Há dois mil anos...

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Capítulo I

A morte de Flamínio

SEGUNDA PARTE • SEGUNDA PARTE.


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O ano de 46 corria calmo.

Em Cafarnaum,  vamos encontrar, de novo, as nossas personagens mergulhadas numa serenidade relativa.

As autoridades administrativas, em Roma, não eram as mesmas. Entretanto, apoiado no prestígio do seu nome e nas consideráveis influências políticas de Flamínio Sevérus, perante o Senado, Públio Lêntulus continuava comissionado na Palestina,  onde gozava de todos os direitos e regalos políticos, na administração provincial.

 

Debalde continuara ali o senador, a despeito de todo o seu imenso desejo de voltar à sede do governo imperial, esperando o ensejo de reaver o filho, que o tempo continuava a reter no domínio das sombras misteriosas. Nos últimos anos, perdera por completo a esperança de atingir o seu desiderato, mesmo porque, considerava, a esse tempo Márcus Lêntulus deveria estar no seu primeiro período de juventude, tornando-se irreconhecível aos olhos paternos.

Outras vezes, ponderava o orgulhoso patrício que o filho não mais vivia; que, certamente, as forças perversas e criminosas que o haviam arrebatado do lar teriam exterminado, igualmente o gracioso menino sob a foice da morte, temendo uma punição inexorável. Lá dentro, porém, no imo d’alma, latejava a intuição de que Márcus ainda vivia, razão por que, entre as indecisões e alternativas, de todos os dias, resolvera, antes de tudo, ouvir a voz do dever paternal, lançando mão de todos os recursos para reencontrá-lo, permanecendo ali indefinidamente, contra os seus projetos mais decididos e mais sinceros.

 

A esse tempo, vamos encontrá-lo com os traços fisionômicos ligeiramente alterados, embora treze anos houvessem dobado sobre os dolorosos acontecimentos de 33. Seus cabelos ainda guardavam integralmente a cor natural e apenas algumas rugas, quase imperceptíveis, tinham vindo acentuar a sua fácies de profunda austeridade. Serena tristeza lhe pairava no semblante, invariavelmente, levando-o a isolar-se quase da vida comum, para mergulhar tão somente no oceano dos seus papéis e dos seus estudos, com a única preocupação de maior vulto, que era a educação da filha, buscando dotá-la das mais elevadas qualidades intelectivas e sentimentais. Sua vida no lar continuava a mesma, embora o coração muitas vezes lhe pedisse reatar o laço conjugal, atendendo àqueles treze anos de separação íntima, com a mais absoluta renúncia de Lívia a todas e quaisquer distrações que não fossem as da vida doméstica e da sua crença, fervorosa e sincera. A sós com as suas meditações, Públio Lêntulus deixava divagar o pensamento pelas recordações mais doces e mais distantes e, nessas horas de introspecção, ouvia a voz da consciência que subia do coração ao cérebro, como um apelo à razão inflexível, tentando destruir-lhe os preconceitos, mas o orgulho vencia sempre, com a sua rigidez inquebrantável. Algo lhe dizia no íntimo que sua mulher estava isenta de toda mácula, mas o espírito de vaidade preconceituosa lhe fazia ver, imediatamente, da esposa ao deixar o gabinete privado de Pilatos, em vestes de disfarce, ouvindo ainda, sinistramente, as palavras escarninhas de Fúlvia Prócula, nas suas calúnias estranhas e criminosas…

 

Lívia, porém, se insulara, envolta num véu de triste resignação, como quem espera as providências sobrenaturais, que nunca aparecem no inquieto decurso de uma existência humana. O esposo a conservava junto da filha, atendendo simplesmente à condição de mãe, não lhe permitindo, porém, de modo algum, interferir nos seus planos e trabalhos educativos.

Para Lívia, aquele golpe rude fora o maior sofrimento da sua vida. A própria calúnia não lhe doera tanto; mas, o reconhecer-se como dispensável junto da filha do seu coração, constituía a seus olhos a mais dolorosa humilhação da sua existência. Era por esse motivo que mais se abroquelava na fé, procurando enriquecer a alma sofredora, com as luzes da crença fervorosa e sincera.

Longe de conservar as energias orgânicas, tal como acontecera ao marido, seu rosto testemunhava as injúrias do tempo, com a sua pesada bagagem de sofrimentos e amarguras. Na sua fronte, que as dores haviam santificado, pendiam já alguns fios prateados, enquanto os olhos profundos se tocavam de brilho misterioso, como se houvessem intensificado o próprio fulgor, de tanto se fixarem no infinito dos céus. Seus traços fisionômicos, embora atestassem velhice prematura, revelavam ainda a antiga beleza, agora transformada em indefinível e nobre expressão de martírio e de virtude. Um único pedido fizera ao esposo, quando se viu isolada dos seus afetos mais queridos, no ambiente doméstico, longe do próprio contato espiritual com a filha, circunstância que ainda mais lhe afligia o coração amargurado: — foi apenas que lhe permitisse continuar nas suas práticas cristãs, em companhia de Ana, que tanto se lhe afeiçoara, com aquele espírito de dedicação que lhe conhecemos, a ponto de desprezar as oportunidades que se lhe ofereceram para constituir família. O senador deu-lhe ampla permissão em tal sentido, chegando a facultar-lhe recursos financeiros para atender aos numerosos operários da doutrina que a procuravam, discretamente, amparando-se nas suas possibilidades materiais para iniciativas renovadoras.

 

Falta-nos, agora, apresentar Flávia Lentúlia aos que a viram na infância, doente e tímida.

No esplendor dos seus vinte e dois anos, ostentava o fruto da educação que o pai lhe dera, com a forte expressão pessoal do seu caráter e da sua formação espiritual.

A filha do senador era Lívia, na encantadora graça dos seus dotes físicos, e era Públio Lêntulus, pelo coração. Educada por professores eminentes, que se sucederam no curso dos anos, sob a escolha dos Sevérus, que jamais se descuidaram dos seus amigos distantes, sabia o idioma pátrio a fundo, manejando o grego com a mesma facilidade e mantendo-se em contato com os autores mais célebres, em virtude do seu constante convívio com a intelectualidade paterna.

A educação intelectual de uma jovem romana, nessa época, era sem dúvida secundária e deficiente. Os espetáculos empolgantes dos anfiteatros, bem como a ausência de uma ocupação séria, para as mulheres do tempo, em face da incessante multiplicação e barateamento dos escravos, prejudicaram sensivelmente a cultura da mulher romana, no fastígio do Império, quando o espírito feminino rastejava no escândalo, na depravação moral e na vida dissoluta.

O senador, porém, fazia questão de ser um homem antigo. Não perdera de vista as virtudes heroicas e sublimadas das matronas inesquecíveis, das suas tradições familiares, e foi por isso que, fugindo à época, buscou aparelhar a filha para a vida social, com a cultura mais aprimorada possível, embora lhe enchesse igualmente o coração de orgulho e vaidade, com todos os preconceitos do tempo.

 

A jovem amava a mãe com extrema ternura, mas à vista das ordens do pai, que a conservava invariavelmente junto dele, nos seus gabinetes de estudo ou nas pequenas viagens costumeiras, não fazia mistério da sua predileção pelo espírito paterno, de quem presumia haver herdado as qualidades mais fulgurantes e mais nobres, sem conseguir entender a doce humildade e a resignação heroica da mãe, tão digna e tão desventurada.

O senador buscara desenvolver-lhe as tendências literárias, possibilitando-lhe as melhores aquisições de ordem intelectual, admirando-lhe a facilidade de expressão, principalmente na arte poética, tão exaltada naquela época.

O tempo transcorria com relativa calma para todos os corações.

De vez em quando, falava-se na possibilidade de regressar a Roma, plano esse cuja realização era sempre procrastinada, em vista da esperança de reencontrar o desaparecido.

 

Num dia suave do mês de março, quando as árvores frondosas se cobriam de flores, vamos encontrar na casa do senador um mensageiro que chegava de Roma a toda pressa.

Tratava-se de um emissário de Flamínio Sevérus, que em longa carta comunicava ao amigo o seu precário estado de saúde, acrescentando que desejava abraçá-lo antes de morrer. Comovedores apelos constavam desse documento privado, suscitando ao espírito de Públio as mais acuradas ponderações. Todavia, a leitura de uma carta assinada por Calpúrnia, que viera em separado, era decisiva. Nesse desabafo, a veneranda senhora o informou do estado de saúde do marido, que, a seu ver, era precaríssimo, acentuando os penosos dissabores e angustiosas preocupações que ambos experimentavam acerca dos filhos, que, em plena mocidade, se entregavam às maiores dissipações, seguindo a corrente de desvarios sociais da época. Terminava a carta comovedora, pedindo ao amigo que voltasse, que os assistisse naquele transe, de modo que a sua amizade e paternal interesse representassem uma força moderadora junto de Plínio e de Agripa, que, homens feitos, se deixavam levar no turbilhão dos prazeres mais nefastos.

 

Públio Lêntulus não hesitou um instante. Mostrou à filha os documentos recebidos e, depois de examinarem, juntos, os pormenores do seu conteúdo, comunicou a Lívia o seu propósito de voltar a Roma na primeira oportunidade.

A nobre senhora lembrou-se, então, de quão diversa lhe seria a vida na grande cidade dos césares, com as ideias que agora possuía e pediu a Jesus não lhe faltasse a coragem necessária para vencer em todos os embates que houvesse de sustentar na sociedade romana, para conservar íntegra a sua fé.

A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora. O mesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos da Capital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesareia,  reconduzindo a família Lêntulus, de regresso, depois da permanência de quinze anos na Palestina. 

Desnecessário dizer dos pequeninos incidentes do retorno, tal a vulgaridade das viagens antigas, com a sua monotonia, aliada às vagarosas perspectivas e ao doloroso espetáculo do martírio dos escravos.

 

Cumpre-nos, entretanto, acrescentar que, nas vésperas da chegada, o senador chamou a filha e a mulher, dirigindo-lhes a palavra em tom discreto:

— Antes de aportarmos, convém lhes explique a minha resolução a respeito do nosso pobre Márcus.

Há muitos anos, guardo o maior silêncio em torno do assunto, para com os meus afeiçoados de Roma e não desejo ser considerado mau pai, em nosso ambiente social. Somente uma circunstância, como a que nos impõe esta viagem, me levaria a regressar, porquanto não se justifica que um pai abandone o filho em tais paragens, ainda mesmo torturado pela incerteza da continuidade de sua existência.

Assim, resolvi comunicar, a quantos mo perguntem, que o filho está morto há mais de dez anos, como, de fato, deverá estar para nós outros, visto a impossibilidade de o reconhecermos, na hipótese do seu reaparecimento.

Se soubessem de nossas mágoas, não faltariam embusteiros que desejassem ludibriar nossa boa fé, explorando o sentimentalismo familiar.

Ambas assentiram na decisão, que lhes parecia a mais acertada e, daí a minutos, o porto de Óstia  estava à vista, agora lindamente aparelhado pelo zelo do Imperador Cláudio,  que ali mandara executar obras interessantes e monumentais.

 

Nessa hora, não se observava o contentamento, natural em tais circunstâncias.

A partida, quinze anos antes, havia sido um cântico de esperança nas expectativas suaves do futuro, mas o regresso estava cheio do silêncio amargo das mais penosas realidades.

Além do desencanto da vida conjugal, Públio e Lívia não viam ali, entre os rostos amigos que os esperavam, as silhuetas de Flamínio e Calpúrnia, que consideravam irmãos muito amados.

Contudo, dois rapazes simpáticos e fortes, de gestos desembaraçados, nas suas togas irrepreensíveis, dirigiram-se a eles imediatamente, em escaleres confortáveis, mal a embarcação havia ancorado, rapazes esses que senador e esposa reconheceram de pronto, num afetuoso e comovido abraço.

Tratava-se de Plínio e seu irmão que, incumbidos pelos pais, vinham receber os queridos ausentes.

 

Apresentados à Flávia, ambos fizeram um movimento instintivo de admiração, recordando o dia da partida, quando a haviam acomodado no beliche, entre os seus gemidos e caretas de criança doente.

A jovem impressionara-se, também, com a figura de ambos, de quem possuía apagadas reminiscências, entre as recordações remotas da sua infância. Principalmente Plínio Sevérus, o mais moço, a havia impressionado profundamente, com os seus vinte seis anos completos, no mesmo porte elegante e distinto com que ela havia idealizado o herói da sua imaginação feminina.

Notava-se, igualmente, num relance, que o rapaz não ficara indiferente àquelas mesmas emoções, porque, trocadas as primeiras impressões da viagem e examinada a situação da saúde de Flamínio Sevérus, considerada pelos filhos como excessivamente grave, Plínio ofereceu o braço à jovem, enquanto Agripa lhe observava num leve tom de ciúme:

— Mas que é isso, Plínio? Flávia pode suscetibilizar-se com a tua intimidade excessiva!…

— Ora, Agripa — respondeu ele, com um franco sorriso —, estás muito prejudicado pelos formalismos da vida pública. Flávia não pode estranhar os nossos costumes, na sua condição de patrícia pelo nascimento e, ao demais, não nasci para as disciplinas do Estado, tão do teu gosto!…

 

A essas palavras, ditas com visível bom humor, acrescentou Públio Lêntulus, confortado pelo ambiente da sua predileção:

— Vamos, meus filhos!

E dando o braço à esposa, para desempenhar a comédia da sua felicidade conjugal na vida comum da grande cidade, seguido de Plínio, que amparava a jovem no seu braço forte e conquistador em assuntos do coração, desembarcaram junto de Agripa, a fim de descansarem um pouco, antes de seguirem diretamente para Roma, e, para o que, todas as providências haviam sido tomadas pelos irmãos Sevérus, com o máximo de carinho e espontânea dedicação.

Lívia não se esqueceu de Ana, providenciando para o seu conforto junto aos demais servos da casa, em todo o percurso de caminho que os separava da residência.

Em direção à cidade, pensou então o senador que, finalmente, ia rever o amigo muito amado. Há longos anos acariciava a ideia de confessar-lhe, de viva voz, todos os seus desgostos na vida conjugal, expondo-lhe com franqueza e sinceridade as suas preocupações, acerca dos fatos que o separavam da esposa, na intimidade do lar. Tinha sede de suas palavras afetuosas e de explicações consoladoras, porque sentia que amava a mulher acima de tudo, apesar de todos os dissabores experimentados. Não crendo sinceramente na sua queda, apenas seu orgulho de homem o afastava de uma reconciliação que cada dia se tornava mais imperiosa e necessária.

 

Em breve defrontavam a antiga residência, lindamente ornamentada para recebe-los. Numerosos servos se movimentavam, enquanto os recém-vindos faziam o reconhecimento dos lugares mais íntimos e mais familiares.

Havia quinze anos que o palácio do Aventino  aguardava os donos, sob o carinho de escravos dedicados e dignos.

Logo se servia uma refeição frugal no triclínio, enquanto os irmãos Sevérus, que participavam desse ligeiro repasto, esperavam os seus amigos, a fim de seguirem todos juntos para a residência de Flamínio, onde o enfermo os aguardava ansiosamente.

Plínio, em dado instante, como quem traz à baila uma notícia interessante e agradável, exclamou, dirigindo-se ao senador:

— Há bem tempo, ficamos conhecendo vosso tio Sálvio Lêntulus e sua família, que residem perto do Fórum. 

— Meu tio? — perguntou Públio, impressionado, como se as lembranças de Fúlvia lhe trouxessem ao íntimo uma aluvião de fantasmas. Mas, ao mesmo tempo, como se estivesse fazendo o possível por adormentar as próprias mágoas, acentuou com suposta serenidade:

— Ah! é verdade! Faz mais de doze anos que ele regressou da Palestina… 

 

Foi neste comenos que Agripa interveio como a vingar-se da atitude do irmão, quando ainda não havia desembarcado, exclamando intencionalmente:

— E por sinal que Plínio parece inclinado a desposar-lhe a filha, de nome Aurélia, com quem mantém as melhores relações afetivas, de muito tempo.

Ao ouvir essas palavras, Flávia Lêntulus fitou o interpelado, como se entre o seu coração e o filho mais moço de Flamínio já houvesse os mais fortes laços de compromissos sentimentais, dentro das leis misteriosas das afinidades psíquicas. Enquanto se passava esse duelo de emoções, Plínio fitou o irmão quase com ódio, dando a entender a impulsividade do seu espírito e respondendo com ênfase, como a defender-se de uma acusação injustificável, perante a mulher das suas preferências:

— Ainda desta vez, Agripa, estás enganado. Minhas relações com Aurélia não têm outro fundamento, além do da pura amizade recíproca, mesmo porque considero muito remota qualquer possibilidade de casamento, na fase atual da minha vida.

Agripa esboçou um sorriso brejeiro, enquanto o senador, compreendendo a situação, acalmava os ânimos, exclamando com bondade:

— Está bem, filhos; mas falaremos depois sobre meu tio. Sinto-me ansioso por abraçar o querido enfermo e não temos tempo a perder.

 

Em breves minutos um grupo de liteiras encaminhava-se para a nobre residência dos Sevérus, onde Flamínio aguardava o amigo, ansiosamente.

Sua fisionomia não acusava mais aquela mobilidade antiga e a empolgante expressão de energia que a caracterizava, mas, em compensação, grande placidez se lhe irradiava dos olhos, sensibilizando a quantos o visitavam nos seus derradeiros dias de lutas terrestres. A expressão do semblante era a do lutador derribado e abatido, exausto de combater as forças misteriosas da morte. Os médicos não tinham a menor esperança de cura, considerando o profundo desequilíbrio físico, aliado à mais forte desorganização do sistema cardíaco. As menores emoções determinavam alterações no seu estado, ensejando as mais amplas apreensões da família.

De vez em quando, os olhos serenos e tranquilos se fixavam detidamente na porta de entrada, como se esperassem alguém com o máximo interesse, até que rumores mais fortes, vindos do vestíbulo, anunciaram ao seu coração que ia cessar uma ausência de quinze anos consecutivos, entre ele e os amigos sempre lembrados.

 

Calpúrnia, igualmente muito abatida, abraçou Lívia e Públio, derramada em lágrimas e apertando Flávia nos braços, como se recebesse uma filha.

Ali mesmo, no vestíbulo, trocaram impressões e falaram das suas saudades intensas e das preocupações numerosas, até que Públio deliberou deixar as duas amigas em franca expansão afetiva e se encaminhou com Agripa a um dos compartimentos próximos do tablino, onde abraçou o grande amigo, com lágrimas de alegria.

Flamínio Sevérus estava magríssimo e suas palavras, por vezes, eram cortadas pela dispneia impressionante, dando a perceber que muito pouco tempo lhe restava de vida.

Sabendo da satisfação do pai na companhia íntima do leal amigo, Agripa retirou-se do vasto aposento, onde as sombras do crepúsculo começavam a penetrar caprichosamente, como se o fizessem no silêncio sagrado das naves religiosas.

Públio Lêntulus se surpreendeu, encontrando o velho companheiro em tal estado. Não supunha reve-lo tão depauperado. Agora, certificava-se de que era a ele, sim, que competia auxiliá-lo com os seus conselhos, levando-lhe as forças orgânicas e espirituais, com as suas exortações amigas e carinhosas.

 

Uma vez a sós, contemplou o amigo e mentor, como se estivesse a mirar uma criança enferma.

Flamínio, por sua vez, olhou-o face a face e, olhos rasos d’água, tomou-lhe as mãos nas suas dando-lhe a entender que recebia ali, naquele momento, um filho muito amado.

Num gesto brando e carinhoso, procurou sentar-se mais comodamente e, amparando-se nos ombros de Lêntulus, murmurou comovidamente ao seu ouvido:

— Públio, aqui já te não recebe o companheiro enérgico e resoluto doutros tempos. Sinto que apenas te esperava para poder entregar a alma aos deuses, tranquilamente, supondo já cumprida a missão que me competia na Terra, com a minha consciência retilínea e os meus honestos pensamentos.

 

Há mais de um ano pressinto o instante irremediável e fatal, que, agora, satisfeito o meu ardente desejo, deve estar avizinhando-se com a velocidade do relâmpago. Não desejava, pois, partir sem te apertar em meus braços, fazendo-te as últimas confidências neste leito de morte…

— Mas, Flamínio — respondeu-lhe o amigo, com serenidade dolorosa —, tudo me autoriza a crer nas tuas melhoras imediatas, e todos nós aguardamos a bênção dos deuses, de maneira que possamos contar com a tua companhia indispensável, por muito tempo ainda, neste mundo.

— Não, meu bom amigo, não te iludas com essas suposições e pensamentos. Nossa alma jamais se engana quando se avizinha das sombras do sepulcro… Não me demorarei em penetrar o mistério da grande noite, mas acredito, firmemente, que os deuses me saudarão com as luzes de suas auroras!…

 

E deixando o olhar, profundo e sereno, divagar pelo aposento, como se as paredes marmorizadas se dilatassem ao infinito, Flamínio Sevérus concentrou-se um minuto em meditações íntimas, continuando a falar, como se desejasse imprimir à conversação um novo rumo:

— Lembras-te daquela noite em que me confiaste os pormenores de um , no auge da tua emotividade dolorosa?

— Oh! se me lembro!… — revidou Públio Lêntulus recordando, de modo inexplicável, não só a palestra remota que resolvera a viagem à Palestina, mas também , no qual testemunhara os mesmos fenômenos intraduzíveis, na noite do . Ao lembrar-se daquela personalidade maravilhosa, estremeceu-lhe o coração, mas tudo fez por evitar ao amigo uma impressão mais forte e dolorosa, acrescentando com aparente serenidade: — Mas, a que vem tua pergunta, se hoje estou mais que convicto, de acordo contigo mesmo, que tudo aquilo não passava de simples impressões de uma fantasia sem importância?

— Fantasia? — replicou Flamínio, como se houvesse encontrado uma nova fórmula da verdade. — Já modifiquei por completo as minhas ideias. A enfermidade tem, igualmente, os seus belos e grandiosos benefícios. Retido no leito há muitos meses, habituei-me a invocar a proteção de Têmis,  de modo que não chegasse a ver nos meus padecimentos mais que o resultado penoso dos meus próprios méritos, perante a incorruptível justiça dos deuses, até que uma noite tive impressões iguais às tuas.

 

Não me recordo de haver guardado qualquer preocupação com a tua narrativa, mas o certo é que, há cerca de dois meses, me senti levado em sonho à mesma época da revolução de Catilina,  e observei a veracidade de todos os fatos que me relataste há dezesseis anos, chegando a ver o teu próprio ascendente, Públio Lêntulus Sura,  que era como que o teu retrato, tal a sua profunda semelhança contigo, mormente agora que te encontras nos teus quarenta e quatro anos, em plena fixação de traços fisionômicos.

Interessante é que me encontrava a teu lado, caminhando contigo na mesma estrada de clamorosas iniquidades. Lembro-me de nos vermos assinando sentenças iníquas e impiedosas, determinando o suplício de muitos dos nossos semelhantes… Todavia, o que mais me atormentava era observar-te a terrível atitude, determinando a cegueira de muitos dos nossos adversários políticos e assistindo, pessoalmente, ao desenrolar das flagelações do ferro em brasa, queimando numerosas pupilas para todo o sempre, aos gritos dolorosos das vítimas indefesas!…

Públio Lêntulus arregalou os olhos, de espanto, participando, igualmente, daquelas recordações que dormitavam fundo na sua alma ensombrada, e replicou, por fim:

— Meu bom amigo, tranquiliza o coração… Semelhantes impressões parecem reflexos de alguma emoção mais forte que perdurasse no âmago da tua memória, por minhas narrativas naquela noite de há tantos anos!…

 

Flamínio Sevérus esboçou, porém, um leve sorriso, como quem compreendia a intenção generosa e consoladora, redarguindo com serena bondade:

— Devo dizer-te, Públio, que esses quadros não me apavoraram e apenas te falo desse complexo de emoções, porque tenho a certeza de que vou partir desta vida e ainda ficarás, talvez por muito tempo, na crosta deste mundo. É possível que as recordações do teu espírito aflorem novamente e, então, quero que aceites a verdade religiosa dos gregos e dos egípcios. Acredito, agora, que temos vidas numerosas, através de corpos diversos. Sinto que meu pobre organismo está prestes a desfazer-se; entretanto, meu pensamento está vivaz como nunca e só em tais circunstâncias presumo entender o grande mistério de nossas existências. Pesa-me, no íntimo, haver praticado o mal no pretérito tenebroso, embora haja decorrido mais de um século sobre os tristes acontecimentos de nossas visões espirituais; todavia, aqui estou diante dos deuses, com a consciência tranquila.

Públio ouvia-o atentamente, entre penalizado e comovido. Procurava dirigir-lhe palavras confortadoras, mas a voz parecia morrer-lhe na garganta, embargada pelas emoções daquele doloroso momento.

 

Flamínio, porém, apertou-o de encontro ao coração, com os olhos rasos de pranto, sussurrando-lhe ao ouvido:

— Meu amigo, não tenhas dúvidas sobre as minhas palavras… Quero crer que estas horas sejam as últimas… No meu escritório estão todos os teus documentos e o memorial dos negócios de ordem material que movimentei em teu nome, na tua ausência e no concernente aos nossos problemas de ordem política e financeira. Não encontrarás dificuldade para catalogar, convenientemente, todos os papéis a que me refiro…

— Mas, Flamínio — replicou Públio, com enérgica serenidade —, acredito que teremos muito tempo para cuidar disso.

Nesse momento, Lívia e a filha, Calpúrnia e os rapazes, acercaram-se do nobre enfermo, trazendo-lhe sorriso amigo e palavras consoladoras.

O doente deu mostras de ânimo e alegria para cada um deles, encarecendo o abatimento de Lívia e a beleza exuberante de Flávia, com palavras meigas e quentes.

 

Ficando a sós, novamente, o generoso senador que a moléstia desfigurara, entre os linhos claros do leito, exclamou com bondade:

— Eis, meu amigo, as borboletas risonhas do amor e da mocidade, que o tempo faz desaparecer, célere, no seu torvelinho de impiedades…

E baixando a voz, como se quisesse transmitir ao amigo uma delicada confidência d’alma, continuou a falar pausadamente:

— Levo comigo, para o túmulo, numerosas preocupações pelos meus pobres filhos. Dei-lhes tudo o que me era possível, em matéria educativa; e, embora reconhecendo que ambos possuem sentimentos generosos e sinceros, noto que os seus corações são vítimas das penosas transições dos tempos que passam, nos quais temos o desgosto de observar os mais aviltantes rebaixamentos da dignidade do lar e da família.

Agripa vem fazendo o possível por se adaptar aos meus conselhos, entregando-se aos labores do Estado; mas Plínio teve a pouca sorte de se deixar seduzir por amigos pérfidos e desleais, que não desejam senão a sua ruína e o arrastam aos maiores desregramentos, nos ambientes suspeitos de nossas mais altas camadas sociais, levando muito longe o seu espírito de aventuras.

 

Ambos me proporcionam os maiores dissabores com os atos que praticam, testemunhando reduzidas noções de responsabilidade individual. Esbanjando grande parte da nossa fortuna própria, não sei que futuro será o da minha pobre Calpúrnia, se os deuses não me permitirem a graça de buscá-la, em breve, no exílio de sua saudade e da sua amargura, depois da minha morte!…

— Mas a mim — respondeu com interesse o interpelado — eles se me afiguram dignos do pai que os deuses lhes concederam, com a sua gentileza generosa e com a fidalguia de suas atitudes.

— Em todo caso, meu amigo, não podes esquecer que tua ausência de Roma foi muito longa e que muitas inovações se processaram nesse período.

Parecemos caminhar vertiginosamente para um nível de absoluta decadência dos nossos costumes familiares, bem como os nossos processos educativos, a meu ver, desmantelados em dolorosa falência!…

 

E como se desejasse trazer de novo a conversação para os assuntos de ordem imediata, da vida prática, acentuou:

— Agora que vejo tua filha esplendente de mocidade e de energia, renovo, intimamente, meus antigos projetos de traze-la para o círculo da nossa comunidade familiar.

Era meu desejo que Plínio a desposasse, mas meu filho mais moço parece inclinado a comprometer-se com a filha de Sálvio, não obstante a oposição de Calpúrnia a esse projeto; não por teu tio, sempre digno e respeitável aos nossos olhos, mas por sua mulher que não parece disposta a abandonar as antigas ideias e iniciativas do passado. Devo, porém, considerar que me resta ainda Agripa, a fim de concretizarmos as minhas futurosas esperanças.

Se puderes, algum dia, não te esqueças desta minha recomendação in extremis!…

— Está bem, Flamínio, mas não te canses. Dá tempo ao tempo, porque não faltará ocasião para discutir o assunto — replicou Públio Lêntulus, comovido.

 

Neste comenos, Agripa entrou na alcova, dirigindo-se ao pai, afetuosamente:

— Meu pai, o mensageiro enviado a Massília  acaba de chegar, trazendo as desejadas informações a respeito de Saul.

— E ele nada nos manda dizer sobre a sua vinda? — perguntou o enfermo, com bondoso interesse.

— Não. O portador apenas comunica que Saul partiu para a Palestina, logo depois de alcançar a consolidação da sua fortuna com os últimos lucros comerciais, acrescentando haver deliberado ir à Judeia,  para rever o pai que reside nas cercanias de Jerusalém.

— Pois sim — disse o enfermo, resignado —, à vista disso, recompensa o mensageiro e não te preocupes mais com os meus anteriores desejos.

 

Ao ouvi-los, Públio deu tratos ao cérebro para se recordar de alguma coisa que não podia definir com precisão. O nome de Saul não lhe era estranho. Com a circunstância de se localizar a residência do pai nas proximidades de Jerusalém, lembrou-se, finalmente, das personagens de suas recordações, com fidelidade absoluta. Rememorou em que fora obrigado a castigar um jovem judeu desse nome, nas cercanias da cidade, remetendo-o às galeras como punição do seu ato irrefletido, e, recordando, igualmente, o instante em que um agricultor israelita fora reclamar a liberdade do prisioneiro, dando-o como seu filho. Experimentando um anseio vago no coração, exclamou intencionalmente:

— Saul? Não é um nome característico da Judeia?

— Sim — respondeu Flamínio com serenidade —, trata-se de um escravo liberto de minha casa. Era , ainda jovem, adquirido por Valério, no mercado, para as bigas dos meninos, ao ínfimo preço de quatro mil sestércios. Tão bem se houve, entretanto, nos afazeres que lhe eram comumente designados, que, após levantar vários prêmios com as suas proezas no Campo de Marte,  destinados aos meus filhos, resolvi conceder-lhe a liberdade, dotando-o com os recursos necessários para viver e promover empreendimentos de sua própria conta. E parece que a mão dos deuses o abençoou no momento preciso, porque Saul é hoje senhor de uma fortuna sólida, com o resultado do seu esforço e trabalho.

Públio Lêntulus silenciou, intimamente aliviado, pois o seu prisioneiro, segundo notícias recebidas pelos prepostos do governo provincial se havia evadido para o lar paterno, fugindo, desse modo, à escravidão humilhante.

 

As horas da noite iam já avançadas.

O visitante lembrou-se, então, de que esperava avistar-se com Flamínio para uma palestra substanciosa e longa, a respeito de múltiplos assuntos, como, por exemplo, a sua penosa situação conjugal, o desaparecimento misterioso do filhinho, o seu encontro com Jesus de Nazaret. Mas, observava que Flamínio estava exausto, sendo justo e necessário adiar suas confidências amargas e penosas.

Foi então que se retirou do aposento para aguardar o dia seguinte, cheio de esperanças consoladoras.

Os dois amigos trocaram longo e significativo olhar no instante daquelas despedidas, que agora pareciam comuns, como as afetuosas saudações diárias doutros tempos.

Confortadoras exortações e promessas amigas foram trocadas, entre expressões de fraternidade e carinho, antes que Calpúrnia reconduzisse as visitas ao vestíbulo, com a sua bondade generosa e acolhedora.

Todavia, nas primeiras horas da manhã seguinte, um mensageiro apressado parava à porta do palacete dos Lêntulus, com a notícia alarmante e dolorosa.

Flamínio Sevérus piorara inesperadamente, sem que os médicos dessem aos seus familiares a menor esperança. Todas as melhoras fictícias haviam desaparecido. Uma força inexplicável lhe desequilibrara a harmonia orgânica, sem que remédio algum lhe paralisasse as aflições angustiosas.

 

Dentro de poucas horas, Públio Lêntulus e os seus encontravam-se de novo na vivenda confortável dos amigos.

Enquanto penetra ele, ansioso, no quarto do velho companheiro de lutas terrestres, Lívia, na intimidade de um apartamento, dirige-se à Calpúrnia nestes termos:

— Minha amiga, já ouviste falar em Jesus de Nazaret?

A orgulhosa matrona, que não perdia a linha de suas vaidades em família, ainda nos momentos das mais angustiosas preocupações, arregalou os olhos, exclamando:

— Porque mo perguntas?

— Porque Jesus — respondeu Lívia, humildemente — é a misericórdia de todos os que sofrem e não posso esquecer-me da sua bondade, agora, que nos vemos em provações tão ásperas e tão dolorosas.

— Suponho, querida Lívia — redarguiu Calpúrnia, gravemente —, que esqueceste todas as recomendações que te fiz antes de partires para a Palestina, porque, pelas tuas advertências, estou deduzindo que aceitaste de boa fé as teorias absurdas da igualdade e da humildade, incompatíveis com as nossas tradições mais vulgares, deixando-te levar nas águas enganosas das crenças errôneas dos escravos.

 

— Mas, não é isso. Refiro-me à fé cristã, que nos anima nas lutas da existência e consola o coração atormentado nas provações mais ríspidas e mais amargosas…

— Essa crença está chegando agora à sede do Império e por sinal que tem encontrado a repulsa geral dos nossos homens mais sensatos e ilustres.

— Eu, porém, conheci Jesus de perto e a sua doutrina é de amor, de fraternidade e de perdão… Conhecendo os teus justos receios por Flamínio, lembrei-me de apelar para o profeta de Nazaret, que, na Galileia,  era a providência de todos os aflitos e de todos os sofredores!

— Ora, minha filha, sabes que a fraternidade e o perdão das faltas não se compadecem, de modo algum, com as nossas ideias de honra, de pátria e de família, e o que mais me admira é a facilidade com que Públio te permitiu tão íntimo contato com as concepções errôneas da Judeia,  a ponto de modificares tua personalidade moral, segundo me deixas entrever.

— Todavia…

 

Ia Lívia esclarecer, da melhor maneira, os seus pontos de vista, com respeito ao assunto, quando Agripa entrou inopinadamente no gabinete, exclamando com a mais forte emoção:

— Minha mãe, venha depressa, muito depressa!… Meu pai parece agonizante!…

Num átimo, ambas penetraram no aposento do moribundo, que tinha os olhos parados como se fora acometido, inesperadamente, de um delíquio irrefreável.

Públio Lêntulus guardava, entre as suas, as mãos do moribundo, mirando-lhe ansiosamente o fundo das pupilas.

Aos poucos, porém, o tórax de Flamínio parecia mover-se de novo aos impulsos de uma respiração profunda e dolorosa. Em seguida, os olhos revelaram forte clarão de vida e consciência, como se a lâmpada do cérebro se houvesse reacendido num movimento derradeiro. Contemplou, em torno, os familiares e amigos bem-amados, que se debruçavam sobre ele, inquietos e ansiosos. Um médico muito amigo, que o assistia invariavelmente, compreendendo a gravidade do momento, retirara-se para o átrio, enquanto em volta do agonizante somente se ouvia a respiração opressa dos nossos conhecidos destas páginas.

 

Flamínio passeou o olhar brilhante e indefinível por todos os rostos, como se procurasse, mais detidamente, a esposa e os filhos, exclamando em frases entrecortadas:

— Calpúrnia, estou… na hora extrema… e dou graças aos deuses… por sentir a consciência… desanuviada e tranquila… Esperar-te-ei na eternidade… um dia… quando Júpiter… houver por bem… chamar-te para meu lado…

A veneranda senhora ocultou o rosto nas mãos, dando expansão às lágrimas, sem conseguir articular palavra.

— Não chores… — continuou ele, como a aproveitar os momentos derradeiros —, a morte… é uma solução… quando a vida… já não tem mais remédio… para as nossas dores…

 

E olhando ambos os filhos, que o contemplavam com ansiedade, de olhos lacrimejantes, tomou a mão do mais moço, murmurando:

— Desejaria… meu Plínio… ver-te feliz… muito feliz… É intenção tua… desposares a filha de Sálvio?…

Plínio compreendeu as alusões paternas naquele momento grave e decisivo, fazendo um leve sinal negativo com a cabeça, ao mesmo tempo que fixava os olhos grandes e ardentes em Flávia Lentúlia, como a indicar ao pai a sua preferência.

O moribundo, por sua vez, com a profunda lucidez espiritual dos que se aproximam da morte, com plena consciência da situação e dos seus deveres, entendeu a atitude silenciosa do filho estremecido e, tomando a mão da jovem, que se inclinava afetuosamente sobre o seu peito, apertou as mãos de ambos de encontro ao coração, murmurando com íntima alegria:

— Isso é mais… uma razão… para que eu parta… tranquilo… Tu, Agripa… hás-de ser também… muito feliz… e tu… meu caro… Públio… — junto de Lívia… haverás de viver…

 

Todavia, um soluço mais forte escapara-se-lhe inopinadamente e a sucessão dos singultos violentos e dolorosos obrigou-o a calar-se, enquanto Calpúrnia se ajoelhava e lhe cobria as mãos de beijos…

Lívia, também genuflexa, olhava para o alto como se desejasse descobrir os seus arcanos. A seus olhos, apresentava-se aquela câmara mortuária repleta de vultos luminosos e de outras sombras indefiníveis, que deslizavam tranquilamente em torno do moribundo. Orou no imo d’alma, rogando a Jesus força e paz, luz e misericórdia para o grande amigo que partia. Nesse instante, lobrigou a radiosa figura de Simeão, rodeada de claridade azulada e resplandecente.

Flamínio agonizava…

À medida que transcorriam os minutos, os olhos se lhe tornavam vítreos e descoloridos. Todo o corpo transudava um suor abundante, que alagava o linho alvíssimo das cobertas.

 

Lívia notou que todas as sombras presentes se haviam também ajoelhado e somente o vulto imponente de Simeão ficara de pé, como se fora uma sentinela divina, colocando as mãos radiosas na fronte abatida do moribundo. Notou, então, que seus lábios se entreabriam para a oração, ao mesmo tempo que doces palavras lhe chegavam, nítidas, aos ouvidos espirituais:

— Pai Nosso que estás no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino de misericórdia e seja feita a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus!… (Mt 6:9)

Nesse instante, Flamínio Sevérus deixava escapar o último suspiro. Marmórea palidez lhe cobriu os traços fisionômicos, ao mesmo tempo que uma infinda serenidade se estampava na sua máscara cadavérica, como se a alma generosa houvesse partido para a mansão dos bem-aventurados e dos justos.

 

Somente Lívia, com a sua crença e a sua fé, pôde conservar-se de ânimo sereno, entre quantos a rodeavam no doloroso transe. Públio Lêntulus, entre lágrimas comovedoras, certificava-se de haver perdido o melhor e o maior dos amigos. Nunca mais a voz de Flamínio lhe falaria das mais belas equações filosóficas, sobre os problemas grandiosos do destino e da dor, nas correntes intermináveis da vida. E, enquanto se abriam as portas do palácio para as homenagens da sociedade romana; e enquanto se celebravam solenes exéquias implorando a proteção dos do morto, seu coração de amigo considerava a realidade dolorosa de se haver rasgado, para sempre, uma das mais belas páginas afetivas, no livro da sua vida, dentro da escuridão espessa e impenetrável dos segredos de um túmulo.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier


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