Há dois mil anos...

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Capítulo II

Sombras e núpcias

SEGUNDA PARTE. • SEGUNDA PARTE.


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Às exéquias de Flamínio compareceram numerosos afeiçoados do extinto, além das muitas representações sociais e políticas de todas as organizações a que radicara o seu nome digno e ilustre.

Entre tantos elementos, não podia faltar a figura do pretor Sálvio Lêntulus que, nas homenagens póstumas, se fez acompanhar da mulher e da filha, que fizeram o possível por bem representar a comédia de suas fingidas mágoas pela morte do grande senador, junto de Calpúrnia que se debulhava nas lágrimas dos seus mais dolorosos sentimentos.

Ali mesmo, no palácio dos Sevérus, encontraram-se os membros da família Lêntulus, com a evidente aversão de Públio pela presença da esposa do tio, enquanto as senhoras trocavam impressões dolorosas, na afetada etiqueta das trivialidades sociais.

 

Fúlvia e Aurélia notaram, com profundo desagrado, a expressão carinhosa de Plínio Sevérus para com Flávia Lentúlia, a quem distinguia com especial atenção, nas solenidades fúnebres, como a demonstrar as preferências do seu coração.

Eis porque, daí a algum tempo, vamos encontrar mãe e filha em palestra animada sobre o assunto, na intimidade do lar, dando a entender a mesquinhez de seus sentimentos, embora os cabelos brancos infundissem veneração na fronte materna, que, apesar disso, não se deixava vencer pelos argumentos da experiência e da idade.

— Eu também — exclamava Fúlvia, maliciosamente, respondendo a uma interpelação da filha — muito me surpreendi com as atitudes de Plínio, por julgá-lo um rapaz cioso do cumprimento de seus deveres; mas não me interessei pelos modos de Flávia, porquanto sempre achei que os filhos têm de herdar fatalmente as qualidades dos pais e, mais particularmente no caso presente, quando a herança é materna, com mais bases de certeza irrefutável para o nosso julgamento.

— Oh! mãe, queres dizer, então, que conheces a conduta de Lívia a esse ponto? — perguntou Aurélia, com bastante interesse.

— Nem duvides que seja de outra forma…

 

E a imaginação caluniosa de Fúlvia passou a satisfazer a curiosidade da filha, com os fatos mais inverossímeis e terríveis, sobre a esposa do senador, quando de sua permanência na Palestina,  glosados pelas expressões de ironia e desprezo da jovem, dominada pelos mais acerbos ciúmes, terminando a narrativa nestes termos:

— Somente tua tia Cláudia poderia contar-te, literalmente, o que sofremos, em face do perjúrio dessa mulher que hoje vemos tão simples e tão retraída, como se não conhecesse as experiências mais fortes deste mundo. Não podemos esquecer que nos encontramos diante de pessoas tão poderosas na política, como na astúcia. O sobrinho de teu pai, além de marido profundamente infeliz, é um homem público orgulhoso e malvado!…

Não me consta houvesse ele corrigido a esposa descriteriosa e infiel, depois de haver verificado, com os próprios olhos, a sua traição conjugal; mas, bastou que ela o fizesse sofrer com as suas deslealdades para que todos nós, os romanos que nos encontrávamos na Judeia,  pagássemos o fato com os mais horríveis tributos de sofrimento…

 

Possuíamos um grande amigo na pessoa do lictor Sulpício Tarquínius que foi assassinado barbaramente em Samaria,  em trágicas circunstâncias sem que alguém, até hoje, pudesse identificar seus matadores, para o merecido castigo… Nossa família, que tinha interesses vultosos em Jerusalém,  foi obrigada a voltar precipitadamente para Roma, com graves prejuízos financeiros de teu pai e, por último — prosseguia a palavra venenosa da caluniadora —, o grande coração do meu cunhado Pôncio  sucumbiu sob as provações mais injuriosas e mais rudes… Destituído do governo provincial e atormentado pelas mais duras humilhações, foi banido para as Gálias,  suicidando-se em Viena,  em penosas circunstâncias, acarretando-nos inextinguível desgosto!…

 

Em face dos martírios suportados por Cláudia, em virtude da nefasta influência dessa mulher, não me surpreendo, portanto, com as atitudes da filha, procurando roubar-te o noivo futuroso!…

— Urge trabalharmos para que tal não aconteça, minha mãe — replicou a moça sob a forte impressão dos seus nervos vibráteis. — Já não posso viver sem ele, sem a sua companhia… Seus beijos me ajudam a viver no torvelinho das nossas preocupações de cada dia…

Fúlvia ergueu, então, os olhos, como a examinar melhor a ansiedade que se estampara na fisionomia da filha, redarguindo com ar inteligente e malicioso:

— Mas tu te vens entregando a Plínio, dessa maneira?

A jovem, todavia, tremendo de cólera, recebeu a indireta dentro dos infelizes princípios educativos a que obedecia desde o berço, exclamando em fúria:

— Que pensas, então, que fazemos indo às festas e aos circos? Porventura, serei eu diferente das outras moças do meu tempo?

 

E, alteando a voz como alguém que necessitasse defender-se pronunciando um libelo contra o acusador, desatou em considerações inconvenientes, através de termos asquerosos, rematando:

— E tu, mãe, não tens igualmente…

Fúlvia, porém, de um salto, colou-se ao corpo da filha numa atitude acrimoniosa e severa, exclamando com fria serenidade:

— Cala-te! Nem mais uma palavra, pois que não era meu propósito acalentar uma víbora no próprio seio!…

Compreendendo, porém, que a situação podia tornar-se mais penosa em virtude das suas grandes culpas, como mãe, como esposa e na qualidade de mulher, exclamou com voz quase melíflua, como a dar uma triste lição à própria filha:

— Ora esta, Aurélia! Não te aborreças. Se falei desse modo foi para te insinuar que não podemos cativar um homem, para as nossas garantias femininas no matrimônio, dando-lhe tudo de uma só vez. Um homem nervoso e galanteador, qual o filho de Flamínio, conquista-se por etapas, fazendo-lhe poucas concessões e muitos carinhos.

 

Bem sabes que o primeiro problema da vida de uma mulher da nossa época se resume, antes de tudo, na obtenção de um marido, porque os tempos são maus e não podemos dispensar a sombra de uma árvore que nos abrigue de surpresas penosas, entre as asperezas do caminho…

— É verdade, mãe — respondeu a jovem totalmente modificada, mercê daquelas astuciosas ponderações —; o que me dizes é a realidade e já que são tão grandes as tuas experiências, que me sugeres para a realização dos meus desejos?

— Antes de tudo — retornou Fúlvia, perversamente — devemos recorrer aos argumentos do ciúme, que são sempre muito fortes, quando existe um interesse mais ou menos sincero, de conseguir alguma coisa em assuntos de amor. E já que te entregaste tanto ao filho de Flamínio, vê se aproveitas as primeiras festas do circo, provocando-lhe impulsos de inveja e despeito.

 

Não tens sido cortejada pelo protegido do questor Britânicus?

— Emiliano? — perguntou a moça, interessada.

— Sim, Emiliano. Trata-se igualmente de um bom partido, pois o seu futuro nas classes militares parece de ótimas perspectivas. Procura seduzir-lhe a atenção, diante de Plínio, de modo a fazermos todo o possível por conseguir-te o descendente dos Sevérus, que, afinal, é o partido mais vantajoso de quantos apareçam.

— Mas se o plano falhar, para nosso desgosto?

— Resta-nos recorrer às ciências de Araxes,  com os seus unguentos e artes mágicas…

Pesado silêncio fizera-se entre ambas, no exame daquela perspectiva de recorrer, mais tarde, às forças tenebrosas de um dos mais célebres feiticeiros da sociedade de então.

 

Dias se passaram sobre dias, porém o filho mais moço de Flamínio não voltou a cortejar a filha do pretor Sálvio Lêntulus, e quando, daí a algum tempo, voltou a frequentar os circos festivos e ruidosos, não teve grande surpresa encontrando, na intimidade de Emiliano, aquela a quem se sentia ligado tão somente pelos laços frágeis e artificiais da lascívia e dos hábitos viciosos do tempo.

Aurélia, todavia, não se conformava, intimamente, com o abandono a que fora votada, planejando a melhor maneira de exercer, oportunamente, sua vingança, porque Plínio, ante as vibrações cariciosas do amor de Flávia Lentúlia, parecia um homem inteiramente modificado. Afastara-se espontaneamente das bacanais comuns da época, fugindo, igualmente, dos companheiros antigos que o arrastavam ao torvelinho de todos os vícios e leviandades. Parecia, mesmo, que uma força nova o guiava agora para a vida, talhando-lhe de novo o coração para os ambientes cariciosos e lúcidos da família.

 

No palácio dos Lêntulus, a vida transcorria com relativa tranquilidade.

Calpúrnia passava ali os primeiros meses, depois do falecimento do marido, em companhia dos filhos, enquanto Plínio e Flávia teciam o seu romance de esperança e de amor, nas luzes da mocidade, sob a bênção dos deuses, de quem não se esqueciam, na culminância radiosa da sua doce afeição.

Alheando-se das inquietações da época, Plínio recolhia-se, sempre que possível, aos seus aposentos no palácio do Aventino,  entregando-se à pintura, ou à escultura, em que era exímio, modelando em preciosos mármores belos exemplares de Vênus  e de Apolo, que eram dados à Flávia como recordação do seu intenso amor. Ela, por sua vez, compunha delicadas joias poéticas, musicadas na lira por suas próprias mãos, oferecendo as flores d’alma ao noivo idolatrado, em cujo espírito generoso colocara os mais belos sonhos do coração.

 

Apenas uma pessoa não tolerava aquele formoso encontro de duas . Essa pessoa era Agripa. Desde o instante em que vira a filha do senador, no porto de Óstia,  pensou haver encontrado a futura esposa. Supunha-se o único candidato ao coração daquela jovem romana, enigmática e inteligente, em cujas faces coradas brincava sempre um sorriso de bondade superior, como se a Palestina  lhe houvesse imposto uma beleza nova, cheia de misteriosos e singulares atrativos.

Mas, à vista dos projetos de casamento do irmão com Flávia, seus planos haviam fracassado totalmente. Debalde, presumira haver encontrado a mulher dos seus sonhos, porque a ternura, os caprichos dela pertenciam ao irmão, unicamente. Foi por esse motivo que, de par com o retraimento de Plínio Sevérus, dentro do lar, para a organização de seus projetos futuros, Agripa se desviara para uma longa série de atos impensados, acentuando, cada vez mais, a feição extravagante da sua personalidade, preferindo as companhias mais nocivas e os ambientes mais viciosos.

No curso dos seus desvios numerosos, adoecera gravemente, inspirando cuidados à sua mãe, que se desvelava pelos filhos com o mesmo carinho de sempre.

Vamos encontrá-lo, desse modo, por uma bela tarde romana, onde vimos Públio Lêntulus em amargas meditações, nas primeiras páginas deste livro.

 

Virações cariciosas refrescavam o crepúsculo, ainda saturado dos clarões de sol formoso e quente.

A seu lado, Calpúrnia examina algumas peças de lã, deitando-lhe olhares afetuosos. Em dado momento, a veneranda senhora dirige-lhe a palavra neste termos:

— Então, meu filho, rendamos graças aos deuses, porque agora te vejo muito melhor e a caminho do mais franco restabelecimento.

— Sim, mãe — murmurou o moço convalescente —, estou bem melhor e mais forte; todavia, espero que nos transfiramos para nossa casa dentro de dois dias, a fim de poder consolidar minha cura, procurando esquecer…

— Esquecer o quê? — perguntou Calpúrnia, surpreendida.

— Minha mãe — respondeu o jovem, enigmaticamente —, a saúde não pode voltar ao corpo quando o espírito continua enfermo!…

— Ora, filho, deves abrir-me o coração com mais sinceridade e mais franqueza. Confia-me as tuas mágoas mais íntimas, pois é possível que te possa dar algum consolo!…

— Não, mãe, não devo faze-lo!

 

E, assim falando, Agripa Sevérus, fosse pelo estado de abatimento em que ainda se encontrava, fosse pela necessidade de um desabafo mais intenso, desatou em pranto, surpreendendo amargamente o coração materno com a sua inesperada atitude.

— Mas que é isso, filho? Que se passa em teu íntimo, para sofreres dessa forma? — perguntou-lhe Calpúrnia, extremamente penalizada, enlaçando-o nos braços carinhosos. — Dize-me tudo!… — prosseguiu aflita. — Não me ocultes tuas mágoas, Agripa, porque eu saberei remediar a situação de qualquer modo!

— Mãe, minha mãe!… — disse ele, então, num longo desabafo — eu sofro desde o dia em que Plínio me arrebatou a mulher desejada… Sinto n’alma uma atração misteriosa por Flávia e não posso conformar-me com a dolorosa realidade desse casamento que se aproxima.

Acredito que, se meu pai ainda vivesse, procuraria salvar minha situação, conquistando para mim esse matrimônio, com as resoluções providenciais que lhe conhecíamos…

Esperei sempre, através de todas as aventuras da mocidade, que me surgisse no caminho a criatura idealizada em meus sonhos, para organizar um lar e construir uma família e, quando aparece a mulher de minhas aspirações, eis que ma arrebatam, e por quem?!… Porque a verdade é que, se Plínio não fora meu irmão, não vacilaria em usar e abusar dos mais violentos processos para atingir a consecução dos meus desejos!…

 

Calpúrnia ouvia-o em silêncio, compartilhando das suas angústias e das suas lágrimas. Ignorava aquele duelo silencioso de sentimentos e somente agora podia compreender a moléstia indefinida que lhe devorava o filho mais velho, avassaladoramente.

Seu coração possuía, porém, bastante experiência da vida e dos costumes do tempo, para ajuizar com o máximo acerto a situação e, transformando a sensibilidade feminina e os receios maternais em rígida fortaleza, respondeu-lhe comovida, acariciando-lhe os cabelos numa doce atitude:

— Meu Agripa, eu te compreendo o coração e sei avaliar a intensidade dos teus padecimentos morais; precisas, porém, compreender que há na vida fatalidades dolorosas, cujos problemas angustiantes devemos resolver com o máximo de coragem e paciência… Nem foi para outra coisa que os deuses nos colocaram nas culminâncias sociais, de modo a ensinarmos aos mais ignorantes e mais fracos as tradições da nossa superioridade espiritual, em face de todas as penosas eventualidades da vida e do destino.

Sufoca no teu íntimo essa paixão injustificável, mesmo porque, sinto que Flávia e teu irmão nasceram neste mundo com os seus destinos entrelaçados… Plínio ainda era uma criança de colo, quando teu pai já projetava esse matrimônio, agora prestes a consumar-se.

Sê forte — continuava a nobre matrona enxugando-lhe as lágrimas silenciosas e tristes —, porque a existência exige de nós, algumas vezes, esses gestos de renúncia ilimitada!…

Ergamos, todavia, nossas súplicas aos deuses! De Júpiter há-de chegar, para a tua alma ulcerada, o necessário conforto.

 

Agripa, depois de ouvir a voz materna, sentia-se mais ou menos aliviado, como se o seu íntimo houvesse serenado após uma tempestade dos mais antagônicos sentimentos.

Considerou que as ponderações maternas representavam a verdade e preparava-se, intimamente, ainda com a penosa impressão psíquica que o atormentava, para se resignar, infinitamente, com a situação dolorosa e irremediável.

Calpúrnia deixou passar alguns minutos, antes de lhe dirigir a palavra novamente, como se aguardasse o efeito salutar das suas primeiras ponderações, continuando:

— Não te interessaria, agora, uma viagem à nossa propriedade do Avênio?  Bem sei que, pela força da tua vocação e pelo imperativo das circunstâncias, teu lugar é aqui, como sucessor de teu pai; mas, essa viagem representaria uma solução de vários problemas urgentes, inclusive o teu caso íntimo.

 

Agripa ouviu a sugestão com o máximo interesse, replicando afinal:

— Minha mãe, tuas palavras carinhosas me confortaram e aceito a sugestão, a ver se consigo encontrar o maravilhoso elixir do esquecimento; contudo, desejava partir com atribuições de Estado, porque, desse modo, poderia demorar-me em Massília,  lá permanecendo com a autoridade que me será necessária em tais circunstâncias…

— E não poderias conseguir facilmente esse propósito?

— Acredito que não. Para demandar essa viagem com atribuições oficiais, apenas conseguiria os meus intentos, em caráter militar.

— E porque não movimentarmos nossas prestigiosas relações de amizade para obter o que desejas? Bem sabes que, com o auxílio de Públio e do senador Cornélio Dócus, Plínio aguarda promoção a oficial em breves dias, com amplas perspectivas de progresso e novas realizações futuras, no quadro das nossas classes armadas. Dizem mesmo que o Imperador Cláudio,  consolidando a centralização de poderes com a nova administração, se mostra satisfeito quando transforma as regalias políticas em regalias militares.

A mim só me causaria orgulho e satisfação oferecer meus dois filhos ao Império, para a consolidação de suas conquistas soberanas.

— Assim o farei — replicou Agripa, já de olhos enxutos, como se as sugestões maternas constituíssem brando remédio para as suas penosas preocupações.

 

Aos poucos, escoavam-se no horizonte os derradeiros clarões rubros da tarde, que davam lugar a uma formosa noite cheias de estrelas.

Amparado pelos braços maternos, o moço patrício recolheu-se mais confortado aos aposentos, esperando o ensejo de providenciar quanto aos seus novos planos.

Após acomodá-lo convenientemente, voltou Calpúrnia ao terraço, onde procurou repousar das intensas fadigas morais. Suplicando a piedade dos deuses, fixou nos céus constelados os olhos lacrimosos.

Parecia que o coração lhe havia parado no peito para assistir ao desfile das recordações mais cariciosas e mais doces, embora com a mente torturada por pensamentos amargos e dolorosos.

Mais de seis meses haviam decorrido após a morte do esposo e a nobre matrona sentia-se já completamente estranha na sociedade e no mundo. Fazia prodígios mentais para enfrentar dignamente a sua situação social, porquanto sentia, na sua velhice resignada, que o curso do tempo vai insulando determinadas criaturas à margem do rio infinito da vida. Sentia, no ambiente e nos corações que a rodeavam, uma diferença singular, como se faltasse uma peça do mecanismo do seu raciocínio, para completar um precioso julgamento das coisas e dos acontecimentos. Essa peça era a presença do esposo, que a morte arrebatara; era a sua palavra ponderada e carinhosa, meiga e sábia.

 

Desde os primeiros dias de permanência na casa dos amigos, recebera de Lívia e Públio, em separado, as mais dolorosas confidências sobre os fatos da Palestina,  que lhes comprometera para sempre a ventura e tranquilidade conjugal. Mobilizando, porém, todas as suas faculdades de observação e análise, não conseguira pronunciar-se em definitivo quanto aos acontecimentos em favor da inocência da sua carinhosa e leal amiga. Se, aos seus olhos, Públio Lêntulus era o mesmo homem integrado no conhecimento de seus nobilíssimos deveres junto do Estado e das mais caras tradições da família patrícia, Lívia pareceu-lhe excessivamente modificada nos seus modos de crer e de sentir.

Na sua concepção de orgulho e vaidade raciais, não podia admitir aqueles princípios de humildade, aquela fraternidade e aquela fé ativa de que Lívia dava pleno testemunho junto dos próprios escravos, dentro dos postulados da nova doutrina que invadia todos os departamentos da sociedade.

Quanto desejava ela ter ainda o esposo a seu lado, de modo a poder submeter-lhe aqueles assuntos íntimos, a fim de lhe adotar a opinião sempre cheia de ponderação e sabedoria… Mas, agora, estava sozinha para raciocinar e agir, com plena emancipação de consciência, e por mais que buscasse no íntimo uma solução para o doloroso problema conjugal dos amigos, nada podia dizer, nas suas observações e no exame das tradições familiares, cultivadas, pelo seu espírito, com o máximo de orgulho e de carinho.

 

No céu brilhavam miríades de constelações, dentro da noite, acentuando o mistério de suas penosas divagações, quando a seus ouvidos chegaram alguns rumores de passos que se aproximavam. Era Públio que, terminada a refeição, vinha igualmente ao terraço, descansar o pensamento.

— Por aqui? — perguntou a matrona com bondade.

— Sim, minha amiga, apraz-me voltar, em espírito, aos dias que já se foram… Por vezes, aprecio o repouso neste terraço, a fim de contemplar o céu. Para mim, é de lá, dessa cúpula imensa e estrelada, que recebemos luz e vida; é lá que deve estar o nosso inesquecível Flamínio, embalado pelo carinho dos deuses generosos!…

E, de fato, nobre Calpúrnia — prosseguiu o senador, atencioso —, era este um dos lugares prediletos de nossas palestras e divagações, quando o sempre lembrado amigo me dava a honra de suas visitas a esta casa. Foi ainda aqui que, muitas vezes, trocamos ideias e impressões sobre a minha partida para a Judeia,  nas vésperas de minha prolongada ausência de Roma, há mais de dezesseis anos!…

Longa pausa sobreveio, parecendo que os dois aproveitavam as claridades suaves da noite, com idêntica vibração espiritual, para descerem ao túmulo do coração, exumando as lembranças mais queridas, em resignado e doloroso silêncio.

 

Após alguns minutos, como se desejasse modificar o curso de suas recordações, exclamou a veneranda matrona:

— Lembrando-nos de tua viagem, no passado, preciso avisar-te de que Agripa deve partir para Avênio, tão logo se sinta restabelecido.

— Mas, que motiva essa novidade? — perguntou Públio, com grande interesse.

— Há muitos dias venho refletindo na necessidade de examinarmos, ali, os numerosos interesses de nossas propriedades, mesmo porque, antes de morrer, era intenção do meu morto cuidar pessoalmente deste assunto.

— A solução do problema, porém, é tão urgente assim? E o casamento de Plínio? Agripa não estará presente, porventura?

— Acredito que não; todavia, na hipótese de sua ausência, ele será representado por Saul, , que já nos mandou um mensageiro de Massília, comunicando sua presença às cerimônias.

— É pena!… — murmurou o senador, sensibilizado.

— Devo dizer-te, ainda mais — continuou a matrona, com serenidade —, que espero o prestigioso favor da tua amizade, junto de Cornélio Dócus, a fim de que consigas do Imperador Cláudio uma boa situação para o nosso viajante, que deseja partir com atribuições oficiais, necessitando para tanto que sejam transformados em regalias militares os direitos políticos que lhe competem pelo nascimento.

— Não será difícil consegui-lo. A atual administração interessa-se muito mais pela valorização das classes armadas.

 

Novo silêncio verificou-se na conversação, voltando o senador a exclamar, depois de longa pausa, como se desejasse aproveitar a oportunidade para a solução decisiva do seu amargo problema:

— Calpúrnia — disse ansiosamente —, ao falar de minha excursão no passado, informaste-me da viagem forçada do nosso Agripa, no presente. E eu continuo a relembrar minha ventura desfeita, a felicidade perdida, que nunca mais voltou!…

O senador observava todas as atitudes psicológicas da sua venerável amiga, ansioso por surpreender-lhe um gesto de conforto supremo. Desejava que ela, como conselheira de Lívia, quase como a própria mãe desta, pelos laços eternos e sacrossantos do espírito, lhe dissipasse todas as dúvidas, falasse da inocência da esposa, proporcionando-lhe uma certeza de que o seu coração caprichoso e egoísta de homem estava enganado; mas, em vão aguardou essa defesa espontânea, que não apareceu no instante necessário e decisivo. A respeitável viúva de Flamínio deixara no ar o mesmo ponto de dolorosa interrogação, murmurando com voz triste, enquanto uma réstia de luar lhe coroava os cabelos brancos:

— Sim, meu amigo, os deuses podem dar-nos a felicidade e podem retomá-la… Somos duas almas chorando sobre o sepulcro dos sonhos mais gratos do coração!…

 

Aquelas palavras desalentadoras penetravam no peito sensível e orgulhoso do senador, como sabre afiado que o rasgasse vagarosamente.

— Mas, afinal, minha nobre amiga — exclamou ele quase enérgico, como se esperasse resposta decisiva para a angustiosa indecisão da sua alma —, que pensas atualmente de Lívia?

— Públio — respondeu Calpúrnia com serenidade —, não sei se a franqueza seria um mal em certas circunstâncias, mas prefiro ser sincera.

Desde as penosas confidências que me fizeste, sobre os fatos que se desenrolaram na Palestina, venho observando nossa amiga de modo a poder advogar a causa da sua inocência perante o teu coração, mas, infelizmente, noto em Lívia as mais singulares e imprevistas diferenças de ordem espiritual. É humilde, meiga, inteligente e generosa, como sempre, mas parece menosprezar todas as nossas tradições familiares e as nossas crenças mais caras.

Em nossas discussões e palestras íntimas, não me revela mais aquela timidez encantadora que lhe conheci noutros tempos, demonstrando, pelo contrário, demasiada desenvoltura de opinião a respeito dos problemas sociais, que ela julga haver resolvido ao contato duma nova fé. Suas ideias me escandalizam com as mais injustificáveis concepções de igualdade: não hesita em classificar nossos deuses como ilusões nocivas da sociedade, para a qual tem, em todas as palavras, as mais severas recriminações, revelando singulares modificações em pensamento, indo ao extremo de confraternizar com as próprias servas de sua casa, como se fora uma simples plebeia…

 

Seria uma perturbação mental, depois de alguma queda em que a sua dignidade individual fosse chamada a uma rígida reação? Seriam, talvez, influências do meio ou mesmo das escravas com quem se habituou a conviver nessa prolongada ausência de Roma? Não sei… A realidade é que, em consciência, não posso manifestar-me, por enquanto, em definitivo, sobre as tuas amarguras conjugais, aconselhando-te a esperar melhor as demonstrações do tempo.

Depois de ligeira pausa, terminou a velha matrona as suas observações, inquirindo, com interesse:

— Porque permitiste o ingresso de Lívia nessas ideias novas, deixando-a à mercê desse reformador judeu, conhecido como Jesus de Nazaret?

— Tens razão — murmurou Públio Lêntulus, extremamente desalentado —, mas, o motivo baseou-se em circunstâncias imperiosas, porque Lívia acreditou que o profeta Nazareno nos havia curado a filhinha!…

— Foste ingênuo, porque não podias admitir essa hipótese, em face da evolução dos nossos conhecimentos, salvando, dessas perigosas influências espirituais, o espírito maleável de tua mulher. Está comprovado que esse novo credo preconiza atitudes mentais humilhantes, subvertendo as mais íntimas disposições das criaturas que o aceitam. Homens ricos e de ciência, que se submetem a esses odiosos princípios dentro do Império, em favor de um reino imaginário, parecem tresvariados por terrível narcótico, que os faz esquecer e desprezar a fortuna, o nome, as tradições e a própria família!…

 

Colaborarei contigo, afastando Flávia desses prejuízos morais, levando-a para a minha companhia, tão logo se realize o casamento de nossos queridos filhos, porque a verdade é que, quanto à Lívia, tudo já fiz para convence-la, inutilmente.

— Entretanto, minha boa amiga — murmurou o senador, sensibilizado, como a defender-se perante a nobre patrícia —, observo que Lívia continua a ser uma criatura simples e modesta, sem exigir de mim coisa alguma que atinja o terreno do exorbitante ou do supérfluo. Nestes quase dezessete anos de íntima separação dentro do lar, somente me solicitou a licença precisa para prosseguir em suas práticas cristãs junto de uma antiga serva de nossa casa, permissão essa que fui obrigado a conceder, considerando a continuidade de sua renúncia silenciosa e triste, no ambiente familiar.

— Também considero que é pedir muito pouco, mormente agora que todas as mulheres da cidade, segundo o costume, exigem dos maridos as maiores extravagâncias em luxo do Oriente; contudo, cumpre-me aconselhar-te, a ti que conservas intactas as nossas tradições mais queridas, esperares mais algum tempo antes de esqueceres as eventualidades dolorosas do passado, de modo a observarmos se Lívia virá a beneficiar-se com a continuidade de nossas atitudes, voltando, finalmente, ao seio de nossas tradições e de nossas crenças!…

 

Doloroso silêncio se fez então sentir, entre ambos, após essas palavras.

Calpúrnia supôs haver cumprido o seu dever e Públio recolheu-se, naquela noite, desalentado como nunca.

Em breves dias, conseguidos seus intentos, partia Agripa em demanda do Avênio, não obstante as rogativas do irmão e de Flávia para que esperasse as solenidades do matrimônio. Sua resolução era, porém, inabalável e o filho mais velho de Flamínio, enfraquecido sob o peso das suas desilusões, ia ausentar-se de Roma, por espaço de alguns anos, prolongados e dolorosos.

 

Passavam-se os dias celeremente e, como somos obrigados a caminhar em nossa história na companhia de todas as personagens, devemos registar que, em se vendo completamente abandonada pelo homem de suas preferências, Aurélia, ralada de venenoso despeito, resolvera aceitar a mão abnegada e afetuosa que o jovem Emiliano Lúcius lhe oferecia.

Fúlvia, que acompanhara a luta silenciosa, intoxicada pelos seus sentimentos inferiores, deliberou aguardar o tempo, para exercer as suas sinistras represálias.

E, em tempo breve, o casamento de Plínio e Flávia realizava-se com suntuosidade discreta, no palácio do Aventino.  O noivo, cheio de galardões militares e títulos honoríficos, bem como a futura companheira, tocada de formosura indefinível e de adorável simplicidade, sentiam-se venturosos como se a felicidade perfeita se resumisse tão somente na eterna fusão de seus corações e de suas almas.

 

Aquele dia, indubitavelmente, assinalava a hora mais sagrada e mais formosa dos seus destinos. Na assistência reduzidíssima, que se compunha de relações da maior intimidade, notava-se a presença de um homem ainda jovem, que representava uma figura saliente naquele quadro, caracterizado, essencialmente, de acordo com a época.

Seus olhos impetuosos e ardentes haviam pousado sobre a noiva com misterioso e estranho interesse.

Esse homem era , que, abandonando o sobrenome paterno, exibia agora uma nova denominação romana, segundo antiga autorização de Flamínio, de modo a valorizar, cada vez mais, a expressão social da sua fortuna.

Debalde, o senador fez o possível para identificar aquele judeu, que se lhe figurava um velho conhecido pessoal. Saul, porém, reconhecera o seu verdugo de outrora; reconheceu e guardou silêncio, serenando as grandes emoções do seu foro íntimo, porque, qual o pai, tinha o coração mergulhado nos propósitos tenebrosos de uma vindita cruel.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier


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