Há dois mil anos...
Versão para cópiaNa destruição de Jerusalém
Somente em 68, conseguira a política conciliatória de grande número de patrícios, entre os quais Públio Lêntulus, o definitivo afastamento de Domício Nero e suas nefandas crueldades. Todavia, a ascensão de Galba durara poucos meses e aquele ano de 69 ia definir grandes acontecimentos na vida do Império.
Lutas numerosas encheram a cidade de pavor e sangue.
A terrível contenda entre Otão e Vitélio dividira todas as classes da família romana em facções hostis, que se odiavam ao extremo.
Afinal, a famosa batalha de Bedriaco dava o trono a Vitélio, que instaurou novo círculo de crueldades em todos os setores políticos.
A diplomacia interna, porém, vigiava na sombra, examinando atentamente a situação, de modo a não permitir a continuidade de novo surto de extermínio e de infâmia.
Vitélio apenas conservou o governo por oito meses e dias, porque, no mesmo ano de 69, as legiões do território africano, trabalhadas pela orientação sutil dos que haviam derribado Nero e seus asseclas, proclamaram 5espasiano para a suprema investidura do Império. O novo imperador, que ainda se encontrava no campo de seus feitos de armas, empenhado na pacificação da Judeia distante, satisfazia as exigências mais avançadas de todas as classes civis e militares, sendo recebido em triunfo para o posto supremo, iniciando-se, assim, a era prestigiosa dos Flávios.
Vespasiano integrava aquele grupo de patrícios operosos que contribuíra, sem alardes, para a queda dos tiranos.
Amigo pessoal de Públio Lêntulus, o imperador se tornara famoso, não só por suas vitórias militares, mas também por seu criterioso tirocínio político, evidenciado em Roma desde os dias turbulentos de Calígula.
Sob a sua orientação administrativa, ia abrir-se uma trégua nas imoralidades governamentais, inaugurar-se-ia novo período de compreensão das necessidades populares e, na rota dos seus planos econômico-financeiros, o Império ia caminhar para os dias regeneradores de uma era nova.
Públio recebeu todos os acontecimentos com a velada alegria possível aos seus 67 anos de lutas e fortes experiências da vida. Sob a claridade serena da velhice, todavia, sua fibra moral e resistência física eram as mesmas de sempre.
Dentro da perspectiva de melhores dias para as realizações patrióticas, considerava, agora, como bem empregado, todo o tempo que roubara à , para atender ao trabalho do bem coletivo; e foi nesse estado de espírito, com a consciência satisfeita pelo dever cumprido, de conformidade com as suas concepções, que se dirigiu ao palácio para atender a chamado especial do imperador, que, muitas vezes, não deixou de recorrer ao conselho dos seus mais antigos companheiros de ideal.
— Senador — disse-lhe Vespasiano, na intimidade tranquila de um dos magníficos gabinetes da residência imperial —, mandei chamá-lo para me amparar com a sua tradicional dedicação ao Império, na solução de assunto que julgo de suma importância.
— Dizei, Augusto!… — respondeu Públio, comovido.
Mas o imperador, gentil, cortou-lhe a palavra:
— Não, meu caro, entendamo-nos com a velha intimidade de outros tempos. Deixemos, por um instante, os protocolos.
E, vendo que o senador esboçava um sorriso de reconhecimento à sua palavra fluente e generosa, continuou a expor a questão que o interessava:
— Chamado a Roma para o cargo supremo, não ousei desobedecer às sagradas injunções que me impeliam ao cumprimento desse grande dever, embora obrigado a deixar meu filho na obra de pacificação da Judeia amotinada, trabalho esse que considerarei, em toda a vida, o meu melhor esforço pela vitalidade do Império, no desdobramento de suas gloriosas tradições.
Acontece, todavia, que o cerco de Jerusalém se vai prolongando demasiado, acarretando as mais sérias consequências para meus projetos econômicos, no programa restaurador que me propus realizar no governo.
Suponho que o meu valoroso Tito esteja necessitando de um conselho de civis, além dos assistentes militares que o acompanham na arrojada empresa, e lembrei-me de organizá-lo tão somente com os amigos mais íntimos, que conheçam Jerusalém e suas cercanias.
Quando das minhas primeiras incursões na edilidade, tive conhecimento dos seus processos na reforma administrativa da Judeia, sabendo, portanto, da sua permanência em Jerusalém há mais de vinte anos.
Era, pois, meu desejo que aceitasse, com outros poucos companheiros nossos, a incumbência de orientar melhor a tática militar de meu filho. Tito está necessitando da cooperação política de quem conheça a cidade nos menores recantos, bem como os seus idiomas populares, de maneira a vencer a situação que se vai tornando cada vez mais penosa.
Públio Lêntulus pensou na filha doente, um instante, mais, recordando-se da dedicação absoluta de Ana, que poderia perfeitamente substituir seus zelos por algum tempo, respondeu com decisão e energia:
— Meu nobre imperador, vossa palavra augusta é a palavra do Império. O Império manda e eu obedeço, honrando-me em cumprir vossas determinações e correspondendo aos impulsos generosos da vossa confiança.
— Muito agradecido! — falou Vespasiano, estendendo-lhe a mão, extremamente satisfeito. — Tudo estará pronto, de modo que sua partida, e de mais dois ou três amigos nossos, se verifique dentro de duas semanas, o mais tardar.
Assim aconteceu.
Depois das dolorosas despedidas da filha, que ficara aos cuidados da serva dedicada, no palácio do Aventino, o senador tomava a suntuosa galera que, largando de Óstia, penetrou depressa o mar largo, rumo à Judeia.
O velho patrício reviveu, com penosa serenidade, as peripécias da , quando a felicidade era para ele incompreensível, em companhia da esposa e dos dois filhinhos.
Sim, a pequenina figura de Márcus, o filho desaparecido, parecia surgir novamente a seus olhos, sob uma auréola de radioso e santificado enlevo…
Um dia, em Cafarnaum, levado pelas palavras caluniosas de Sulpício Tarquínius, duvidou da honorabilidade da mulher, acreditando, mais tarde, que o rapto da criança fosse uma consequência da sua infidelidade. Mas Lívia agora estava redimida de todas as culpas, no tribunal da sua consciência. Seus sacrifícios domésticos e a morte heroica no circo constituíam a prova máxima da sublimada pureza do seu coração. Naqueles instantes de meditação, figurava-se-lhe que voltara ao passado com os seus sofrimentos intermináveis, esbarrando sempre na sombra pesada do mistério, quando tentava reler as páginas desse doloroso capítulo da sua existência.
A que abismos insondáveis e desconhecidos teria sido levado o pequenino que lhe perpetuaria a estirpe nobre?
Suas emoções paternais pareciam alarmar-se de novo, depois de tantos anos e tantos padecimentos em família.
Mas, embora lhe flutuassem no íntimo as mais penosas dúvidas, o senador, na rigidez da sua enfibratura moral, preferia crer, consigo mesmo, que Márcus Lêntulus havia sido assassinado por malfeitores vulgares, dados ao roubo e ao terrorismo, para nunca mais requisitar os seus desvelos paternais.
Assim quereria crer, mas aquela viagem afigurava-se-lhe uma análise de suas lembranças mais queridas e mais pungentes.
De tarde, ao suave clarão do crepúsculo no Mediterrâneo, parecia-lhe ver ainda o vulto de Lívia acalentando o pequenino, ou falando-lhe ao coração em termos afetuosos de consolação, supondo lobrigar, igualmente, a figura de Comênio, o servo de confiança, entre os subalternos e escravos.
Em companhia de três outros conselheiros civis, chegou sem maior dificuldade ao destino, colocando-se esse reduzido conselho de íntimos do imperador à imediata disposição de Tito, que lhe aproveitou carinhosamente os pareceres, utilizando com grande êxito as suas opiniões, filhas de largas experiência da região e dos costumes.
O filho do imperador era generoso e leal para com todos os compatriotas, que o consideravam como benfeitor e amigo. Mas, para os adversários, Tito era de uma crueldade sem nome.
Em torno da sua figura ardente e desassombrada, desdobravam-se legiões numerosas de soldados que combatiam encarniçadamente.
O cerco de Jerusalém, terminado em 70, foi um dos mais impressionantes da história da humanidade.
A cidade foi sitiada, justamente quando intermináveis multidões de peregrinos, vindos de todos os pontos da província, se haviam reunido junto ao templo famoso, para as festas dos pães ázimos. Daí, o excessivo número de vítimas e as lutas acérrimas da célebre resistência.
O número de mortos nos terríveis recontros elevou-se a mais de um milhão, fazendo os romanos, quase cem mil prisioneiros, dos quais onze mil foram massacrados pelas legiões vitoriosas, depois da escolha dos homens válidos, entre cenas penosas de sangue e de selvajaria por parte dos soldados.
O velho senador sentia-se amargurado com aqueles pavorosos espetáculos de carnificina, mas cumpria-lhe desempenhar a palavra dada e era com o melhor espírito de coragem que dava pleno cumprimento ao seu mandato.
Seus pareceres e conhecimentos foram, muitas vezes, utilizados com êxito, tornando-se íntimo conselheiro do filho do imperador.
Diariamente em companhia de um amigo, o senador Pompílio Crasso, visitava os postos mais avançados das forças atacantes, verificando a eficácia da nova orientação observada pela estratégia militar dos seus patrícios. Os chefes de operações várias vezes lhes chamaram a atenção, para não avançarem muito em suas atitudes de desassombro, mas Públio Lêntulus não manifestava o menor receio, realizando, na sua idade, minuciosos serviços de reconhecimento topográfico da famosa cidade.
Afinal, na véspera da queda de Jerusalém, já se lutava quase corpo a corpo em todos os pontos de penetração, havendo incursões de parte a parte nos campos inimigos, com recíprocas crueldades contra todos os que tivessem a infelicidade de cair prisioneiros.
Apesar do zelo de que eram cercados, Públio e o amigo, em virtude da coragem de que davam testemunho, caíram nas mãos de alguns adversários que, ao lhes observarem a indumentária de altos dignitários da Corte Imperial, os conduziram imediatamente a um dos chefes da desesperada resistência, instalado num casarão à guisa de quartel, próximo da Torre Antônia.
Públio Lêntulus, observando as cenas de selvajaria e sangue da plebe anônima e amotinada, que exterminava numerosos cidadãos romanos sob as suas vistas, lembrou a tarde dolorosa do Calvário, em que o piedoso profeta de Nazaret sucumbira na cruz, sob a vozeada terrificante das multidões enfurecidas. Enquanto caminhava tangido com brutalidade e aspereza, o velho senador considerava igualmente que, se aquele momento assinalasse a sua morte, devia morrer heroicamente, como sua própria mulher, em holocausto aos seus princípios, embora houvesse fundamental diferença entre o reino de Jesus e o império de César. A ideia de deixar Flávia Lentúlia órfã do seu afeto preocupava-lhe o íntimo; todavia, ponderava que a filha teria no mundo a dedicação generosa e assídua de Ana, bem como o amparo material da sua fortuna.
Foi nesse estado de espírito, surpreso com a sucessão dos acontecimentos, que atravessou longas ruas cheias de movimento, de gritos, de impropérios e de sangue.
Jerusalém, tomada de assombro, mobilizava as derradeiras energias para evitar a ruína completa.
Ao cabo de algumas horas, extenuados de fadiga e sede, Públio e o amigo foram introduzidos no sombrio gabinete de um chefe judeu, que expedia as mais impiedosas ordens de suplício e morte para todos os romanos presos, revidando às atrocidades do inimigo.
Bastou que Públio fitasse aquele velho israelita de traços característicos, para procurar, sofregamente, uma figura semelhante no acervo de suas lembranças mais íntimas e mais remotas.
Não pôde, porém, de pronto, identificar aquela personagem.
O velho chefe, contudo, pousou nele o olhar astuto e, fazendo um gesto de satisfação, exclamou com uma chispa de ódio a lhe transparecer de cada palavra:
— Ilustríssimos senadores — enfatizou com ironia e desprezo —, eu vos conheço de longos anos…
E, fixando Públio, acentuou com malícia:
— Sobretudo, honro-me com a presença do orgulhoso senador Públio Lêntulus, antigo legado de Tibério e de seus sucessores nesta província perseguida e flagelada pelas pragas romanas. Ainda bem que as forças do destino não me permitiram partir para a outra vida, na minha velhice trabalhosa, sem me desafrontar de uma injúria inolvidável.
Avançando para o velho patrício que o contemplava supinamente surpreendido, repetia com insistência irritante:
— Não me reconheceis?…
O senador, porém, tinha o semblante a evidenciar o seu penoso abatimento físico, em face daquela rude provação da sua vida; debalde, encarava a figura franzina e maquiavélica de André de Gioras, agora com elevado ascendente nos trabalhos do templo famoso, em vista da fortuna que conseguira amealhar.
Verificando a impossibilidade de ser identificado pelo prisioneiro, cuja presença, ali, mais o interessava e que lhe respondera a todas as perguntas com silencioso gesto negativo, o velho judeu retornou com sarcasmo:
— Públio Lêntulus, sou André de Gioras, o pai a quem insultaste um dia com o excesso da tua autoridade orgulhosa. Lembras-te agora?
O prisioneiro fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Vendo, porém, que o seu atrevimento não o intimidava, o chefe de Jerusalém insistia exasperado:
— E porque não te humilhas neste momento, diante de minha autoridade? Ignoras, porventura, que posso hoje decidir dos teus destinos?… Qual a razão por que não me pedes comiseração?
Públio estava exausto. Lembrou os seus primeiros dias em Jerusalém, daquele agricultor inteligente e revoltado. Procurou rememorar, intimamente, as providências que adotara na qualidade de homem público, a fim de que o filho do judeu voltasse ao lar paterno, não se lembrando de haver destilado tanto fel naquele coração irresignado. Deliberara nada dizer, diante da sua figura exasperada e truculenta, atendendo às suas íntimas disposições espirituais, mas, em face da ousada insistência, sem abdicar as antigas tradições de orgulho e vaidade que o caracterizavam noutros tempos, e como se desejasse demonstrar desassombro em tão penosas circunstâncias, replicou, afinal, com energia:
— Se vos julgais aqui no cumprimento de uma obrigação sagrada, acima de qualquer sentimento particular e menos digno, não espereis que se vos peça comiseração, pelo fato de cumprirdes o vosso dever.
André de Gioras franziu o sobrolho, exasperado com a resposta imprevista, andando de um lado para outro no amplo gabinete, como se estivesse a cogitar o melhor meio de executar a tremenda vingança.
Depois de alguns momentos de sombrio silêncio, como se houvesse chegado a uma solução condigna dos seus tigrinos projetos, chamou com voz soturna um dos guardas numerosos ordenando:
— Vai depressa e dize a Ítalo, de minha parte, que deve aqui estar amanhã, às primeiras horas, de modo a cumprir minhas determinações.
E enquanto o emissário saía, dirigiu-se aos dois prisioneiros nestes termos:
— A queda de Jerusalém está iminente, mas darei a última gota de sangue da minha velhice para exterminar as víboras do vosso povo. Vossa raça maldita veio cevar-se na cidade eleita, mas eu exulto com a minha vingança em vós ambos, orgulhosos dignitários do império da impiedade e do crime! Quando se abrirem as portas de Jerusalém, terei executado meus implacáveis desígnios!
Calando-se, bastou um gesto para que os dois amigos fossem atirados numa enxovia escura e úmida, onde passaram uma noite terrível de conjeturas dolorosas, trocando amarguradas confidências.
Na manhã seguinte, eram chamados à prova suprema.
Já se ouviam na cidade os primeiros rumores das forças romanas vitoriosas, entregando-se ao terror e ao saque da população humilhada e inerme.
Por toda a parte, o êxodo precipitado de mulheres e crianças em gritaria infernal e angustiosa; mas, naquele casarão de grossas paredes de pedra, refugiara-se considerável número de chefes e combatentes, para a resistência suprema.
Públio e Pompílio foram conduzidos a uma sala ampla, de onde podiam ouvir o ruído crescente da vitória das armas imperiais, depois de lances dramáticos e cruentos, em tanto tempo de terror, de rapina e de luta; todavia, ali, naquele compartimento espaçoso e fortificado, tinham à frente centenas de guerreiros armados e alguns chefes políticos da resistência israelita, que os contemplavam com supremo desprezo.
Diante do avanço vitorioso das legiões romanas, era de notar a inquietação e o pavor que dominavam todos os semblantes, mas havia um interesse geral pelos dois prisioneiros importantes do Império, como se eles representassem o último objeto em que se pudessem cevar o ódio e a vingança.
Modificando, todavia, aquela situação indecisa, André de Gioras tomou a palavra em voz estranha e sinistra, que retumbou por todos os ângulos da casa:
— Senhores! estamos chegando ao fim da nossa desesperada defesa, mas temos o consolo de guardar dois grandes chefes da amaldiçoada política de rapina do Império Romano!… Um deles é Pompílio Crasso, que começou a sua carreira de homem público nesta província desventurada, inaugurando um longo período de terror entre os nossos compatriotas infelizes! O outro, senhores, é Públio Lêntulus, orgulhoso legado de Tibério e de seus sucessores na Judeia humilhada de todos os tempos; que escravizou nossos filhos ainda jovens e organizou processos criminosos em todas as zonas provinciais, fomentando o pavor de nossos irmãos perseguidos e flagelados, lá da sua residência senhorial da Galileia!… Pois bem! antes que os malditos soldados da pilhagem imperial nos aprisionem e aniquilem, cumpramos nossos desígnios!…
Todos os presentes ouviram-lhe a palavra, como se fora a ordem suprema de um chefe a quem se devesse obedecer cegamente.
Os dois senadores foram, então, amarrados com pesadas peças de ferro aos postes do suplício, sem liberdade para qualquer movimento, restringindo suas expressões de mobilidade aos olhos silenciosos e serenos no sacrifício.
— Nossa vingança — voltava o odiento israelita a explicar — deve obedecer ao critério da Antiguidade. Primeiramente, deverá morrer Pompílio Crasso, por ser o mais velho e para que o vaidoso senador Públio Lêntulus compreenda o nosso esforço para eliminar a vitalidade do seu Império maldito.
Pompílio fitou longamente o amigo, como se estivesse fazendo suas despedidas angustiosas e mudas, na hora extrema.
— Nicandro, este trabalho te compete — exclamou André, voltando-se para um dos companheiros.
E dando ao vigoroso soldado uma espada sinistra, acrescentou com profunda ironia:
— Tira-lhe o coração para o amigo, que deverá conservar a cena de hoje na sua memória, para sempre.
Os olhos do condenado brilharam de intensa angústia, enquanto as faces descoravam ao extremo, acusando as emoções dolorosas que lhe iam na alma. Entre ele e o companheiro de amargura, foi trocado, então, um olhar inesquecível.
Em minutos rápidos, Públio Lêntulus assistiu ao desenrolar da operação nefanda.
A cabeça branca do supliciado pendeu ao primeiro golpe de espada e do seu tórax encarquilhado foi arrancado violentamente o coração palpitante, sangrento.
Entretanto, o senador sobrevivente ouvia já o rumor dos patrícios vitoriosos que se aproximavam, afigurando-se-lhe que já se lutava corpo a corpo, às portas daquela turbulenta assembleia da vindita e do crime. A monstruosa cena estarrecia-lhe o ânimo, sempre otimista e decidido, mas não perdeu a compostura altiva e rígida que ele a si mesmo se impunha, naquele angustioso transe.
Terminada a execução de Pompílio, feita à pressa, porquanto todos os presentes tinham consciência da horrorosa situação que os esperava diante dos triunfadores, André de Gioras levantou novamente a voz:
— Meus amigos — afirmou soturnamente —, ao mais velho, a penalidade misericordiosa da morte; mas, a este patrício infame que nos ouve, concederemos a pena amarga da vida, dentro do sepulcro das suas ilusões desvairadas, de vaidade e orgulho!… Públio Lêntulus, o antigo emissário dos imperadores, deverá viver!… Sim, mas sem os olhos que lhe clarearam o caminho do egoísmo supremo sobre os nossos grandes infortúnios!… Deixá-lo-emos com vida, para que nas trevas da sua noite busque ver com os olhos dos escravos que ele espezinhou no curso da vida. [Vide o cumprimento da lei de causa e efeito narrado por seu amigo Flamínio Sevérus]
Havia um penoso silêncio interior, embora se ouvisse, lá fora, o patear dos cavalos e o tinir das armaduras, aliados ao rumor sinistro de vozes praguejantes no ataque e na resistência desesperada do último reduto.
André de Gioras parecia, porém, embriagado com a volúpia de sua vingança e, mantendo o equilíbrio da assistência naquela hora trágica do destino que a todos aguardava, com a palavra magnética e persuasiva exclamou energicamente:
— Ítalo, compete às tuas mãos a tarefa deste momento.
Da assistência compacta e inquieta destacou-se um homem, aparentando quase quarenta anos de idade, surpreendendo o senador pelos seus traços finos de patrício. Seus olhares encontraram-se e ele supôs descobrir naquela alma um laço de afinidade estranha e incompreensível.
Ítalo? Aquele nome não lhe recordava alguma coisa das proximidades da sua Roma inesquecida? Por que motivo estaria ali aquele homem, evidentemente de sangue nobre, combatendo ao lado dos judeus amotinados e intoxicados de ódio? Por sua vez, o verdugo, indicado pela voz soberana de André, parecia inclinado à ternura e à piedade por aquele homem velho e sereno, de mãos e pés amarrados ao poste da injúria, como que hesitava sobre se devia cumprir o sinistro e despiedado desígnio do seu chefe.
Daí a minutos, surgia, de uma porta larga e sombria, um guerreiro israelita, trazendo em ampla bandeja de bronze uma lâmina de ferro incandescente, cuja ponta aguçada repousava entre brasas vivas.
Contemplando com interesse a enigmática figura de Ítalo, na vitalidade da idade adulta, o senador, silencioso, não podia dissimular a curiosidade em face do seu vulto ereto e delicado.
André, porém, gozando o quadro e percebendo a acurada atenção do condenado, arrancou-o daquele estado de conjetura e surpresa, ironizando:
— Então, senador, estais admirando o porte nobre de Ítalo?… Lembrai-vos de que se os patrícios se dão ao luxo de possuir escravos israelitas, os senhores da Judeia também apreciam os servos de tipo romano. Aliás, sou obrigado a considerar que é sempre perigoso guardarmos um escravo como este, na cidade, em vista da praga do patriciado, hoje excessivo por toda a parte; mas eu consegui manter este homem de trabalho no ambiente rural, até agora…
Públio Lêntulus mal poderia decifrar o sentido oculto daquelas irônicas palavras, não lhe sobrando tempo, ali, para qualquer introspecção. Observou que André se calara, atendendo à urgência com que devia ser levada a efeito a operação em perspectiva, de modo a não se perder o vermelho incandescente da lâmina fatídica. Diante de muitos olhares atônitos e desesperados, que não sabiam se fixavam a cena macabra ou se atentavam para a ruidosa penetração das forças de Tito a quebrarem naquele instante os obstáculos do último reduto, o algoz implacável entregou a Ítalo o terrível instrumento do sacrifício.
— Ítalo — recomendou com a máxima energia —, este minuto é precioso… Vamos queimar-lhe as pupilas, de modo a lhe proporcionarmos uma sepultura de sombras eternas, dentro da vida.
O pobre homem, todavia, sensibilizado até às lágrimas, em face do suplício que deveria infligir por suas mãos, parecia indeciso e titubeante.
— Senhor… — disse súplice, sem conseguir formular objeções.
— Porque hesitas?… — revidou André, tiranicamente, cortando-lhe a palavra. — Será preciso o chicote para que me obedeças?
Ítalo tomou, então, da lâmina, humildemente. Aproximou-se de leve do condenado, cheio de resignação e de fortaleza interior. Antes do instante supremo, seus olhares se encontraram, trocando vibrações de simpatia recíproca. Públio Lêntulus ainda lhe fixou o porte, tocado de incontestável nobreza, esfacelada em suas linhas mais características pelos trabalhos mais impiedosos e mais rudes; e tão grande foi a atração que experimentou por aquele homem, fixado pelos seus olhos em plena luz, pela vez derradeira, que chegou a se recordar, inexplicavelmente, do seu pequenino Márcus, considerando que, se ele ainda vivesse num ambiente tão hostil, deveria ter aquele porte e aquela idade.
As mãos de Ítalo, trêmulas e hesitantes, aproximaram-se dos seus olhos exaustos, como se o fizesse numa doce atitude de carinho; mas o ferro incandescente, com a rapidez do relâmpago, feriu-lhe as pupilas orgulhosas e claras, mergulhando-as na treva para todo o sempre.
Nisso, observou a vítima que uma gritaria infernal reboava em toda a sala.
Uma dor indefinível irradiava-se da queimadura, fazendo-lhe experimentar atrozes padecimentos.
Ele nada mais divisava, além das trevas espessas que lhe cobriam o espírito, mas adivinhava que as forças vitoriosas chegavam tardiamente para libertá-lo.
No meio dos ruídos ensurdecedores, André de Gioras ainda se aproximou do condenado, falando-lhe ao ouvido:
— Poderia matar-te, senador infame, mas quero que vivas. Vou revelar-te, agora, quem é Ítalo, teu algoz do último instante!…
Mas um golpe violento de espada, brandida por um legionário romano, fizera o velho israelita cair ao solo sem sentidos, enquanto certeira punhalada atingia Ítalo, indeciso na sua estupefação, que caiu pesadamente junto do supliciado, abraçando-lhe os pés, num gesto significativo e supremo.
Vozes amigas rodearam, então, Públio Lêntulus, naquele ambiente tumultuário. Desataram-lhe imediatamente os pés e as mãos, restituindo-lhe a liberdade dos movimentos, enquanto outros legionários retiravam o cadáver de Pompílio Crasso, com o peito vazio, num quadro pavoroso de selvajaria sanguinosa.
Serenados os primeiros tumultos e guardando as mais penosas dúvidas sobre as palavras reticenciosas do inimigo implacável, Públio Lêntulus, antes de se dirigir pelo braço dos companheiros ao comando das forças em operações, onde receberia os primeiros socorros, recomendou que tratassem com o máximo respeito o cadáver de Ítalo, que jazia ao lado de um montão de despojos sangrentos, no que foi atendido, obtemperando-lhe, porém, um companheiro:
— Senador, antes de tudo, não vos esqueçais do vosso estado, que está requerendo de todos nós os mais urgentes cuidados.
E como se quisesse provocar uma explicação espontânea do ferido, quanto ao seu interesse pelo morto, acentuou delicadamente:
— Não foi esse homem quem vos infligiu o horrendo suplício?
À vista da pergunta inopinada e necessitando justificar sua atitude perante os compatriotas que o ouviam, Públio exclamou com voz pungente:
— Enganai-vos, meus amigos. Esse homem, cujo cadáver agora não vejo, era nosso conterrâneo, prisioneiro de muito tempo pela sanha vingativa de um poderoso senhor de Jerusalém…
Observai-lhe os traços nobres e concordareis comigo!…
E enquanto se retirava amparado pelos amigos, a fim de receber socorros imediatos e imprescindíveis, supôs haver cumprido um dever, em pronunciando aquelas palavras, porque misteriosas vozes lhe falavam ao coração, acerca daquele olhar generoso que pousara em seus olhos pela última vez.
Vários dias esteve Jerusalém entregue ao saque e à desordem, levados a efeito pela soldadesca do Império, faminta de prazeres e envenenada no vinho sinistro do triunfo. Todos os chefes da resistência israelita foram presos, a fim de comparecerem em Roma para o último sacrifício, em homenagem às festas comemorativas da vitória. Entre eles incluía-se André de Gioras, que, restabelecido das escoriações recebidas, representava um dos que deveriam ser exterminados para gáudio da assistência festiva na Capital do Império.
Depois da matança de onze mil prisioneiros feridos ou inválidos, massacrados pelas legiões vencedoras; depois dos pavorosos espetáculos da destruição e saque do templo magnífico, no qual Israel julgava contemplar a sua obra eterna e divina para todas as gerações da sua posteridade prolífica, voltou a caravana compacta dos vencidos e vencedores, cheia de riquezas ilícitas e troféus maravilhosos, de modo a exibir em Roma todos os ornamentos ilustrativos da vitória, entre vibrações tumultuárias e cânticos de triunfo.
Numa galera confortável e tranquila, viajou Públio Lêntulus, resignado dentro da noite compacta da sua cegueira, rodeado de amigos prestimosos que tudo faziam por minorar-lhe os sofrimentos morais.
Antes de chegar a Roma, vezes muitas cogitou da melhor maneira de se dirigir diretamente a André, para arrancar-lhe a verdade e serenar as dúvidas íntimas, quanto à identidade do escravo de tipo romano, que o ferira para sempre, nos preciosos dons da vista. Ele, porém, agora, estava cego, e para realizar esse desejo teria de empregar um largo processo de providências, de colaboração estranha, e, assim, não havia atinado com a melhor maneira de ouvir o judeu sem ferir as tradições de dignidade pessoal, mantida em todos os tempos da vida pública.
Foi, ainda, nesse impasse que chegou, novamente, ao palácio do Aventino, acompanhado de numerosos companheiros de labores políticos, surpreendendo amarguradamente o coração da filha com a notícia trágica e dolorosa da sua cegueira.
Ana, qual anjo fraterno, valorosa irmã de todos os infortunados, sincera discípula do Cristianismo, esperou carinhosamente o seu senhor, junto de Flávia que exclamava cheia de incoercível desalento:
— Meu pai, meu pai, mas que desgraça!…
O velho patrício, todavia, no seu otimismo, confortava-lhe o espírito, obtemperando:
— Filha, não te dês ao trabalho de conjeturar a fundo os problemas do destino. Em todos os acontecimentos da vida temos de louvar os soberanos desígnios dos Céus e espero que te encorajes de novo, porque somente assim viverei agora, junto de ti, em consolação afetuosa e recíproca! Foi o próprio destino que me afastou compulsoriamente das lides do Estado, a fim de viver doravante somente por ti.
Abraçaram-se então efusivamente, fundiram-se em beijos do mesmo infortúnio, vibrações cariciosas de duas almas presas aos mesmos padecimentos.
Públio Lêntulus, porém, embora o necessário descanso, e apesar da cegueira que lhe impossibilitava as iniciativas, não perdeu a esperança de ouvir a palavra do inimigo implacável, ainda uma vez, e, para isso, aguardou o dia ansiosamente esperado pelo povo romano, das soberanas festas do triunfo.
Convém acentuar que o velho senador foi conduzido a cidade imediatamente, em virtude da sua especialíssima situação; mas o vencedor e as suas legiões infindáveis entrariam em Roma com todos os faustosos protocolos dos triunfadores, de conformidade com os numerosos regulamentos da própria antiga República.
No dia aprazado, toda a Capital, com a sua população de um milhão e meio de habitantes, aproximadamente, aguardava as magníficas comemorações da vitória.
Desde as primeiras horas do dia começaram a grupar-se às portas da cidade as legiões vencedoras, desarmadas, vestindo delicadas túnicas de seda, ostentando soberbas auréolas de louro. Transpondo as portas da cidade, sob os aplausos estrondosos de multidões sem fim, foi-lhes oferecido esplêndido banquete, presidido pelo próprio imperador e seu filho.
Vespasiano e Tito, logo após as cerimônias do Senado, no Pórtico de Otávia, encaminharam-se para a Porta Triunfal. Ali, ofereceram um sacrifício aos deuses e tomaram os símbolos do triunfo nas aparatosas festividades imperiais. Realizada essa cerimônia, pôs-se em marcha o grande cortejo, ao qual Públio Lêntulus não faltou, com a secreta intenção de ouvir a palavra reveladora do chefe prisioneiro, cujo cadáver, depois dos sacrifícios daquele dia seria atirado às águas do Tibre, de acordo com as tradições vigentes.
Todos os troféus das batalhas sanguinolentas e todos os vencidos, em número considerável, eram levados igualmente em procissão na festa indescritível.
À frente do cortejo imenso, seguia incalculável quantidade de obras de ouro puro, enfeitadas de cores variadas e berrantes, e, logo após, pedras preciosas em número incontável não só em coroas de fulgurante beleza como também em estofos que maravilhavam os espectadores pela variedade, sendo de notar que todos esses tesouros eram carregados por jovens legionários trajando túnicas de púrpura com graciosos ornamentos dourados.
Depois da exibição dos tesouros conquistados pelo triunfador, vinham, às centenas, as estátuas dos deuses, talhadas em marfim, em ouro, em prata, de tamanhos prodigiosos.
Em seguida aos deuses, todo um exército de animais, das mais variadas espécies, e dos quais se distinguiam numerosos dromedários e elefantes cobertos de magníficas pedrarias.
Acompanhando os animais, a multidão compacta e acabrunhada dos prisioneiros vulgares, exibindo sua miséria e olhares tristes, procurando ocultar dos espectadores impiedosos e irreverentes os ferros pesados que os maniatavam.
Após os prisioneiros sucumbidos, passavam os simulacros das cidades vencidas e humilhadas, confeccionados com grande esmero, sustentados nos ombros de soldados numerosos, semelhantes aos modernos carros alegóricos das festas carnavalescas. Havia representações de todas as cidades destruídas e saqueadas, de batalhas vitoriosas, sem faltar o arrasamento dos campos, a queda de muralhas e os incêndios devastadores.
Depois desses símbolos, eram os despojos riquíssimos dos povos vencidos e das cidades conquistadas, principalmente os de Jerusalém, carregados com muito desvelo pelos legionários. Sob os aplausos gritantes e irreverentes da turba que se apinhava por toda a parte, desfilaram as estátuas representando as figuras de Abraão e Sara, bem como de todas as personalidades reais da família de David, e mais todos os objetos sagrados do famoso templo de Jerusalém, tal a mesa dos Pães de Proposição, feita de ouro maciço, as trombetas do Jubileu, o castiçal de ouro com sete braços, os paramentos de alto valor intrínseco, os véus sagrados do Templo, e, por fim, a Lei dos judeus que seguia atrás de todos os despojos materiais, pilhados pelas forças triunfadoras. Cada objeto era carregado em andores preciosos e bem ornamentados, ao ombro dos legionários romanos coroados de louros.
Após os textos da Lei, seguia Simão, o desventurado chefe supremo de todos os movimentos da resistência de Jerusalém, acompanhado dos seus três auxiliares diretos, inclusive André de Gioras. Todos esses chefes da longa e desesperada resistência vestiam de preto e caminhavam solenemente para o sacrifício, depois de exibidos em todas as comemorações festivas do triunfo.
Em seguida, vinham os carros soberbos e magníficos dos triunfadores. Após a passagem deslumbrante de Vespasiano, passava Tito num oceano de púrpura, de sedas e de vermelhão, simbolizando o próprio Júpiter, na embriaguez da sua vitória.
No séquito de honra, passava igualmente o senador valetudinário e cego, não mais pelo prazer das homenagens, mas com o secreto desejo de ouvir a palavra de André, antes do trágico momento em que o seu corpo balançasse sobre as águas lodosas do Tibre, no instante da consumação do último suplício, sob os aplausos delirantes do povo.
Após os carros imperiais dos vencedores e seus áulicos mais íntimos, vinha o exército compacto, entoando os hinos da vitória, enquanto todas as ruas e praças, foros e pórticos, terraços e janelas, se pejavam de incalculáveis multidões curiosas.
O cortejo movimentou-se solenemente, desde a Porta Triunfal até o Capitólio. Longas horas foram gastas no trajeto, através do sinuoso caminho, porquanto a festividade era consumada de molde a levar seus esplendores pelos recantos mais aristocráticos do patriciado romano.
Em dado instante, todavia, antes de se elevar à colina, todo o cortejo parou e os olhos ansiosos da multidão convergiram para Simão e seus três companheiros, auxiliares diretos da sua chefia na resistência da cidade famosa.
Públio Lêntulus, embora cego, mas afeito ao tradicionalismo daquelas comemorações, compreendeu que era chegado o instante supremo.
Em virtude do seu caso especialíssimo e considerando a deferência que a autoridade julgava dever-lhe, o imperador preocupava-se com a sua situação no cortejo, recomendando ao filho, Domiciano, atender a quaisquer providências de que viesse a precisar em tais circunstâncias.
Naquele momento, debaixo das vibrações ruidosas do delírio popular, procedia-se ao flagício de Simão, diante de toda a Roma embriagada e vitoriosa, enquanto André de Gioras e os dois companheiros eram conduzidos à Prisão Mamertina, onde aguardariam o chefe, após a flagelação, para a morte em conjunto, de maneira que os cadáveres pudessem ser arrastados através das Gemônias e, sob as vistas do povo, atirados às correntes do Tibre.
De alma ansiosa, mas disposto a realizar seus desígnios, o senador chamou o príncipe a cuja assistência fora recomendado, expressando-lhe o desejo de dirigir a palavra a um dos prisioneiros, em particular e em condições secretas, no que foi imediatamente atendido.
Domiciano tomou-lhe do braço com atenção e, conduzindo-o a uma dependência da prisão sinistra, determinou a vinda de André a um cubículo isolado e secreto, conforme o desejo de Públio, aguardando o fim da entrevista numa sala próxima, juntamente com alguns guardas, tão logo penetrou o condenado para o interrogatório do antigo político do Senado.
Defrontando-se, os dois inimigos tiveram estranha sensação de mal-estar. Públio Lêntulus não mais podia vê-lo, mas se os seus olhos já não tinham expressão emotiva, crestadas para sempre as pupilas claras e enérgicas, seu perfil ereto manifestava as emoções que o dominavam.
— Senhor André — exclamou o senador, profundamente emocionado —, contra todos os meus hábitos provoquei este encontro secreto, de modo a esclarecer minhas dúvidas sobre as palavras reticenciosas em Jerusalém, no dia em que consumastes vossas impiedosas determinações a meu respeito. Não quero, agora, entrar em pormenores sobre a vossa atitude, mas tão somente informar-vos, neste momento em que a justiça do Império vos toma à sua conta que tudo fiz por devolver-vos o filho prisioneiro, cumprindo um dever de humanidade, ao receber as vossas súplicas. Lamento que as minhas providências tardias não alcançassem o efeito desejado, fermentando tão violenta odiosidade no vosso coração. Agora, porém, não mais ordeno. Um cego não pode determinar providências de qualquer natureza, em face das penosas injunções da sua própria vida, mas solicito o vosso esclarecimento, sobre a personalidade do escravo que me crestou a vista para sempre!…
André de Gioras estava igualmente abatidíssimo na sua decrepitude enfermiça. Comovido pela atitude daquele pai humilhado e infeliz e fazendo o íntimo retrospecto dos seus atos criminosos, naquelas horas supremas de sua vida, respondeu amargamente compungido:
— Senador Lêntulus, a hora da morte é diferente de todas as outras que o destino concede à nossa existência à face deste mundo… É por isso, talvez, que sinto o meu ódio agora transformado em piedade, avaliando o vosso sofrimento amargo e rude. Desde que fui preso, venho considerando os erros da minha vida criminosa… Trabalhando no Templo e vivendo para o culto da Lei de Moisés, só agora reconheço que Deus concede liberdade de ação a todos os seus filhos, mormente aos seus sacerdotes, tocando-lhes, porém, a consciência, no momento da morte, quando nada mais resta senão a apresentação da alma falida, diante de um tribunal a que ninguém pode mentir ou subornar!… Sei que é tarde para regredir no caminho percorrido, a fim de refazer os nossos atos; mas um sentimento novo me faz falar-vos aqui com a sinceridade do coração, que, acicatado pelo julgamento divino, já não pode enganar a ninguém.
Há quase quarenta anos, vossa austeridade orgulhosa determinou a prisão do meu único filho, remetendo-o impiedosamente para as galeras, e debalde implorei a vossa clemência de homem público, para o meu espírito desamparado… Das galeras, contudo, meu pobre Saul foi remetido para Roma onde foi vendido, miseravelmente, num mercado de escravos, ao Senador Flamínio Sevérus…
Nesse instante, o cego, que escutava atenta e eminentemente emocionado, ao identificar, naquela narrativa, o algoz da filha, interrompeu-a, perguntando:
— Flamínio Sevérus?
— Sim, era também, como vós, um senador do Império.
Profundamente emocionado, ao ligar os fatos dolorosos de sua família à pessoa do antigo liberto, mas necessitando de todas as energias morais para dominar-se, o senador recalcou no íntimo a sua amargura, conservando-se em atitude de expressivo silêncio, enquanto o condenado prosseguia:
— Saul, todavia, foi feliz… Abraçou a liberdade e fez fortuna, voltando de vez em quando a Jerusalém, onde me ajudou a prosperar; mas, devo revelar-vos que, não obstante os textos da Lei por mim pregada muitas vezes, que nos manda desejar ao próximo o que desejaríamos para nós mesmos, (Lv
Enquanto André de Gioras se detinha na triste confissão que lhe tocava as fibras mais íntimas da alma, representando cada palavra um estilete de amargura a lhe retalhar o coração, Públio Lêntulus chegava tardiamente ao conhecimento de todos os fatos, recordando os angustiosos martírios da companheira, como esposa caluniada e mãe carinhosa.
Impressionado, porém, com o seu silêncio doloroso, André continuava:
— Pois bem, senador; obedecendo aos meus sentimentos condenáveis, raptei vosso filhinho, que cresceu humilhado nos mais rudes trabalhos da lavoura… aniquilei-lhe a inteligência… favoreci-lhe o ingresso nos vícios mais desprezíveis, pelo prazer diabólico de humilhar um romano inimigo, até que culminei na minha vindita em nosso encontro inesperado! Mas, agora, estou diante da morte e não sei enxergar mais a nossa situação, senão como pais desventurados… sei que vou comparecer breve no tribunal do mais íntegro dos juízes, e, se vos fosse possível, eu desejava que me désseis um pouco de paz com o vosso perdão!
O velho senador do Império não saberia explicar as suas profundas dores, ouvindo aquelas revelações angustiosas e amargas. Ouvindo André, sentia ímpetos de perguntar pelo filhinho em criança, por suas tendências, pelas suas aspirações da mocidade; desejava inteirar-se dos seus trabalhos das suas predileções, mas cada palavra daquela confissão amargurosa era uma punhalada nos seus sentimentos mais sagrados. Qual estátua muda do infortúnio, ainda ouviu o prisioneiro repetir, quase em lágrimas, arrancando-o das suas divagações sombrias e tormentosas:
— Senador — insistia ele, suplicando tristemente —, perdoai-me! Quero compreender o espírito da minha Lei, apesar do último instante!… Relevai meu crime e dai-me forças para comparecer diante da luz de Deus!…
Públio ouvia-lhe a voz súplice, enquanto uma lágrima de dor indescritível rolava dos seus olhos tristes e apagados.
Perdoar? Mas, como? Não fora ele, Públio, o ofendido e a vítima de uma existência inteira? Singulares emoções abalavam-lhe o íntimo, enquanto numerosos soluços lhe morriam na garganta opressa.
Diante dele estava o inimigo implacável que procurara aflitivamente, por consecutivos e longos anos de infelicidade. Mas, na sua introspecção, sabia entender, igualmente, as próprias culpas, recordando os excessos da sua severidade vaidosa. Também ele ali estava como um cadáver ambulante, no seio das sombras espessas. De que valeram as honrarias e o orgulho desenfreado? Todas as suas esperanças de ventura estavam mortas. Todos os seus sonhos aniquilados. Senhor de fortuna considerável, não viveria mais, no mundo, senão para carregar o esquife negro das ilusões despedaçadas. Todavia, seu íntimo se recusava ao perdão da hora extrema. Foi então que se lembrou de Jesus e de sua doutrina de amor e piedade pelos inimigos. O mestre de Nazaret perdoara a todos os seus algozes e ensinara aos discípulos que o homem deve perdoar setenta vezes sete vezes. (Mt
Os ruídos de fora denunciavam que a hora derradeira de André estava próxima. O próprio Simão já caminhava vacilante e ensanguentado, depois do açoite, para o interior da prisão, epilogando o suplício.
Foi então que Públio Lêntulus, abandonando todas as tradições de orgulho e vaidade, sentiu que no íntimo d’alma brotava uma fonte de linfa cristalina. Copiosas lágrimas desceram-lhe às faces rugosas e macilentas, das órbitas sem expressão, dos olhos mortos e, como se desejasse fitar o inimigo com os olhos espirituais, a fim de mostrar-lhe a sua comiseração, exclamou em voz firme:
— Estais perdoado…
Voltando imediatamente à sala contígua e sem esperar qualquer resposta, compreendeu que era chegada a última hora do inimigo.
Daí a minutos, o cadáver de André de Gioras era arrastado às Gemônias, para ser atirado ao Tibre silencioso.
O senador nada mais percebeu do restante das numerosas cerimônias no Templo de Júpiter.
O cortejo era agora iluminado pela claridade de mil fachos colocados pelos escravos em quarenta elefantes, por ordem de Tito, ao cair das primeiras sombras da noite, mas o senador, acabrunhado nos seus padecimentos morais, regressava em liteira ao palácio do Aventino, onde se fechou nos seus apartamentos particulares, alegando grande cansaço.
Tateando na sua noite, abraçou-se à cruz de Simeão, que lhe fora deixada pela crença da esposa, molhando-a com as lágrimas da sua desventura.
Em meditações amargas e dolorosas, pôde então compreender que Lívia vivera para Deus e ele para César, recebendo ambos compensações diversas na estrada do destino. E enquanto o jugo de Jesus fora suave e leve para sua mulher, seu altivo coração estava preso ao terrível jugo do mundo, sepultado nas suas dores irremediáveis, sem claridade e sem esperanças.
— Vespasiano esteve em Roma logo após a sua proclamação — Nota de Emmanuel
No grande dia do Calvário
Dolorosas suspeitas lhe vergastavam o coração impulsivo, acerca do procedimento daquela que o destino algemara ao seu espírito, para sempre, no instituto da vida conjugal. Não pudera compreender o disfarce de que Lívia se utilizara para o encontro com o profeta de Nazaret, pois seu temperamento orgulhoso rebelava-se contra aquela atitude da mulher, considerando a sua posição social um penhor da veneração e do respeito de todos e dando guarida, assim, às mais penosas desconfianças, intoxicado pelas calúnias de Fúlvia e Sulpício.
Algum tempo decorrera e, enquanto ele se enclausurava no seu mutismo e na sua melancolia, Lívia abroquelava-se na fé, nas palavras carinhosas e persuasivas do Nazareno. Nunca mais voltara ela a Cafarnaum, com o fim de ouvir as consoladoras prédicas do Messias; mas, por intermédio de Ana, que lá comparecia pontualmente, procurou auxiliar, sempre que possível, os pobres que buscavam a palavra de Jesus, na medida dos seus recursos materiais. Profunda tristeza lhe invadia o coração sensível e generoso, ao observar as atitudes incompreensíveis do companheiro; mas, a verdade é que já não colocava suas esperanças em qualquer realização do orbe terrestre, volvendo as mais ardentes aspirações para aquele Reino de Deus, maravilhoso e sublime, onde tudo devia transpirar amor, ventura e paz, no seio farto de soberanas consolações celestes.
Aproxima-se a Páscoa no ano 33, numerosos amigos de Públio haviam aconselhado a sua volta temporária a Jerusalém, a fim de intensificar os serviços da procura do filhinho, no curso das festividades que concentravam, na época, as maiores multidões da Palestina, estabelecendo possibilidades mais amplas ao reencontro do desaparecido. Peregrinos incontáveis, de todas as regiões da província, dirigiam-se para Jerusalém, a participar dos grandes festejos, oferecendo, simultaneamente, os tributos de sua fé, no suntuoso templo. A nobreza indígena também se fazia notar ali, em tais circunstâncias, através de seus elementos mais representativos. Todos os partidos políticos se arregimentavam para os serviços extraordinários das solenidades que reuniam as maiores massas do , encaminhando-se para lá os homens mais importantes do tempo. As autoridades romanas, por sua vez, concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindo-se na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados a serviço do Império, nas paragens mais remotas da província.
Públio Lêntulus não desdenhou o alvitre e, antes que a cidade se enchesse de romeiros e exploradores, já ali se encontrava com a família, fornecendo instruções aos servos de confiança, conhecedores do pequenino Márcus, de maneira a estabelecer um cordão de investigadores atentos e permanentes, enquanto perdurassem os festejos.
Em Jerusalém, o convencionalismo social não se modificara, notando-se apenas a circunstância de Públio haver dispensado a residência do tio Sálvio, adquirindo uma vila confortável e graciosa em plena rua movimentada, de onde pudesse observar, igualmente, as manifestações populares.
As vésperas da Páscoa chegaram com a volumosa preamar de peregrinos de todas as classes e de todas as localidades provinciais. Interessante observar-se, naqueles blocos heterogêneos de povo, os hábitos mais díspares entre si.
Caravanas sem conta revelando os mais esquisitos costumes, atravessavam as portas da cidade, patrulhadas por numerosos soldados pretorianos.
E enquanto o senador fazia comparações de ordem econômica, social e política, observando as massas de povo que afluíam às ruas movimentadas, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva de sua amizade e confiança.
— Sabeis, senhora, que também o Messias chegou ontem à cidade? — exclamava Ana, com um raio de alegria nos grandes olhos.
— Verdade? — perguntou Lívia, surpresa.
— Sim, desde ontem, chegou Jesus a Jerusalém, saudado por grandes manifestações populares.
A ressurreição de Lázaro, na Betânia, confirmou suas divinas virtudes de Filho de Deus, entre os homens mais descrentes desta cidade, e acabo de saber que sua chegada foi objeto de imensas alegrias da parte do povo. Todas as janelas se enfeitaram de flores para a sua passagem triunfal, as crianças espalharam palmas verdes e perfumadas no caminho, em homenagem a ele e aos seus discípulos!… Muita gente acompanhou o Mestre desde as margens do lago de Genesaré, seguindo-o até aqui, através de todas as localidades.
Quem me trouxe a notícia foi um conhecido pessoal, portador do tio Simeão, que também veio a Jerusalém, nessa grande caminhada, apesar da sua idade avançada…
— Ana, essa notícia é muito confortadora — disse-lhe a senhora, com bondade — e se pudesse iria ouvir a palavra do Mestre, onde quer que fosse; mas, bem sabes as dificuldades para a consecução deste intento. Entretanto, ficas livre de tuas obrigações e trabalhos, durante a permanência de Jesus em Jerusalém, de modo a bem aproveitares as festas da Páscoa, ouvindo, ao mesmo tempo, as prédicas do Messias, que tanto bem nos fazem ao coração.
E, entregando à criada o indispensável auxílio pecuniário, observava que Ana partia satisfeita em demanda das cercanias do Monte das Oliveiras, onde estacionaram massas compactas de peregrinos, entre os quais se notava a presença do velho Simeão, de Samaria, romeiro desassombrado que não trepidara, apesar da idade avançada, em aderir ao movimento das peregrinações pelos mais escabrosos e longos caminhos.
Em casa de Lêntulus não havia tanto interesse pelas grandes festividades do judaísmo.
Um único motivo justificava a presença do senador em Jerusalém naqueles dias turbulentos, qual o da busca incessante do filho, que parecia perdido para sempre.
Diariamente, ouvia os servos de confiança, após as diligências empreendidas e, de instante a instante, sentia-se mais acabrunhado por acerbas desilusões, considerando a luta inútil, naquelas pesquisas exaustivas e infrutíferas.
Na vivenda clara e ajardinada, as horas passavam vagarosas e tristes. Embalde se movimentavam as ruas, patrulhadas por soldados e cheias de criaturas de todos os matizes sociais. O vozerio das ruidosas manifestações populares transpunha aquelas portas quase silenciosas, como ecos apagados de rumores longínquos.
A penosa situação conjugal em que se colocara, separava o senador da mulher, como se estivessem irremediavelmente distantes um do outro e destruídos os laços sagrados do coração.
Foi a esse retiro de calma aparente que Ana voltou, certa manhã, passados alguns dias, a fim de cientificar a senhora da inesperada prisão do Messias.
Com a simplicidade espontânea e sincera da alma popular, que ela encarnava, a serva humilde historiou, com os mais íntimos pormenores, a cena provocada pela ingratidão de um dos discípulos, em virtude do despeito e da ambição dos sacerdotes e fariseus do templo da grande cidade israelita.
Amargamente compungida em face do acontecimento, Lívia considerou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente à proteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaret os ataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lhe ser possível socorrer-se do prestígio do companheiro, em tais circunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos os modos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete, notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravam particularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo as suas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, a prisão inesperada de Jesus Nazareno — acontecimento que desviara todas as atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelos feitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a sua intervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligados aos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo das pregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionário inconsciente, contra os poderes políticos do Império.
Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos de atenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado.
Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura de Sulpício Tarquínius, que vinha da parte de solicitar ao Senador o obséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governo provincial, a fim de resolver um caso de consciência.
Públio Lêntulus não se fez rogado.
Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveria esquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada, marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.
Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para o Mestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe o mundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao Pai Celestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seu coração considerava lúcido emissário dos Céus, suplicando a todas as forças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia dos homens.
Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível de Jerusalém, Públio Lêntulus foi tomado de extraordinária surpresa.
Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, em gritaria ensurdecedora.
Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a um gabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos a dedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militares graduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavam eventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelo governador, que se dirigiu a Públio Lêntulus, nestes termos:
— Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, um homem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno. Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros do Sinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, com palmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentença proferida pelos sacerdotes de Jerusalém.
Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardente visionário de coisas que não posso ou não sei compreender, surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.
Nesse comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia, que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.
— Ainda esta noite — continuou Pilatos, apontando para a esposa —, parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minha orientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu não deveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homem justo.
Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos os patrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto, de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nem colida com o meu ideal de justiça.
Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade de representante direto do Senado e do Imperador, entre nós, neste momento?
— Vossa atitude — obtemperou o senador, compenetrado de suas responsabilidades — revela o máximo critério nas questões administrativas.
E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta com a cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho e vaidade, continuou:
— Conheci de perto o profeta de Nazaret, em Cafarnaum, onde ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações, ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto social ou político, do Império. Certamente alguém o toma aqui como pretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome as ambições e despeitos dos sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhores escrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, a quem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhante assunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui em Jerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sã consciência um caso como este, considerando-se a circunstância de que julgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todos os elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.
A ideia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido à presença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se, rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.
Todavia, no palácio do tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazaret recebido com profundo sarcasmo.
Apelidado pela gente simples como “Rei dos Judeus” e simbolizando a esperança de certas reivindicações políticas para numerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famoso , o mestre de Nazaret foi tratado pelo príncipe de Tiberíade, como vulgar conspirador, humilhado e vencido.
Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta de ridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse o prisioneiro com o máximo de ironia.
Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes do tempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, e coroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos, devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaça exacerbada.
Muitos soldados romanos cercavam o acusado protegendo-o das investidas da massa furiosa e inconsciente.
Jesus, trajando, por irrisão, a túnica da realeza, coroado de espinhos e empunhando uma cana como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhos profundos, indefinível melancolia.
Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seu julgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos, exclamando:
— Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apela também para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória do profeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamente agravada perante o povo, porquanto como suprema autoridade em Tiberíade, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos a entender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossa justiça e administração.
Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me diz que esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhante conjuntura?
Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselho de patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada, em espantosa gritaria.
Um ajudante de ordens do governador, de nome Políbius, homem sensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindo-se a Pilatos:
— Senhor governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa, se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentro do menor prazo possível…
— Mas, isso é um absurdo — retrucou Pilatos, emocionado. — E, afinal, que diz o profeta em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra de recriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?
— Senhor — replicou Políbius, igualmente impressionado —, o prisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-se conduzir pelos algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo o supremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulos da sua doutrina!
Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e, inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar as legiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto, mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhação infamante, para que cumprissem as determinações das Escrituras. Fiz-lhe ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de se ordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, de maneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhante recurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens, para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está nos Céus!
— Homem extraordinário!… — revidou Pilatos, enquanto os presentes o acompanhavam estupefatos.
Políbius — continuou ele —, que poderíamos fazer para evitar-lhe a morte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?
— Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro a pena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainar as iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãos de celerados sem consciência…
— Mas, os açoites!? — diz Públio Lêntulus, admirado, antevendo as torturas do horrível suplício.
— Sim, meu amigo — redarguiu o governador, dirigindo-lhe a palavra com atenção respeitosa —, a ideia de Políbius é bem lembrada. Para evitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão deste recurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e sei de suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam.
O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maiores males.
Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aos berros estridentes da multidão amotinada.
Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentaram por momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observarem os movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia que os peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para as comemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem à condenação do humilde Messias de Nazaret. De quando em quando, fazia-se mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, que dispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.
O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, nas suas provações dolorosas e extremas.
Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviam divisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, , estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da fronte dilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimas dolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos de palidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesma disposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavam agora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpo vacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundo saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando amargurada e indefinível melancolia.
Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, que baixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobre-humana majestade.
Públio Lêntulus voltou intimamente compungido ao interior do palácio, onde, daí a poucos minutos, retornava Políbius, cientificando o governador de que a pena do açoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida, que reclamava a crucificação do condenado.
Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se a Pilatos, com intimidade:
— Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processo consumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? As massas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a de hoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar desse homem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridoso e justo.
O governador da Judeia concentrou-se por momentos, recorrendo à memória, com o fim de encontrar a desejada solução.
Lembrou-se então de Barrabás, personalidade temível, que se encontrava no cárcere aguardando a última pena, conhecido e odiado de todos pelo seu comprovado espírito de perversidade, respondendo afinal:
— Muito bem!… Temos aqui um celerado, no cárcere, para alívio de todos, e que poderia, com efeito, substituir o profeta na morte infamante!…
E mandando fazer o possível silêncio, de uma das eminências do edifício, ordenou que o povo escolhesse entre o bandido e Jesus.
Mas, com grande surpresa de todos os presentes, a multidão bradava com sinistro alarido numa torrente de impropérios:
— Jesus!… Jesus!… Absolvemos Barrabás!… Condenamos a Jesus!… Crucificai-o!… Crucificai-o!…
Todos os romanos se aproximaram das janelas, observando a inconsciência da massa criminosa, no ímpeto de seus instintos desencadeados.
— Que fazer diante de tal quadro? — perguntou Pilatos, emocionado, ao senador que o ouvia atentamente.
— Meu amigo — respondeu Públio, com energia —, se a decisão dependesse tão somente de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigos judiciários, cuja evolução não comporta mais uma condenação tão sumária como esta, e mandava dispersar a multidão inconsciente à pata de cavalo; mas, considero que as minhas atribuições transitórias, junto ao vosso governo, não me outorgam direito a tais desmandos e, além disso, tendes aqui uma experiência de sete anos consecutivos.
De minha parte, suponho que tudo foi feito para que as decisões não fossem precipitadas.
Antes de tudo, o prisioneiro foi enviado ao julgamento de Ântipas, que complicou a situação, diante da populaça irresponsável, dentro das suas infelizes noções da tarefa de um governo, deixando-vos a responsabilidade da última palavra sobre o assunto; em seguida, determinastes o suplício do açoite para satisfazer ao povo amotinado, e, agora, acabais de indicar outro criminoso para a crucificação, em lugar do acusado. Tudo inutilmente.
Como homem, estou contra este povo inconsciente e infeliz e tudo faria por salvar o inocente; mas, como romano, acho que uma província, como esta, não passa de uma unidade econômica do Império, não nos competindo, a nós outros, o direito de interferência nos seus grandes problemas morais e presumindo desse modo, que a responsabilidade desta morte nefanda deve caber agora, exclusivamente, a essa turba ignorante e desesperada e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que a dirigem.
Pilatos enterrou a fronte nas mãos, como a refletir maduramente naquelas ponderações; mas, antes que pudesse externar sua opinião, eis que Políbius aparece aflito, exclamando em atitude discreta:
— Senhor governador, é preciso apressar vossa decisão. Espíritos maldizentes começam a duvidar da vossa fidelidade aos poderes do César, compelidos pela intriga dos sacerdotes do templo, colocando a vossa dignidade em terreno equívoco para todos… Além disso, a populaça tenta invadir a casa, tornando-se necessário assumirdes atitude decisiva, sem perda de um minuto.
Pilatos ficou rubro de cólera, diante de semelhantes injunções, exclamando irritado, como se estivesse sob o jugo do mais singular dos determinismos:
— Está bem! Lavarei as mãos deste ignominioso delito! O povo de Jerusalém será satisfeito…
E, procedendo a esse ato que o celebrizaria para sempre, dirigiu algumas palavras ao condenado, mandando, em seguida, recolhe-lo a uma cela, onde pudesse permanecer alguns minutos, sem as grosseiras investidas da turba impetuosa, antes que a multidão o conduzisse ao Gólgota, que, na linguagem usual, deverá ser traduzido por Lugar da Caveira.
Um sol abrasador tornara sufocante e insuportável a atmosfera.
Saciada, afinal, a fúria da multidão nos seus desvairamentos infelizes, numerosos soldados seguiram o prisioneiro, que demandava o monte da crucificação, a passos vacilantes sob o madeiro da ignomínia, que a justiça da época destinava aos bandidos e aos ladrões.
Até o momento de sua saída sob a cruz, ninguém se interessara por ele, junto à autoridade do governador da Judeia.
Depreendia daí o senador que, quantos seguiam o Mestre de Nazaret nas margens do lago, em Cafarnaum, o haviam abandonado inteiramente.
De uma das janelas do palácio, considerou, penalizado, o desprezo infligido àquele homem que um dia, o dominara com a força magnética da sua personalidade incompreensível, observando a ondulação da turba enfurecida, ao sair o inesquecível cortejo.
Ao lado do Mestre não se via mais a carinhosa assistência dos discípulos e seus numerosos seguidores. Apenas algumas mulheres — entre as quais se destacava o vulto impressionante e agoniado de sua mãe — o amparavam afetuosamente, no doloroso e derradeiro transe.
Aos poucos, a praça extensa aquietou-se ao calor sufocante da tarde que se avizinhava.
À distância, ouvia-se ainda a vozearia da plebe, aliado ao relinchar dos cavalos e ao tinir das armaduras.
Impressionados com o espetáculo que, aliás, não era incomum na Palestina, reuniram-se os romanos em uma das salas amplas do palácio governamental, em animada palestra, comentando os instintos e paixões ferozes da plebe enfurecida.
Daí a minutos, Cláudia mandava servir doces, vinhos e frutas, e, enquanto a conversação timbrava os problemas da província e as intrigas da corte de Tibério, mal imaginava aquele punhado de criaturas que, na cruz grosseira e humilde do Gólgota, ia acender-se uma gloriosa luz para todos os séculos terrestres.
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João 11:1
ESTAVA então enfermo um certo Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta.
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Mateus 21:1
E QUANDO se aproximaram de Jerusalém, e chegaram a Betfagé, ao monte das Oliveiras, enviou então Jesus dois discípulos, dizendo-lhes:
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Marcos 14:43
E logo, falando ele ainda, veio Judas, que era um dos doze, da parte dos principais dos sacerdotes, e dos escribas e dos anciãos, e com ele uma grande multidão com espadas e varapaus.
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Isaías 53:1
QUEM deu crédito à nossa pregação? e a quem se manifestou o braço do Senhor?
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Levítico 19:18
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo: Eu sou o Senhor.
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Mateus 18:21
Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?
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