invocando a memória irrepreensível de nossos pais e o nosso passado de sinceridade e confiança fraterna…

 

O impetuoso oficial quase se imobilizara, como um leão ferido, ouvindo essas ponderações superiores e calmas, enquanto Agripa continuava a externar suas impressões mais íntimas e mais sinceras:

— E agora — prosseguia com serenidade —, já que reclamas um direito que nunca cultivaste, em vista da sucessão interminável dos teus desatinos na vida social, devo afirmar-te que adorei tua mulher acima de tudo, em toda a vida!… Quando gastavas a tua mocidade junto do espírito turbulento de Aurélia, vimos Flávia, na sua juventude, pela primeira vez, logo após o seu regresso da Palestina e descobri nos seus olhos a claridade afetuosa e terna que deveria iluminar a placidez do lar que eu idealizei nos dias que se foram!… Mas descobriste, simultaneamente, a mesma luz e eu não hesitei em reconhecer os direitos que te cabiam ao coração, porque ela correspondeu à intensidade do teu afeto, parecendo-me unida a ti pelos laços indefiníveis de santificado mistério!… Flávia te amava, como sempre te amou, e a mim só competia esquecer, buscando ocultar as minhas ansiedades torturantes e angustiosas!…

Ao ensejo do teu casamento, não resisti vê-la partir nos teus braços e, depois de ouvir a palavra materna, amorosa e sábia, demandei outras terras com o coração esfacelado! Por dez anos amargurosos e tristes, peregrinei entre Massília e a nossa propriedade de Avênio, em aventuras loucas e criminosas. Nunca mais pude acarinhar a ideia da constituição de uma família, atormentado constantemente pelas recordações da minha desventura silenciosa e irremediável.

 

Ultimamente, voltei a Roma com os derradeiros resquícios da minha ilusão dolorosa e malograda…

Encontrei-te no abismo das afeições ilícitas e não te condenei os deslizes injustificáveis.

Sei que gastaste três quartas partes dos nossos bens comuns, satisfazendo a louca prodigalidade de tuas aventuras infelizes e degradantes, e não te censurei o procedimento insólito.

E aqui, nesta casa, sob este teto que constitui para nós ambos o prolongamento carinhoso do teto paternal, não tenho sido para a tua nobre mulher senão um irmão dedicado e amigo!…

Vendo-se acusado, claramente, por suas faltas e sentindo-se ferido nas suas vaidades de homem, Plínio Sevérus reagiu com mais ferocidade, exclamando exaltadamente na sua desesperação:

— Infame, é inútil aparentares esta superioridade inacreditável! Somos iguais, nos mesmos sentimentos, e não creio na tua dedicação desinteressada nesta casa. Há muito tempo vives com Flávia, ostensivamente, em aventuras criminosas, mas resolveremos, agora, toda a nossa questão pela espada, porque um de nós deve desaparecer!…

 

E, arrancando a arma de que fora munido para qualquer eventualidade, avançou decididamente para o irmão, que cruzou os braços, serenamente, esperando-lhe o golpe implacável.

— Então, onde se encontram os teus brios de homem? — exclamou Plínio, exasperado. — Esta serenidade expressa bem a tua covardia… Coloca-te em defesa da vida, porque quando dois irmãos disputam a mesma mulher, um deles deve morrer! Agripa Sevérus, porém, sorriu tristemente, retorquindo:

— Não retardes muito a consumação dos teus propósitos, porque me prestarás o bem supremo da sepultura, já que a minha vida, com as suas torturas de cada instante, nada mais representa que um caminho escabroso e longo para a morte.

Reconhecendo-lhe a nobreza e o heroísmo, mas acreditando na infidelidade da mulher, Plínio guardou novamente a espada, exclamando:

— Está bem! Eu podia eliminar-te, mas não o faço, em consideração à memória de nossos pais inesquecíveis; todavia, continuando a acreditar na tua infâmia, partirei daqui para sempre, levando no íntimo a certeza de que tenho em teu espírito de traidor o meu maior e pior inimigo.

Sem mais palavra, Plínio retirou-se a passos largos, enquanto o irmão, caminhando até a porta, lançava-lhe um derradeiro apelo afetuoso, para que não se fosse.

 

Alguém, todavia, acompanhara a cena, detalhe por detalhe. Esse alguém era Saul que, saindo do seu esconderijo e apagando inopinadamente a luz do quarto, alcançou Agripa num salto certeiro, pelas costas, vibrando-lhe violento golpe. O pobre rapaz caiu redondamente numa poça enorme de sangue, sem que lhe fosse possível articular uma palavra. Em seguida ao ato criminoso, fugiu o liberto, afetando despreocupação, sem que ninguém pudesse atinar com a dolorosa ocorrência.

No seu quarto, porém, Flávia Lentúlia se surpreendia com a demora da solução de um caso em que se via envolvida e também considerado, por ela, à primeira vista, como um acontecimento sem importância.

Levantou-se, depois de considerável esforço, dirigindo-se à porta que comunicava os apartamentos de Agripa com o peristilo, mas, surpreendida com a escuridão e silêncio reinantes, apenas escutou, vindo do interior, um leve rumor, semelhante aos sons roucos de uma respiração fatigada e opressa.

Dominada por dolorosos pressentimentos, a desventurada criatura sentiu bater-lhe o coração descompassadamente.

 

A ausência de luz, aquele ruído de respiração estertorosa e, sobretudo, o profundo e pavoroso silêncio, fizeram-na recuar, buscando o socorro e a experiência de Ana, que lhe conquistara igualmente o coração, pela dedicação e pela humildade, em todos os dias daquele amargurado período da sua existência.

Gozando do respeito e da estima de todos, a velha criada de Lívia era, agora, quase a governanta da casa, a quem, por determinação dos senhores, todas as escravas do palácio do Aventino deviam obediência.

Chamada por Flávia aos seus aposentos particulares, a velha servidora dos Lêntulus, depois de ouvir a apressada confidência da senhora, compartilhando-lhe dos receios, acompanhou-a ao quarto de Agripa, em cuja porta de entrada também parou, pensativa, embora já não mais se ouvisse a respiração opressa, observada minutos antes pela esposa de Plínio.

— Senhora — disse afetuosa —, estais abatida e ainda necessitais de repouso. Voltai ao quarto; se algo houver que justifique os vossos receios, procurarei resolver o assunto junto de vosso pai, a quem cientificarei do que houver, lá no seu gabinete particular.

— Agradecida, Ana — respondeu a senhora, visivelmente emocionada —, concordo contigo, mas esperarei aqui no peristilo o resultado de tuas providências.

 

Com uma prece, a antiga criada penetrou no aposento, fazendo um pouco de luz e parando o olhar, quase estarrecida.

No tapete, o cadáver de Agripa Sevérus, caído de borco, descansava numa poça de sangue, que ainda corria do profundo ferimento aberto pela arma homicida de Saul.

Ana precisou mobilizar todas as reservas de serenidade da sua fé, para não gritar escandalosamente, alarmando a casa inteira. Ela, porém, que tantos padecimentos havia já experimentado em todo o curso da vida, não tinha grande dificuldade em juntar mais uma nota angustiosa ao concerto de suas amarguras, sofridas sempre com resignação e serenidade. Todavia, sem poder dissimular a angústia e a profunda palidez, voltou novamente ao peristilo, exclamando algo inquieta, para Flávia Lentúlia, que lhe observava os mínimos gestos, ansiosamente.

— Senhora, não vos assusteis, mas o senhor Agripa está ferido…

E aos primeiros movimentos de curiosidade angustiosa da filha do senador, a qual se lembrava da profunda desesperação do esposo, momentos antes, Ana acalmou-a com estas palavras:

— Não temos tempo a perder! Procuremos o senador, para as primeiras providências; contudo, suponho que devo cuidar sozinha dessa tarefa, aconselhando-vos a buscar a tranquilidade do vosso quarto.

 

Mas, silenciosas e inquietas, dirigiram-se as duas apressadamente ao gabinete de Públio, absorvido em numerosos processos políticos, no seio tranquilo da noite.

— Agripa, ferido?! — perguntou altamente surpreendido o senador, depois de se inteirar da ocorrência pela palavra de Ana. — Mas, quem teria sido o autor de semelhante atentado nesta casa?

— Meu pai — respondeu Flávia, entre lágrimas —, ainda há pouco, Plínio e Agripa tiveram séria altercação no interior dos meus aposentos!…

Públio Lêntulus percebeu o perigo das palavras confidenciais da filha, em tais circunstâncias, e, como não podia acreditar que os filhos de Flamínio, sempre tão unidos e generosos, fossem ao extremo das armas, acentuou decisivamente:

— Minha filha, não acredito que Plínio e Agripa se abalançassem a tais extremos.

E como estivessem na presença de Ana, que por mais conceituada que fosse, agora, na sua confiança pessoal, não podia modificar a estrutura de suas rígidas tradições familiares, acrescentou, como se quisesse prevenir o espírito da filha contra qualquer revelação inconveniente que pudesse envolver o seu nome, nos escândalos sociais, irremediáveis:

— Além disso, não me pareces muito certa em tuas lembranças, porque Plínio se despediu de manhã, seguindo viagem para Massília. Não podemos esquecer esta circunstância.

 

Não se viu algum desconhecido nesta casa?

— Senhor — respondeu Ana, com humildade —, há alguns minutos vi que o senhor Saul se retirava apressado lá do quarto do ferido. De acordo com as minhas observações e atenta à sua familiaridade com os vossos amigos, suponho-o pessoa indicada para nos dar qualquer esclarecimento.

Os olhos do velho senador brilharam estranhamente, como se houvesse encontrado a chave do enigma.

Nesse instante, porém, enquanto organizava os seus papéis, apressadamente, a fim de prestar os primeiros socorros ao ferido, Flávia Lentúlia, como se as observações de Ana lhe suscitassem novas explicações, rompeu soluçante.

— Meu pai, meu pai, só agora me recordo de que vos deveria cientificar de coisas muito graves!…

— Filha — acudiu com decisão —, estás doente e fatigada. Recolhe-te ao quarto, procurarei a tudo remediar!… É muito tarde para qualquer ponderação. As coisas graves são sempre más e mal que não se corta pela raiz, com o esclarecimento necessário, é sempre uma semente de calamidade guardada em nosso coração, para rebentar em lágrimas de amarguras, nas horas inesperadas da vida!… Falaremos, pois, mais tarde. Cumpre, agora, providenciar o que seja mais urgente e oportuno.

 

Retirando-se apressado, com a serva, em demanda dos apartamentos do rapaz, notou que Flávia obedecia, sem discussão, às suas determinações, recolhendo-se ao quarto.

Penetrando nos aposentos de Agripa, em companhia da velha serva, Públio Lêntulus conseguiu medir toda a extensão da tragédia ali desenrolada, sob o seu teto respeitável.

Fechando a porta de acesso, o senador verificou que o filho mais velho do seu inesquecível Flamínio estava morto, restando saber os íntimos detalhes daquele drama doloroso, cujo fim angustiado era a única cena que ali se deparava.

Ajoelhando-se ao lado do cadáver, no que foi acompanhado pela serva e amiga leal, falou compungidamente:

— Ana, é muito tarde!… O meu pobre Agripa já não vive, nem haveria possibilidade de socorro para um ferimento desta natureza!… Parece haver expirado há poucos momentos!…

Alçando ao Alto o olhar marejado de lágrimas, exclamou amarguradamente:

— Ó manes de meu desventurado filho, acolhei as nossas súplicas pelo descanso perpétuo de sua alma!…

Todavia, aquela prece morrera-lhe no íntimo.

A voz tornara-se-lhe frouxa e oprimida. Aquele espetáculo hediondo abalara-o profundamente. Queria falar, sem o conseguir, porquanto tinha a garganta como que dilacerada e rebelde sob a força dos singultos do coração, que lhe morriam latentes na soledade da imperiosa fortaleza espiritual.

 

Ana o contemplou aflita, porque seus olhos nunca o haviam observado em atitudes tão íntimas, em todo o longo tempo de serviço naquela casa.

Públio Lêntulus, aos seus olhos, era sempre o homem frio e impiedoso, em cujo peito pulsava um coração de ferro, que não podia vibrar senão para as loucas vaidades mundanas.

Naquele instante, contudo, entre assustada e comovida, observava que também o senador tinha lágrimas para chorar. De seus olhos sempre altivos, caíam lágrimas ardentes, que rolavam, silenciosas e tristes, sobre a cabeça inerte do rapaz, também considerado por ele um filho, como se nada mais lhe restasse, além do consolo supremo de abraçar carinhosamente os seus despojos, através do véu escuro de suas dúvidas angustiosas.

Ana, profundamente tocada pela amargura daquela cena íntima, exclamou com humildade, desejosa de confortar a dor imensa daquele mal sem remédio:

— Senhor, tenhamos coragem e serenidade. Nas minhas orações obscuras, sempre peço ao profeta de Nazaret que vos ampare do Céu, confortando-vos o coração sofredor e desalentado!

 

O pensamento do senador vagava no dédalo das dúvidas tenebrosas. Cotejando as observações da filha e as palavras de Ana, buscava descobrir, no íntimo, a intuição sobre a culpabilidade do delito. A qual dos dois, Plínio ou Saul, deveria imputar a autoria do atentado nefando? Ele, que decidira tantos processos difíceis na sua vida, ele, que era senador e não perdia também ensejo de participar dos esforços da edilidade romana, sentia agora a dor suprema de exercer a justiça em sua própria casa, na perspectiva da destruição de toda a ventura dos seus filhos muito amados!…

Ouvindo, porém, as expressões consoladoras e carinhosas da serva, recordou a figura extraordinária de Jesus Nazareno, cuja doutrina de piedade e misericórdia a tantos fortalecia para afrontar as situações mais ríspidas da vida, ou para morrer, heroicamente, como sua própria mulher. Dirigindo-se, então, à criada, com intimidade imprevista, em gesto comovedor de simplicidade generosa, qual a serva jamais lhe observara, em qualquer circunstância da vida doméstica, disse:

— Ana — nunca deixei de ser um homem enérgico, em toda a vida, mas chega sempre um momento em que o nosso coração se sente acabrunhado diante da rudeza das lutas que o mundo nos oferece com as suas desilusões amargas e dolorosas! Se és tão somente uma serva, eu sei hoje apreciar-te o coração, embora tardiamente!…

 

Uma lágrima espontânea embargava-lhe a voz, porém o velho patrício continuava:

— Em toda a minha existência, tenho julgado uma imensidade de processos de várias naturezas, relativos à justiça do mundo; mas, de tempos a esta parte, parece-me que estou sendo julgado pela força incoercível de uma justiça suprema, cujos tribunais não se encontram na Terra!…

Desde a morte de Lívia, sinto o coração modificado, a caminho de uma sensibilidade, para mim, até então desconhecida.

A aproximação da velhice parece um prenúncio da morte de todos os nossos sonhos e esperanças!…

Diante deste cadáver, que, certamente, vai aumentar a sombra dos nossos segredos, de família, sinto quão dolorosa é a tarefa de justificar os nossos ente amados; e, já que te referes ao Mestre de Nazaret, cuja doutrina de paz e fraternidade a tantos tem ensinado a morrer com resignação e heroísmo supremos, pela vitória da cruz dos seus martírios terrestres, como procederia ele num caso destes, em que as mais tremendas dúvidas me pairam no coração, quanto à culpabilidade de um filho muito amado?

— Senhor — respondeu Ana, com humildade, fundamente comovida ante aquela prova de consideração e afeto —, muitas vezes Jesus nos ensinou que jamais devemos julgar, para não sermos também julgados.

 

O senador se surpreendia, ao receber, de uma criatura tão simples e tão inculta aos seus olhos, essa maravilhosa síntese da filosofia humana, repassando, no espírito, o seu doloroso pretérito.

— Mas — aventou, como se quisesse justificar-se a si mesmo dos erros profundos do seu passado de homem público — os que não julgam perdoam e esquecem; e, se mandam as leis da vida que sejamos agradecidos ao bem que se nos faça, não podemos perdoar ao mal que se nos atira no caminho!…

Ana, porém, não perdeu o ensejo de consolidar o ensinamento evangélico, acrescentando com doçura:

— Mesmo na minha terra, a Lei antiga mandava que se cobrasse olho por olho e dente por dente, mas Jesus de Nazaret, sem destruir a essência dos ensinos do Templo, esclareceu que os que mais erram no mundo são os mais infelizes e mais necessitados do nosso amparo espiritual, recomendando, na sua doutrina de amor e caridade, não perdoássemos uma vez só, mas setenta vezes sete vezes.

 

Públio Lêntulus admirava-se de aprender aqueles generosos conceitos da sua criada, dentro dos princípios do perdão irrestrito. Perdoar? Nunca o fizera em suas porfiadas lutas no mundo. Sua educação não admitia piedade ou comiseração para os inimigos, porque todo perdão e toda humildade significavam, para os de sua classe, traição ou covardia.

Lembrava-se, porém, agora, de que em numerosos processos políticos poderia haver perdoado e que, em muitas circunstâncias da sua vida, poderia ter fechado os olhos da sua severidade com amoroso esquecimento.

Sem saber a razão, como se uma energia ignorada lhe reconduzisse o pensamento aos tempos idos, suas lembranças se transportaram ao período remoto de sua viagem à Judeia, revendo com os olhos da imaginação em que, com o seu rigorismo, escravizara impiedosamente um mísero rapaz. Sim, também aquele jovem se chamava Saul e ele trazia agora o cérebro ralado por dúvidas amargosas, entre aquele Saul, liberto dos seus amigos, e a figura de Plínio, sempre guardada no seu conceito num halo de amor e generosidade.

Perdoar?

E o pensamento do senador se quedava em meditações amargas e penosíssimas, naqueles minutos angustiados e longos. Era, talvez, uma das poucas vezes na vida, em que o seu cérebro duvidava, receoso de fazer cair a austeridade do julgamento sobre a fronte de um filho muito querido.

 

Mas, saindo dessa apatia de alguns minutos, exclamou com resolução:

— Ana, o profeta Nazareno devia ser, de fato, uma figura divina aqui na Terra!… Eu, porém, sou humano e careço de forças novas para viver uma existência fora de minha época… Quero perdoar e não posso… Quero julgar neste caso e não sei como faze-lo… Mas, hei-de saber decidir, quanto à solução deste angustioso problema! Farei o possível por observar os preceitos do teu mestre, guardando uma atitude de silêncio, até que venha a conhecer o verdadeiro culpado, quando, então, buscarei não julgar como os homens, mas pedir a essa justiça divina que se manifeste, amparando meus pensamentos e esclarecendo os meus atos… E como se retomasse a sua energia usual para as lutas da vida, o velho patrício sentenciou:

— Agora, tratemos da vida nas suas realidades dolorosas.

Colocou o cadáver de Agripa no leito, e, recomendando à serva que preparasse o espírito da filha, amparando-lhe o coração no angustioso transe abriu as portas do aposento, requisitou a presença de todos os fâmulos da casa, levando a ocorrência ao conhecimento das autoridades e procedendo, simultaneamente, a rigoroso inquérito, a fim de apurar a procedência do crime, embora um episódio daquela natureza fosse considerado vulgaríssimo nos dias atribulados da Roma de Domício Nero.

 

Alguns criados alegavam ter visto Plínio Sevérus com o irmão, durante a noite; mas a palavra do senador anulava-lhes as informações, com a afirmativa de que o irmão da vítima havia partido, durante o dia, em demanda do porto de Massília.

Saul era, desse modo, a pessoa naturalmente indicada para prestar declarações e, antes que realizassem as cerimônias fúnebres, o senador supunha ter razões para crer na sua culpa, observando-lhe as evasivas e alusões descabidas, que não satisfaziam às exigências da sua perquirição psicológica. Suas afirmações e indiretas não coincidiam com asseverações incisivas de Ana, cuja retidão de palavra ele bem conhecia. Em alguns tópicos de suas informações, negou estivesse presente nos aposentos de Agripa e isso foi o bastante para que o Senador verificasse que mentia.

Quanto a Plínio, não fora de fato encontrado, obtendo-se tão somente a lacônica participação da sua partida para Massília, o que realmente ocorrera na mesma noite da tragédia, depois da altercação decisiva com o irmão, no palácio do Aventino.

E, assim, em companhia de Aurélia, demandava ele as Gálias, em suntuosa galera, singrando as águas calmas do antigo mar romano.

 

O senador, porém, apenas desejava ouvir melhor as confidências da filha, para arrancar a confissão suprema do mísero liberto de Flamínio, de cuja culpabilidade não tinha mais dúvida.

Procurou, dessarte, realizar com a maior descrição os funerais do filho do seu inesquecível amigo, aos quais Saul de Gioras teve a desfaçatez de assistir, com toda a serenidade venenosa do seu espírito mesquinho.

Sob o efeito pernicioso de tóxicos letais, que lhe haviam sido aplicados por Ateia, a serva traidora, paga por Aurélia, a qual, na sua inconsciência, havia envenenado todos os cosméticos de uso da sua ama, destinados ao tratamento da pele e dos cílios, Flávia Lentúlia tinha, agora, todos os padecimentos físicos singularmente agravados, além da terrível situação moral em face da penosa ocorrência e de seu acabrunhamento por força de angustiosas dúvidas.

Aquele mal da infância parecia reviver, porque o corpo novamente se abria em chagas dolorosas, enquanto os olhos pareciam seriamente atacados de moléstia implacável.

Três dias depois das exéquias de Agripa, Públio Lêntulus, fundamente penalizado, ouviu-lhe o depoimento íntimo e angustioso, com o máximo de atenção amorosa e interessada. Findo o relato minucioso da filha, cujas desventuras conjugais lhe tocavam o âmago do coração, o velho senador requereu novo interrogatório de Saul, com a sua presença, mas, enviando emissário à procura do liberto de Flamínio, ficara atônito com uma nova surpresa.

 

Saul de Gioras, depois de responder às arguições particulares de Públio Lêntulus, quando ainda não se haviam realizado os funerais de Agripa Sevérus, percebeu claramente a atitude mental daquele para consigo, concluindo que lhe não seria possível enganar o tato psicológico do velho senador.

Dois dias após as cerimônias fúnebres, o liberto procurou Araxes no seu miserável refúgio do Esquilino, com o espírito exacerbado e inquieto.

Crendo sinceramente nas intervenções maravilhosas do mago, à vista das suas faculdades divinatórias, aproveitadas, aliás, por forças tenebrosas do Plano invisível, ligadas às suas sinistras ambições de dinheiro, notou Saul que o adivinho o recebia com a misteriosa fleuma de sempre. Deixou bem visível a volumosa bolsa, recheada, como a demonstrar-lhe as ricas possibilidades financeiras, para aquisição do talismã de sua ventura.

O velho feiticeiro, encarquilhado pelos anos, reconhecendo-lhe as disposições generosas, desfazia-se em sorrisos de benevolência ambiciosa e enigmática, parecendo devassar-lhe o olhar assustadiço e inquieto, com seus olhos móveis e penetrantes.

— Araxes — exclamou Saul, com voz quase súplice —, estou cansado de esperar o amor da mulher que adoro! Estou aflito e preocupado… Preciso serenar minhas penosas aflições. Ouve-me! Quero de tuas mãos o talismã da felicidade para o meu amor desventurado!…

 

O velho adivinho guardou por minutos a cabeça entre as mãos, no gesto que lhe era peculiar e, depois, respondeu em voz quase sumida:

— Senhor, dizem-me as vozes do invisível que as vossas aflições não são resultantes de um amor incompreendido e desesperado…

Mas o liberto de Flamínio, que sofria o mais fundo desespero de consciência por haver eliminado um amigo e benfeitor, em plena floração de juventude, cortou-lhe a palavra, exclamando incisivamente:

— Como ousas contradizer-me, feiticeiro infame?

Araxes, todavia, com um brilho estranho nos olhos buliçosos, revidou com presteza:

— Julgais-me, então, um feiticeiro infame? Nem por isso, todavia, deixarei de falar a verdade, quando a verdade me convenha.

— Pois repito o que disse! Mas, a que verdades misteriosas aludes em tuas vagas afirmativas? — falou o liberto, fundamente exasperado.

— A verdade, meu amigo — dizia o mago com serenidade quase sinistra —, é que se estais tão perturbado é somente porque sois um criminoso. Assassinastes, friamente, um benfeitor e um amigo, e a consciência do celerado teme a implacável ação da justiça!

— Cala-te, miserável! Como o soubeste? exclamou Saul, excitadíssimo, ao mesmo tempo que arrancava o punhal de entre as dobras do manto.

 

E avançando para o velho indefeso, acrescentava com voz cavernosa:

— Já que as tuas ciências ocultas te proporcionam conhecimentos perniciosos à tranquilidade alheia, deves também desaparecer!…

Araxes compreendeu que o momento era decisivo. Aquele homem arrebatado era capaz de eliminá-lo de um só golpe. Medindo a situação num relance e movimentando toda a sua argúcia para conservar os bens da vida, esboçou um sorriso fingido e complacente, exclamando:

— Ora, ora, se falei a verdade foi somente para poderdes avaliar os meus poderes espirituais, porquanto, se é do vosso desejo, poderei integrar-vos, imediatamente, na posse do necessário talismã. Com ele, sereis profundamente amado pela mulher de vossas preferências… Com ele, modificareis os mais íntimos sentimentos dessa criatura que adorais e que vos fará, então, a felicidade de toda a vida. Quanto ao mais, não sois o primeiro a tirar a vida de um semelhante, porque todos os dias me aparecem fregueses nas vossas condições, batendo a estas portas. Além disso, entre nós deve existir grande confiança recíproca, porque sois meu cliente há mais de dez anos.

 

Ouvindo-lhe as palavras benevolentes e serenas, o liberto de Flamínio guardou novamente a arma, considerando novas perspectivas de felicidade e concordando em tudo com o adivinho, que, fazendo-o sentar-se, lhe ocupou a atenção por mais de uma hora com a descrição de fatos idênticos aos que lhe ocorriam, demonstrando teoricamente a eficiência dos seus amuletos miraculosos. Ia a palestra em boa forma, quando Saul lhe solicitou a entrega imediata do talismã, porquanto desejava experimentar-lhe o efeito naquele mesmo dia, ao que Araxes respondeu pressuroso:

— O vosso talismã está pronto. Posso entregar-vos essa preciosidade agora mesmo, dependendo tão somente de vós mesmo, porque precisareis beber um filtro mágico, que vos colocará na situação espiritual requerida pelo cometimento.

Saul não fez questão de submeter-se às imposições do velho egípcio, nas suas manobras estranhas e misteriosas, penetrando uma câmara, ornamentada de vários símbolos extravagantes, que lhe eram totalmente desconhecidos.

 

Araxes levava a efeito as encenações mais sugestivas. Vestiu-lhe, sobre a toga comum, larga túnica igual à sua e, depois de fingidas posições da magia incompreensível foi ao interior do pequeno laboratório, onde tomou de um tóxico violento, monologando intimamente de si para consigo: — “Vais receber o talismã que mais te convém neste mundo.”

Deitou algumas gotas do perigoso filtro numa taça de vinho e, com largos gestos espetaculosos, como se estivesse obedecendo a ritual ignorado, deu-lhe a beber o conteúdo, prosseguindo nos gestos exóticos, que eram bem as expressões pitorescas e sinistras de extravagante magia de morte.

Ingerindo o vinho na melhor intenção de guardar o amuleto da sua felicidade, o perigoso liberto sentiu que os membros se relaxavam sob o império de uma força desconhecida e destruidora, porquanto lhe faltava a própria voz para externar as emoções mais íntimas. Quis gritar, mas não o conseguiu, e inúteis foram todos os esforços para levantar-se. Aos poucos, os olhos turvaram-se lugubremente, como enevoados por sombra espessa e indefinível. Desejou manifestar seu ódio ao mago assassino, defender-se daquela angústia que lhe sufocava a garganta, mas a língua estava hirta e um frio penetrante invadia-lhe os centros vitais. Deixando pender a cabeça sobre os cotovelos apoiados ao longo da mesa ampla, compreendeu que a morte violenta lhe destruía todas as forças vivas do organismo.

 

Araxes fechou tranquilamente o quarto, como se nada houvesse acontecido, e voltou à loja, atendendo solícito à clientela numerosa, sem quebra da habitual serenidade.

Antes da noite, porém, penetrou na câmara mortuária e esvaziou a bolsa do cadáver, guardando as moedas silenciosamente entre as suas fartas reservas de avarento.

Depois das vinte e três horas, quando a cidade dormia, o velho feiticeiro do Esquilino  misturava-se aos escravos que faziam o serviço noturno dos transportes, conduzindo uma pequena carroça de mão, dentro da qual ia um grande volume.

Após longo trajeto, ganhava as cercanias do Fórum,  entre o Capitólio  e o Palatino,  onde descansou, esperando o derradeiro quarto da madrugada, quando, então, despejou a carga num ângulo escuro da via pública, voltando tranquilamente para o seu sono de cada noite.

 

De manhã, o cadáver de Saul foi facilmente identificado e, quando o senador buscava o liberto para declarações, recebeu a surpresa daquela notícia, inquirindo a si mesmo as razões daquela morte imprevista e estranha, aturdido com a entrosagem do mecanismo da justiça divina e perguntando intimamente, à própria consciência, se Saul não seria daqueles criminosos imediatamente justiçados pela lei das compensações, no caminho infinito dos destinos.

Seu coração, mais que nunca inclinado ao exame das profundas questões filosóficas, perdia-se num abismo de conjeturas, recordando a recomendação do espírito de Flamínio e as elevadas lições de Ana, calcadas no Evangelho; procurava, com a maior boa vontade resolver o problema do perdão e da piedade. Desejoso de satisfazer a própria consciência nas atividades da vida prática, buscou contrariar suas tradições e costumes em face do acontecimento, e, dirigindo-se à residência do algoz de seus filhos, tomou todas as providências para que não lhe faltassem a decência e o respeito nas cerimônias fúnebres. Alguns escravos e servos de confiança estavam habilitados a resolver todos os problemas atinentes aos negócios deixados pelo morto, mas, cooperando nas exéquias, Públio Lêntulus se sentia satisfeito por vencer a aversão pessoal, homenageando, ao mesmo tempo, a memória de Flamínio.

 

Localizando-se com a nova companheira em Avênio, Plínio Sevérus soube, por intermédio de amigos, da tragédia que se desenrolara em Roma na noite de sua ausência, sendo igualmente cientificado das dúvidas penosas que pairavam a seu respeito. Profundamente tocado nas suas fibras emotivas, lembrando-se do irmão que, tantas vezes, lhe testemunhara as mais altas provas de afeto desejou regressar, de maneira a esclarecer convenientemente o assunto, vingando-lhe a morte; todavia, amolecido nos braços de Aurélia e receoso do julgamento do velho senador, respeitado como um pai, além da suspeita que lhe causava a notícia da inexplicável enfermidade da esposa deixou-se ficar na sua vida incompreensível, através de Avênio,  Massília,  Arelate,  Antípolis  e Nice,  buscando esquecer no vinho dos prazeres as grandes responsabilidades que lhe cabiam.

Junto de Aurélia, a vida do oficial decorreu em tranquilidade condenável, por três longos anos, quando um dia teve a dolorosa surpresa de encontrar a companheira pérfida e insensível nos braços do músico e cantor Sérgio Acerrônius, chegado a Massília com as ruidosas alegrias da Capital do Império.

 

Nesse dia amargurado da sua existência, o filho de Flamínio investiu a mulher traidora, de arma na mão, disposto a tirar-lhe a vida criminosa e dissoluta. No instante, porém, da sua desforra, considerou intimamente que o assassínio de uma mulher, ainda que diabolicamente perversa, não deveria entrar nos trâmites da sua vida, supondo ainda que deixá-la viver no caminho escabroso de suas crueldades, seria a melhor vindita do seu coração traído e desventurado.

Abandonou, então, para sempre, aquela mísera criatura, que foi eliminada mais tarde, em Âncio,  pelo punhal implacável de Sérgio, que lhe não tolerou a infidelidade e a pervicácia no crime.

Sentindo-se só, Plínio Sevérus considerou, amarguradamente, os erros clamorosos da sua vida. Reviu o passado de futilidades condenáveis e atitudes loucas. Quase pobre, viu-se misérrimo para voltar ao ambiente romano, onde tantas vezes brilhara na mocidade, em aventuras pródigas e felizes. Debalde lhe enviara o senador apelos afetuosos. Chamado a brios pelas lições dolorosas do próprio destino, o oficial, amparado por alguns amigos de Roma, preferiu esforçar-se pela reabilitação nas cidades das Gálias,  onde permaneceria longos anos em trabalho silencioso e rude, pelo reerguimento do seu nome diante dos parentes e amigos mais íntimos.

Já entrado na idade madura, das profundas reflexões, grande lhe foi o esforço de reabilitação, distante dos entes mais caros.

 

Quanto ao velho senador, resistiu, decididamente, dentro da sua rígida estrutura espiritual, aos golpes aspérrimos do destino. Fazendo da luta de cada dia o melhor caminho de esclarecimento, viu passar os anos sem desânimo e sem ociosidade.

Desde os trágicos acontecimentos em que Agripa e Saul haviam perdido a vida misteriosamente, com o abandono definitivo do marido, Flávia Lentúlia tinha a saúde abalada para sempre. Na epiderme, os venenos de Ateia haviam sido anulados e vencidos pelas substâncias medicamentosas aplicadas, mas a luz dos seus olhos fora aniquilada para todo o sempre. Desalentada e cega, encontrou, porém, no coração generoso de Ana, o carinho materno que lhe faltava em tão penosas circunstâncias da vida.

A constituição física do senador, contudo, resistia a todos os embates e infortúnios.

Entre os esforços de carinhosa assistência à filha e as lides políticas que lhe tomavam o máximo de atenção, seus dias decorreram cheios de lutas acerbas, mas silenciosos e tristes, como sempre.

 

Em seu espírito, havia agora as melhores e mais sinceras disposições para apreender a essência sagrada dos ensinamentos do Cristianismo, e foi assim que o seu coração penetrou o crepúsculo da velhice, como se as sombras fossem clarificadas por estrelas cariciosas e suaves. No seu íntimo, permanecia uma serenidade imperturbável, mas, na vida do homem, corria o sopro inquieto do esforço pelas realizações do seu tempo. O coração estava resignado com as desilusões penosas e amargas do destino, mas no poder supremo do Império estava um tirano, que precisava cair, em benefício das construções do direito e da família; e por isso, junto de numerosos companheiros, entregou-se ao trabalho sutil da política interna, para a queda de Domício Nero,  que prosseguia avassalando a cidade com os espetáculos odiosos do seu nefando reinado.

Cáius Pisão,  Sêneca,  bem como outras figuras veneráveis da época, mais exaltadas no patriotismo e amor pela justiça, caíram sob as mãos criminosas do celerado que cingia a coroa, mas Públio Lêntulus, ao lado de outros irmãos de ideal que trabalharam no silêncio e na sombra da diplomacia secreta, junto dos militares e do povo, esperou pela morte ou pelo banimento do tirano, aguardando as claridades do futuro, surgidas com o efêmero reinado de Sérvio Sulpício Galba,  que, no dizer de Tácito,  era por todos considerado digno do governo supremo do Império, se não houvesse sido Imperador.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

As pregações do Tiberíade

PRIMEIRA PARTE • PRIMEIRA PARTE
Alguns dias haviam decorrido sobre os fatos que acabamos de narrar.

 

Em Cafarnaum,  não somente o cenário, mas também os atores, guardavam a mesma fisionomia.

 

Compelido pela atitude irrevogável e enérgica do senador, Sulpício Tarquínius regressara a Jerusalém,  obedecendo às ordens de que, por sua vez, recebera a notificação de Públio Lêntulus, referente à dispensa do lictor.

 

Não devemos esquecer que Públio permanecia na Palestina  com poderes amplos, na qualidade de emissário de César  e do Senado,  a quem todas as autoridades da província, inclusive o governador, eram obrigados a acatar com especial atenção e máximo respeito.

 

 

O procurador da Judeia não se esquecera, portanto, de substituir Sulpício, do melhor modo possível, buscando conhecer, com interesse, os motivos do seu afastamento, assunto que o senador solucionou com o mais largo espírito de superioridade, do ponto de vista político. Pilatos coadjuvou, com a melhor boa vontade, o serviço de pesquisa, quanto ao paradeiro do pequeno Márcus, movimentando funcionários de sua inteira confiança, e vindo pessoalmente a Cafarnaum, a fim de conhecer na sua intimidade as diligências efetuadas.

 

O senador recebeu-lhe a visita com as mais altas mostras de consideração e aceitou-lhe a cooperação, sinceramente confortado, em vista de os acontecimentos desmentirem, perante o seu foro íntimo, as caluniosas acusações de que era vítima a esposa.

 

 

Sua vida doméstica, porém, sofrera as mais profundas alterações. Não sabia mais viver aquelas horas de colóquio feliz com a esposa, da qual o separava um véu de dúvidas amargas e infinitas. Várias vezes tentou, improficuamente, readquirir a antiga confiança e a sua espontaneidade afetiva.

 

Rugas de pesar vincaram-lhe então o semblante, ordinariamente altivo e orgulhoso, esfumando-lhe os traços fisionômicos num nevoeiro de preocupações angustiosas.

 

Todos os seus íntimos, inclusive a esposa, atribuíam ao desaparecimento do filhinho tão singular metamorfose.

 

Nas horas habituais das refeições, notava-se-lhe o esforço para desanuviar a fisionomia. Dirigia-se, então, à mulher ou respondia as suas perguntas carinhosas com monossílabos apressados, acentuando as palavras com laconismo incompreensível.

 

 

Sofrendo amargamente com aquela situação, Lívia apresentava-se cada vez mais abatida, tentando em vão decifrar o motivo de tantas provações e infortúnios.

 

Muitas vezes procurou sondar o espírito de Públio, de modo a levar-lhe um pouco de carinho e consolação, mas ele evitava as expansões afetuosas, com pretextos decisivos. Quase que lhe aparecia tão somente no triclínio e, feita a refeição costumeira, retirava-se, abruptamente, para o grande salão do arquivo, onde passava todas as suas horas de inquietadoras meditações.

 

De Márcus, nenhuma notícia havia, que lhe proporcionasse a mais ligeira sombra de esperança.

 

 

Por uma formosa manhã da Galileia,  vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva dedicada e amiga fiel, a quem replica nestes termos, depois de carinhosamente inquirida, acerca do seu estado de saúde:

 

— Sinto-me bem mal, minha boa Ana!… À noite, o coração bate-me descompassadamente e, hora-a-hora, vejo crescer-me no íntimo dolorosa impressão de amargura. Não poderia, bem definir meu estado, ainda que o quisesse… O desaparecimento do pequeno enche-me a alma de lúgubres presságios, multiplicando o peso das minhas aflições maternas quando não posso vislumbrar, nem de leve, a causa de tamanhos padecimentos…

 

 

E agora é, sobretudo, o estado de Públio o que mais me acabrunha. Ele foi sempre um homem puro, leal e generoso; mas, de algum tempo a esta parte, noto-lhe singulares diferenças no temperamento, agravando-se-lhe os sintomas doentios com maior intensidade, após o incompreensível desaparecimento do nosso filhinho.

 

A mim se me figura que ele vem sofrendo os mais fortes distúrbios sentimentais, com sérios prejuízos para a saúde…

 

— Bem vejo, senhora, quanto sofreis! — aventou a serva carinhosa. — Sei que sou uma criatura humilde e sem nenhum valor, mas pedirei a Deus que vos proteja incessantemente, restabelecendo a paz do vosso coração.

 

— Criatura humilde e sem valor? — diz a pobre senhora, buscando demonstrar-lhe o grau de sua estima sincera. — Não digas isso, mesmo porque não sou dessas almas que aferem o valor de cada um pelas posições que desfruta ou pelas honras que recebe.

 

 

Filha única de pais que me legaram considerável fortuna, cidadã romana, com as prerrogativas de mulher de um senador, vês quanto sofro nos trabalhos amargos deste mundo.

 

Os títulos que o berço me outorgou não conseguiram eliminar as provações que o destino também me trouxe, com a mocidade e a fortuna fácil.

 

Reconhece, pois, que, sendo eu patrícia e tu uma serva, não possuímos um coração diverso, mas sim o melhor sentimento de fraternidade, que nos abre a porta de uma compreensão carinhosa, a valer por asilo suave nos dias tristes da vida.

 

 

De mim para comigo, sempre supus, contrariamente à educação recebida, que todas as criaturas são irmãs, filhas de uma origem comum, sem conseguir atinar com as linhas divisórias entre aqueles que possuem muitos haveres e muitos títulos e os que nada possuem neste mundo além do coração, onde costumo localizar os valores de cada um, nesta vida.

 

— Senhora — exclamou a serva, tocada da mais grata surpresa —, vossas palavras me comovem, não somente por partirem dos vossos lábios, dos quais me habituei a ouvir-vos sempre com carinho e veneração, mas também porque o profeta de Nazaret nos tem dito a mesma coisa em suas prédicas.

 

— Jesus?!… — perguntou Lívia, de olhos brilhantes, como se aquela referência lhe lembrasse uma fonte de consolação, da qual se houvesse momentaneamente esquecido.

 

— Sim, minha senhora, e por falar nele, porque não buscardes um pouco de conforto nas suas divinas palavras? Juro-vos que as suas expressões, sábias e amorosas, vos consolariam no meio de todos os pesares, proporcionando-vos sensação de vida nova!… Se quisésseis, eu poderia conduzir-vos a casa de , discretamente, a fim de receberdes o benefício de suas lições carinhosas. Receberíeis, assim, a alegria da sua bênção, sem vos expordes às críticas alheias, nutrindo o vosso coração dos seus luminosos ensinamentos.

 

 

Lívia pensou intensamente naquele alvitre, que se lhe figurava providência salvadora, respondendo, por fim:

 

— Os sofrimentos da vida muitas vezes me têm dilacerado o coração, renovando os meus raciocínios acerca dos princípios que me foram ensinados desde o berço, e é por isso que, acolhendo a tua ideia, acho de meu dever procurar a Jesus publicamente, como o fazem outras mulheres destes lugares.

 

Era minha intenção procurá-lo antes do nosso regresso a Roma, para lhe manifestar meu reconhecimento pela cura de Flávia, fato que me deixou profundamente impressionada, mas que não nos foi possível comentar, em razão da atitude hostil de meu marido; agora, novamente desamparada, no estuar das minhas dores, recorrerei ao profeta por obter um lenitivo ao coração opresso e torturado.

 

 

Mulher de um homem que, por força da sua carreira política, ocupa agora o mais alto cargo nesta província, irei a Jesus como criatura deserdada da sorte, em busca de amparo e consolação.

 

— Senhora, e vosso esposo? — perguntou Ana, antevendo as consequências daquela atitude.

 

— Procurarei cientificá-lo da minha resolução; mas, se Públio esquivar-se, ainda uma vez, à minha presença para um entendimento mais íntimo, irei mesmo sem ouvi-lo, com respeito ao assunto. Vestirei os trajes humildes desta região de criaturas simples, irei a Cafarnaum, hospedando-me com os teus parentes, nas horas necessárias, e, no momento das práticas, quero ouvir a palavra do Messias, de coração contrito e alma compadecida pelos infortúnios dos meus semelhantes…

 

 

Sinto-me profundamente insulada nestes últimos dias e tenho necessidade de conforto espiritual para o meu coração combalido nas provas ásperas.

 

— Senhora, Deus abençoe os vossos bons propósitos. Em Cafarnaum, os meus parentes são muito pobres e muito humildes, mas vossa figura está ali no santuário da gratidão de todos, bastando uma palavra vossa para que se ponham à vossa disposição, como escravos.

 

— Para mim não existe fortuna que se iguale a essa, da paz e do sentimento.

 

 

Não procurarei o profeta para solicitar-lhe atenções especiais, porque basta a sua caridade, no caso de minha filha, hoje sadia e forte, graças à sua piedade de justo, mas tão somente para buscar conforto ao meu coração dilacerado.

 

Pressinto que, em lhe ouvindo as exortações carinhosas e amigas, alcançarei energias novas para enfrentar as provações mais amargas e rudes.

 

Sei que ele me conhecerá nos trajes pobres da Galileia; todavia, na sua intuição divinatória, compreenderá que, dentro do peito da romana, pulsa um coração amargurado e infeliz.

 

 

As duas combinaram, então, ir juntas a cidade, na tarde do primeiro sábado.

 

Embalde, procurou Lívia uma oportunidade para solicitar a ambicionada permissão do marido, a favor da sua pretensão. Inúmeras vezes buscou, improficuamente, sondar o espírito de Públio, cuja frieza lhe afugentava a coragem para a necessária consulta.

 

Ela, porém, havia resolvido procurar o Mestre, de qualquer maneira. Abandonada numa região em que somente o marido podia compreende-la integralmente, dentro da sua esfera de educação, e rudemente provada nas fibras mais sensíveis da sua alma feminina, de esposa e mãe, a pobre senhora assim deliberou com pleno assentimento da sua consciência honesta e pura.

 

 

Talhou uma roupa nova, de conformidade com os usos galileus, de maneira a não se fazer notada na multidão comum nas prédicas do lago, e, cientificando a Comênio da necessidade que tinha de sair naquele dia, a fim de que o marido fosse avisado à hora do jantar, dirigiu-se, na data previamente determinada, pelos caminhos que já conhecemos, em companhia da serva de confiança.

 

Na residência humilde de pescadores, onde se abrigavam os familiares de Ana, Lívia sentiu-se envolvida em radiosas vibrações de serenidade, amiga e doce. Era como se o seu coração desalentado encontrasse uma claridade nova naquele ambiente de pobreza, de humildade e ternura.

 

 

A figura patriarcal do velho Simeão, de Samaria,  porém, destacava-se a seus olhos entre todos os que a receberam com as mais elevadas demonstrações de carinhosa bondade. Do seu olhar profundo e das cãs veneráveis emanavam as doces irradiações da maravilhosa simplicidade do antigo povo hebreu, e a sua palavra, ungida de fé, sabia tocar os corações nas cordas mais sensíveis, quando narrava as ações prodigiosas do Messias de Nazaret.

 

Lívia, acolhida por todos com simpatia franca, parecia devassar um mundo novo, até então desconhecido na sua existência. Confortava-lhe, sobremaneira, a expressão de sinceridade e candura, daquela vida simples e humilde, sem atavios nem artifícios sociais, mas também sem preconceitos nem fingimentos perniciosos.

 

 

À tardinha, confundida com os pobres e os doentes que iam receber as bênçãos do Senhor, vamos encontrá-la de coração aliviado e sereno, esperando o momento ditoso de ouvir do Mestre uma palavra de amor e consolação.

 

O crepúsculo de um dia claro e quente emprestava um reflexo de luz dourada a todas as coisas e a todos os contornos suaves da paisagem. Encrespavam-se as águas mansas do Tiberíade  ao sopro carinhoso dos favônios da tarde, que se impregnavam do perfume das flores e das árvores. Brisas frescas eliminavam o calor ambiente, espalhando sensações agradáveis de vida livre, no seio robusto e farto da Natureza.

 

 

Afinal, todos os olhares se dirigiam para um ponto escuro que se desenhava no espelho cristalino das águas, muito ao longe, no horizonte.

 

Era a barca de , que trazia o Mestre para as dissertações costumeiras.

 

Um sorriso de ansiedade e de esperança clareou, então, todos aqueles semblantes que o aguardavam, no desconforto de seus sofrimentos.

 

Lívia reparou aquela turba que, por sua vez, também lhe notara a estranha presença. Operários humildes, pescadores rudes, mães numerosas em cujos rostos macerados se podiam ler as histórias amargas dos incríveis padecimentos, criaturas da plebe anônima e sofredora, mulheres adúlteras, publicanos gozadores da vida, enfermos desesperados e crianças numerosas, que traziam consigo os estigmas do mais doloroso desamparo.

 

 

Conservava-se Lívia ao lado do velho Simeão, cuja expressão fisionômica de firmeza e doçura inspirava o mais profundo respeito aos que se lhe aproximavam; e quantos lhe notavam o delicado perfil romano, enfiada na simplicidade do traje galileu, presumiam na sua figura alguma jovem de Samaria da Judeia, que tivesse vindo igualmente de longe, atraída pela fama do Messias.

 

A barca de Simão acostara brandamente à margem, ensejando a que o Mestre se dirigisse ao local costumeiro de suas lições divinas. Sua fisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos, como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos, esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos da tarde.

 

 

A esposa do senador não pôde mais despregar os olhos deslumbrados, daquela figura simples e maravilhosa.

 

Começara o Mestre um sermão de beleza inconfundível e suas palavras pareciam tocar os espíritos mais empedernidos, figurando-se que os ensinamentos ressoavam nas devesas de toda a Galileia, ecoando pelo mundo inteiro, previamente modelados para caminhar no mundo com a própria eternidade.

 

“Bem aventurados os humildes de espírito, porque a eles pertencerá o reino de meu Pai que esta nos Céus!…

 

“Bem aventurados os pacíficos, porque possuirão a Terra!…

 

“Bem aventurados os sedentos de justiça, porque serão saciados!…

 

“Bem aventurados os que sofrem e choram, porque serão consolados nas alegrias eternas do reino de Deus!…” ()

 

E a sua palavra enérgica e branda disse da misericórdia do Pai Celestial; dos bens terrestres e celestes; do valor das inquietações e angústias humanas, acrescentando que viera ao mundo não para os mais ricos e mais felizes, mas para consolar os mais pobres e deserdados da sorte.

 

A assembleia heterogênea escutava-o embevecida nos seus transportes de esperança e gozo espiritual.

 

Uma luz serena e cariciosa parecia vir do Hebron,  clarificando a paisagem em tonalidade de opalas e safiras eterizadas.

 

 

A hora ia adiantada e alguns apóstolos do Senhor resolveram trazer alguns pães aos mais necessitados de alimento. Dois grandes cestos de merenda frugal foram trazidos, mas os ouvintes eram em demasia numerosos. Jesus, porém, abençoou-lhes o conteúdo e, como num suave milagre, a escassa provisão foi partida em pequenos pedaços, que foram religiosamente distribuídos por centenas de pessoas.

 

Lívia recebeu igualmente a sua parte e, ao ingeri-la, sentiu um sabor diferente, como se houvera sorvido um remédio apto a lhe curar todos os males da alma e do corpo, porque uma tranquilidade lhe anestesiou o coração flagelado e desiludido. Comovida até às lágrimas, viu que o Mestre atendia, caridosamente, a numerosas mulheres, entre as quais muitas, segundo o conhecimento do povo de Cafarnaum, eram de vida dissoluta e criminosa.

 

 

O velho Simeão quis também aproximar-se do Senhor naquela hora memorável da sua passagem pelo planeta. Lívia acompanhou-o automaticamente, e, em poucos minutos, achavam-se ambos diante do Mestre, que os acolheu com o seu generoso e profundo sorriso.

 

— Senhor — exclamou, respeitosamente o ancião de Samaria —, que deverei fazer para entrar, um dia, no vosso Reino?

 

— Em verdade te digo — replicou-lhe Jesus, carinhosamente — que muitos virão do Ocidente e do Oriente, procurando as portas do Céu, mas somente encontrarão o Reino de Deus e de sua justiça aqueles que amarem profundamente, acima de todas as coisas da Terra, o nosso Pai que está nos Céus, amando o próximo como a si mesmos.

 

 

E espraiando o olhar compassivo e misericordioso por sobre a assembleia vasta, continuou com doçura:

 

— Muitos, também, dos que foram aqui chamados, serão escolhidos para o grande sacrifício que se aproxima!… Esses me encontrarão no Reino celestial, porque as suas renúncias hão de ser o sal da Terra e o sol de um novo dia!…

 

— Senhor — aventurou o ancião, com os olhos rasos de lágrimas —, tudo faria eu por ser um dos vossos escolhidos!…

 

Mas, Jesus, fitando fixamente o patriarca de Samaria, murmurou com infinita ternura:

 

— Simeão, vai em paz e não tenhas pressa, porque, em verdade, aceitarei o teu sacrifício no momento oportuno…

 

 

E estendendo o raio de luz dos seus olhos até à figura de Lívia, que lhe devorava as palavras com a sede ardente da sua atenção, exclamou com as claridades proféticas de suas exortações:

 

— Quanto a ti, regozija-te em Nosso Pai, porque as minhas palavras e ensinamentos te tocaram para sempre o coração. Vai e não descreias, por que tempo virá em que saberei aceitar as tuas abnegações santificantes!

 

Essas palavras foram ditas numa tal atitude, que a esposa do senador não teve dificuldade em lhes apreender o sentido profundo, para um futuro distante.

 

 

Aos poucos, dispersou-se a grande assembleia dos pobres, dos enfermos e dos aflitos.

 

Era noite quando Lívia e Ana regressaram à casa solarenga, confortadas pelas graças recebidas das mãos caridosas do Messias.

 

Profunda sensação de alívio e conforto inundava-lhes a alma.

 

Penetrando, porém, nos seus aposentos, Lívia encontrou de frente a figura enérgica do marido, que deixava transparecer na fisionomia carregada os mais intensos sinais de irritação, como acontecia, nos momentos de seu mais ríspido mau humor. Ela notou-lhe a exacerbação de ânimo, mas, ao contrário de outras vezes, parecia inteiramente preparada para vencer as mais tremendas lutas do coração, porque, com serenidade imperturbável, o encarou face-a-face, enfrentando-lhe o olhar suspeitoso. Afigurava-se-lhe que a flor de eterna paz espiritual lhe desabrochara no íntimo, ao suave calor das palavras do Cristo, porquanto lhe parecia haver atingido o terreno, até então desconhecido, de serenidade estranha e superior.

 

 

Depois de fitá-la de alto a baixo com o seu olhar duro e inquiridor, exclamou Públio, mal sopitando a cólera incompreensível:

 

— Então, que é isso? Que poderosas razões levariam a senhora a ausentar-se de casa em horas tão impróprias para as mães de família?

 

— Públio — respondeu com humildade, estranhando aquele tratamento cerimonioso —, por mais que buscasse comunicar-te minha resolução de sair na tarde de hoje, fugiste sempre de minha presença, esquivando-te à minha consulta e eu necessitava procurar o Messias de Nazaret, de modo a acalmar meu coração desventurado…

 

— E precisavas de disfarce para encontrar o profeta do povo? — atalhou o senador, com ironia.

 

 

É a primeira vez que noto uma patrícia usando tais artifícios para consolar o coração. Vai a tanto, assim, o seu menosprezo pelas nossas mais sagradas tradições familiares?

 

— Supus não me ficasse bem fazer-me notada na multidão das pessoas pobres e infelizes que procuram a Jesus nas margens do lago, e, identificando-me com os sofredores, não presumi desacatar nossos costumes familiares, mas, sim, acreditei agir em favor do nosso nome, considerando a circunstância de ocupares, no momento, nesta província a mais alta expressão política do Império.

 

 

— A menos que esteja disfarçando algum outro sentimento, como dissimula a posição social com a indumentária, muito errou procurando o Messias nesses trajes, porque, afinal, estou investido de poderes para requisitar a presença de qualquer pessoa da região em minha casa!

 

— Mas Jesus — revidou Lívia, corajosamente — deve estar para nós muito acima dos poderes humanos, que sabemos tão precários, por vezes. Acho que a cura da nossa filhinha, diante da qual todos os nossos recursos foram impotentes, é o bastante para faze-lo credor da nossa gratidão imperecível.

 

— Ignorava que a sua organização mental fosse tão frágil em face dos sucessos do Mestre de Nazaret, aqui em Cafarnaum — continuou o senador, asperamente.

 

 

A cura de nossa filha? Como assegurar uma coisa que a sua argumentação pessoal não pode provar com dados positivos? E ainda que esse homem, revestido de forças divinas para o espírito simples e ignorante dos pescadores galileus, tivesse operado essa cura com a sua intervenção sobrenatural, vindo a este mundo da parte dos deuses, poderíamos chamar-lhe impiedoso e cruel, sarando uma menina enferma de tantos anos e permitindo que os gênios do mal e da perversidade nos arrebatassem o filhinho sadio e carinhoso, em cuja fronte colocava a minha ternura de pai todo um futuro brilhante e promissor!

 

— Cala-te, Públio! — revidou ela, tomada de uma força superior que lhe conservava toda a serenidade do coração. — Recorda-te que os deuses podem humilhar-nos, com dureza, a vaidade e o orgulho absurdos… Se Jesus de Nazaret nos curou a filhinha bem-amada, que apertávamos nos braços frágeis contra os poderes imensos da morte, podia permitir que fôssemos tocados no mais sagrado sentimento de nossa alma, com o incompreensível desaparecimento do nosso Márcus, para que nos sentíssemos inclinados à piedade e à comiseração pelos nossos semelhantes!…

 

 

— A senhora se compromete com essa demasiada tolerância, que vai ao absurdo da fraternização com os escravos — disse Públio, com rispidez e austera severidade.

 

Tal atitude de sua parte me fez pensar, seriamente, que a sua personalidade mudou no decurso deste ano, porque as suas ideias, longe do nível social da sede do Império, baixaram ao terreno dos sentimentos mais relaxados, em face da compostura que se exige da mulher de um senador, ou da matrona romana.

 

Lívia ouvira, angustiadamente, as palavras injustificáveis do marido. Nunca o vira tão irritado, em todo o transcurso da vida conjugal; mas, verificara, em si própria, uma renovação singular, como se o pão rústico, abençoado pelo Mestre, lhe transfigurasse as mais recônditas fibras da consciência. Seus olhos se enchiam de lágrimas, não por um orgulho ferido ou pela ingratidão que aquelas admoestações injustas revelavam, mas com profunda compaixão do esposo, que não a compreendia, e adivinhando a dolorosa tempestade que lhe fustigava o coração generoso, porém arbitrário, no plano de suas resoluções. Serena e silenciosa, não se justificou perante as severas reprimendas.

 

 

Foi quando, então, compreendendo que aquele atrito não deveria prosseguir, dirigiu-se o senador para a porta de saída do apartamento, abrindo-a com estrépito, a exclamar:

 

— Jamais fiz uma viagem tão penosa e tão infeliz! Gênios malditos parecem presidir às minhas atividades na Palestina, porque se curei uma filha perdi um filhinho no desconhecido e começo a perder a mulher no abismo das irreflexões e da incoerência; e acabarei, também, perdendo-me para sempre.

 

Dizendo-o, bateu a porta com toda a força dos seus movimentos instintivos, encaminhando-se ao gabinete, enquanto a esposa, de coração genuflexo, dirigia o pensamento para aquele Jesus carinhoso e terno, que viera ao mundo para salvar todos os pecadores. Lágrimas dolorosas fluíam-lhe dos olhos, fixos ainda na paisagem do lago de Genesaré, aonde parecia haver regressado em espírito, novamente. Lá estava o Mestre, em atitudes doces de prece, cravando nas estrelas do céu os olhos fulgurantes.

 

 

Figurou-se-lhe que Jesus também lhe notara a presença naquela hora sombria da noite, porque desviara o olhar fúlgido do firmamento constelado e estendia-lhe os braços compassivos e misericordiosos, exclamando com infinita doçura:

 

— Filha, deixa que chorem os teus olhos as imperfeições da alma que o Nosso Pai destinou para gêmea da tua!… Não esperes deste mundo mais que lágrimas e padecimentos, porque é na dor que os corações se lucificam para o Céu… Um momento chegará em que te sentirás no acume das aflições, mas não duvides da minha misericórdia, porque no momento oportuno, quando todos te desprezarem, eu te chamarei ao meu Reino de divinas esperanças, onde poderás aguardar teu esposo, no curso incessante dos séculos!…

 

 

Pareceu-lhe que o Mestre continuaria a embalar-lhe o coração com suaves e carinhosas promessas de bem-aventurança, mas um ruído qualquer a separara daquela visão de luz e de felicidade indefiníveis.

 

Quebrara-se o quadro da sua preocupação espiritual, como se feito de tenuíssimas filigranas.

 

Todavia, a esposa do senador compreendeu que não fora vítima de uma perturbação alucinatória, e guardou, com amor, no âmago do coração, as doces palavras do Messias. E, enquanto despia os trajes galileus, a fim de retomar o curso de suas obrigações domésticas, de alma límpida e consolada, parecia, ainda, lobrigar o vulto sereno e amado do Senhor, nas eminências verdejantes das margens do Tiberíade, através da neblina suave, que lhe embaciava os olhos úmidos de pranto.


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Mateus 5:1

E JESUS, vendo a multidão, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se dele os seus discípulos;

mt 5:1
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