Há dois mil anos...
Versão para cópiaLembranças amargas
Lá poderia entregar-se melhor às suas meditações. Para lá transportara então, o velho político, todo o seu volumoso arquivo, bem como as lembranças mais carinhosas e mais importantes da sua vida.
Dois libertos gregos, extremamente cultos, foram contratados para os trabalhos de escrita e leitura, e assim é que, no seu retiro, se mantinha ao corrente de todas as novidades políticas e literárias de Roma.
Nesses tempos recuados, quando o homem se encontrava ainda longe dos benefícios preciosos da invenção de Gutenberg, os manuscritos romanos eram raros e sumamente disputados pelas elites intelectuais da época. Uma casa editora, quase sempre, dispunha de uma centena de escravos calígrafos, inteligentes, que confeccionavam mais ou menos mil livros por ano.
Públio, além disso, possuía em Roma sinceras e numerosas amizades ao seu serviço, recebendo em Pompeia todos os ecos dos acontecimentos da cidade que lhe absorvera as melhores energias da vida.
Amiudadamente, recebia também notícias de Plínio Sevérus, por intermédio de amigos desvelados, confortando-se com as informações sobre sua conduta, agora digna, porquanto, pelos méritos conquistados nas Gálias, fora transferido, depois de 73, para Roma, onde pela correção do proceder, embora tardiamente, conquistara posição respeitável e brilhante, prosseguindo nas tradições da probidade paterna nos cargos administrativos do Império.
Plínio, todavia, não mais voltara a procurar a esposa nem aquele que o destino o compelia a considerar como um pai dedicado e carinhoso, embora não ignorasse o supremo infortúnio dos seus familiares. No íntimo, o antigo oficial romano não desdenhava a ideia de regressar ao seio dos entes queridos; contudo, desejava faze-lo em condições de dissipar todas as dúvidas quanto ao considerável esforço próprio, de sua regeneração. Galgando postos de confiança na administração dos Flavianos, queria uma posição de maiores vantagens morais, de maneira a levar aos seus íntimos a certeza da sua reabilitação espiritual.
Corria o ano de 78, na placidez das paisagens formosas da Campânia. Enquanto Tíbur representava uma estação de cura e descanso regenerador para os romanos mais ricos, Pompeia era bem a cidade dos romanos mais sadios e mais felizes. Em suas vias públicas encontravam-se, a cada passo, os mármores soberbos e o bom gosto das mais belas construções da capital aristocrática do Império. Em seus templos suntuosos, aglomeravam-se assembleias brilhantes, de patrícios educados e cultos, que se instalavam na linda cidade, povoada de cantores e poetas, ao pé do Vesúvio, e iluminada por um céu de maravilhas, cheio de ridente sol ou bordado de estrelas cariciosas.
Públio Lêntulus, agora, sobremaneira apreciava a palavra simples e convincente de Ana, que envelhecera ao lado de Flávia, qual bela figura de marfim antigo. Era de lhe ver o interesse, a comoção, a alegria ao ouvi-la sobre a excelência dos princípios cristãos, quando se entretinham em recordações da Judeia distante.
Nessas amáveis palestras, entre os três, logo após o jantar, discutia-se a figura do Cristo e as sublimadas ilações da sua doutrina, conseguindo o senador, pela força das circunstâncias, meditar melhor os grandiosos postulados do Evangelho, ainda fragmentário e quase desconhecido, para ligar os princípios generosos e santos do Cristianismo à personalidade do seu divino fundador.
Longas horas ficavam ali, no terraço amplo, sob a luz branda das estrelas e usufruindo a carícia das brisas da noite, que eram como que bafejos de inspirações celestes, aquelas três criaturas, em cujas frontes se vincavam as experiências dos anos.
Por vezes, Flávia fazia um pouco de música, que lhe saía da harpa como vibrante gemido de dor e de saudade, alcançando o coração paterno mergulhado no abismo das reminiscências dolorosas. É que a música dos cegos é sempre mais espiritualizada e mais pura, porque, na sua arte, fala a alma profunda, sem as emoções dispersas dos sentidos materiais.
Uma noite, obedecendo ao hábito de muitos anos, vamos encontrar aquelas três criaturas no espaçoso terraço da vila de Pompeia, em doces rememorações.
Havia mais de sete anos que quase todas as palestras versavam, ali, sobre a personalidade do Messias e a excelsa pureza da sua doutrina, observada, antes de tudo, a precisa discrição, porquanto os adeptos do Cristianismo continuavam perseguidos, embora com menos crueldade.
Em todo caso, invariavelmente, a conversação era de enfermo e de velhos, sem provocar o interesse dos amigos mais moços e mais felizes.
Depois de algumas lembranças e comentários de Ana, a respeito da angustiosa tarde do Calvário, exclamava o velho senador em tom convencido:
— De mim para comigo, tenho a certeza de que Jesus ficará para sempre no mundo, como o mais elevado símbolo de consolação e fortaleza moral para todos os sofredores e para todos os tristes!…
Desde os primeiros dias de minha cegueira material procuro, intimamente, compreender-lhe a grandeza e não consigo apreender toda a extensão da sua excelsitude e dos seus ensinos.
Lembro-me, como se fosse ontem, do , ao longo das margens do Tiberíade…
— Eu também — murmurou Ana — não consigo olvidar aquelas tardes deliciosas e claras em que todos os servos e sofredores de Cafarnaum nos reuníamos à margem do grande lago, esperando o suave enlevo das suas palavras.
E como se estivesse contemplando o desfile de suas recordações mais queridas, com os olhos da imaginação, a velha serva continuava:
— O Mestre apreciava a companhia de e dos filhos de e, quase sempre, era em uma de suas barcas que ele vinha, carinhoso, atender às nossas rogativas…
— O que mais me assombra — dizia Públio Lêntulus, impressionado — é que Jesus não era, que se soubesse, um doutor da Lei ou sacerdote formado pelas escolas humanas. Sua palavra, entretanto, estava como que ungida de uma graça divina. O olhar sereno e indefinível penetrava o fundo da alma e o sorriso generoso tinha a complacência de quem, possuindo toda a verdade, sabia compreender e perdoar os erros humanos. Seus ensinos, diariamente meditados por mim, nestes últimos anos, são revolucionários e novos, pois arrasam todos os preconceitos de raça e de família, unindo as almas num grande amplexo espiritual de fraternidade e tolerância. A filosofia humana jamais nos disse que os aflitos e pacíficos são bem-aventurados no Céu; entretanto, com as suas lições renovadoras, modificamos o conceito de virtude, que, para o Deus soberano e misericordioso das Alturas, não está no homem mais rico e poderoso do mundo, mas no mais justo e mais puro, embora humilde e pobre.
Sua palavra compassiva e carinhosa espalhou ensinamentos que somente hoje posso compreender, na sombra espessa e triste dos meus sofrimentos…
— Meu pai — perguntou Flávia Lentúlia? extremamente interessada na conversação —, chegaste a ver o profeta muitas vezes?…
— Não, filha. Antes do dia nefasto de sua morte infamante na cruz, somente o vi uma vez, ao tempo em que eras pequenina e doente. Isso bastou, contudo, para que eu recebesse, nas suas palavras sublimes, luminosas lições para toda a vida. Só hoje entendo as suas exortações amigas, compreendendo que a minha existência foi bem uma oportunidade perdida!… Aliás já naquele tempo, sua profunda palavra me dizia que eu defrontava, no minuto do nosso encontro, o maravilhoso ensejo de todos os meus dias, acrescentando, na sua extraordinária benevolência, que eu poderia aproveitá-lo naquela época ou daí a milênios, sem que me fosse possível apreender o sentido simbólico de suas palavras…
— Todas as concessões de Jesus se esteavam na 5erdade santificada e consoladora — acrescentou Ana, agora gozando de toda a intimidade com os seus senhores.
— Sim — exclamou Públio Lêntulus, concentrado nas suas reminiscências — minhas observações pessoais autorizam-me a crer da mesma forma.
Se eu tivesse aproveitado a exortação de Jesus naquele dia, talvez houvesse alijado mais de metade das provações amargas que a Terra me reservava… Se houvesse buscado compreender sua lição de amor e humildade, teria procurado André de Gioras, pessoalmente, reparando o mal que lhe havia feito, com a prisão do filho ignorante, demonstrando-lhe o meu interesse individual, sem confiar tão somente nos funcionários irresponsáveis que se encontravam a meu serviço… Guiado por esse interesse, teria encontrado Saul facilmente, pois Flamínio Sevérus seria, em Roma, o confidente dos meus desejos de reparação, evitando dessa maneira a dolorosa tragédia da minha vida paternal.
Se houvesse entendido bastante a sua caridade, na cura de minha filha, teria conhecido melhor o tesouro espiritual do coração de Lívia, vibrando com o seu espírito na mesma fé, ou caindo juntamente com ela na arena ignominiosa do circo, o que seria suave, em comparação com as lentas agonias do meu destino; teria sido menos vaidoso e mais humano, se lhe houvesse entendido a preceito a lição de fraternidade…
— Meu pai — exclamava, porém, a filha, de molde a confortar-lhe as agruras do coração —, se Jesus é a sabedoria e a verdade, de qualquer modo ele saberia compreender as razões da vossa atitude, sabendo que fostes forçado pelas circunstâncias a manter esse ou aquele princípio em vossa vida.
— Minha filha, nestes últimos anos — revidou Públio, ponderadamente — tenho a presunção de haver chegado às mais seguras conclusões a respeito dos problemas amargos da dor e do destino…
Acredito hoje, com a experiência própria que as atividades penosas do mundo me ofertaram, que nós contribuímos, sobretudo, para agravar ou atenuar os rigores da situação espiritual, nas tarefas desta vida. Admitindo, agora, a existência de um Deus Todo Poderoso, fonte de toda a misericórdia e todo o amor, creio que a Sua Lei é a do bem supremo para todas as criaturas. Esse código de solidariedade e de amor deve reger todos os seres dentro dos seus dispositivos divinos, a felicidade é o determinismo do Céu para todas as almas. Toda vez que caímos ao longo do caminho, favorecendo o mal ou praticando-o, efetuamos uma intervenção indébito na Lei de Deus, com a nossa liberdade relativa, contraindo uma dívida com o peso dos infortúnios…
Não me referindo aos meus atos pessoais, que agravaram as minhas angustiosas dores íntimas, e considerando Jesus como medianeiro entre nós e Aquele que a sua profunda palavra chamava Pai Nosso, fico hoje a pensar se não cometi um erro, forçando a sua misericórdia com a minha súplica paternal, a fim de que continuasses a viver neste mundo, para o nosso amor em família, quando eras pequenina!…
Flávia Lentúlia e Ana, que acompanhavam os raciocínios do senador, desde muitos anos, lhe seguiam as conclusões morais, cheias de surpresa, em face da facilidade íntima com que sabia aliar as lições penosas do seu destino aos princípios pregados pelo profeta Nazareno.
— Na verdade, meu pai — disse Flávia Lentúlia, depois de longa pausa —, tenho a impressão de que as forças divinas haviam deliberado arrebatar-me do mundo, considerando as dores penosas que me esperavam na estrada escabrosa do meu destino desventurado…
— Sim — ajuntou o senador, cortando-lhe a palavra —, ainda bem que me compreendeste. A vida e o sofrimento nos ensinam a entender melhor o plano das determinações de ordem divina.
Antigos iniciados das religiões misteriosas do Egito e da Índia acreditam que voltamos várias vezes à Terra, noutros corpos!…
Nesse instante, o velho patrício fez uma pausa.
Lembrou-se dos seus antigos sonhos, quando, em se vendo com a indumentária de Cônsul dos tempos de Catilina, infligia aos inimigos políticos o suplício da cegueira, a ferro incandescente, quando se chamava Públio Lêntulus Sura. [Vide o cumprimento da lei de causa e efeito narrado por seu amigo Flamínio Sevérus]
Nos seus pensamentos caía como que uma torrente de ilações novas e sublimadas, como se fossem renovadoras inspirações da sabedoria divina.
Mas, depois de alguns instantes, como se o relógio da imaginação houvesse parado alguns minutos, para que o coração pudesse escutar o tropel das lembranças no deserto do seu mundo subjetivo, murmurava, confortado, na posse tardia do roteiro do seu amargurado destino:
— Hoje creio, minha filha, que, se as energias sábias do Céu haviam decidido a tua morte, em pequenina — determinação essa que eu possivelmente contrariei com a minha súplica angustiosa de pai, descoberta em silêncio pelo Messias de Nazaret no recôndito do meu orgulhoso e infeliz coração — é que deverias ficar livre do cárcere que te prendia, de modo a te preparares melhor para a resignação, para a fortaleza e para os sofrimentos. Certamente, renascerias mais tarde e encontrarias as mesmas circunstâncias e os mesmos inimigos, mas terias um organismo mais forte para resistir aos embates penosos da existência terrestre.
Reconhecemos hoje, portanto, que há uma lei soberana e misericordiosa a que devemos obedecer, sem interferir no seu mecanismo feito de misericórdia e sabedoria…
Quanto a mim, que tive organismo resistente e fibra espiritual saturada de energia, sinto que, em outras vidas, procedi mal e cometi crimes nefandos.
Minha atual existência teria de ser um imenso rosário de infindas amarguras, mas vejo tardiamente que, se houvesse ingressado no caminho do bem, teria resgatado um montão de pecados do pretérito obscuro e delituoso. Agora entendo a lição do Cristo como ensinamento imortal da humanidade e do amor, da caridade e do perdão — caminhos seguros para todas as conquistas do espírito, longe dos círculos tenebrosos do sofrimento!
E lembrando que relatara a Flamínio, nos tempos idos, concluía:
— A expiação não seria necessária no mundo, para burilamento da alma, se compreendêssemos o bem, praticando-o por atos, palavras e pensamentos. Se é verdade que nasci condenado ao suplício da cegueira, em tão trágicas circunstâncias, talvez tivesse evitado a consumação desta prova, se abandonasse o meu orgulho para ser um homem humilde e bom.
Um gesto de generosidade de minha parte teria modificado as íntimas disposições de André de Gioras; mas, a realidade é que, não obstante todos os preciosos alvitres do Alto, continuei com o meu egoísmo, com a minha vaidade e com a minha criminosa impenitência. Agravei, desse modo, meus débitos clamorosos perante a Justiça Divina, e não posso esperar magnanimidade dos juízes que me aguardam…
O velho Públio Lêntulus tinha uma lágrima dolorosa no canto dos olhos apagados, mas Ana, que ansiosa lhe escutara as palavras e conceitos, e que se regozijava intimamente verificando que o orgulhoso senhor atingira as mais justas conclusões de ordem evangélica, ilações a que também ela havia chegado nas meditações da velhice, esclarecia, bondosamente, como se as suas afirmativas simples e incisivas chegassem no momento justo para consolação de todos:
— Senador — todas as vossas observações são criteriosas e justas. Essa lei das vidas múltiplas, em favor do nosso aprendizado nas lutas penosas do mundo, eu a aceito plenamente, pois, nas suas divinas lições, Jesus asseverou que ninguém poderá penetrar o reino dos Céus sem renascer de novo. (Jo
Públio Lêntulus sentiu que uma força inexplicável lhe brotava no íntimo, como se fora manancial desconhecido, de estranho conforto, preparando-o para enfrentar dignamente todos os amargores.
— Sim — murmurou de leve —, sempre Jesus!… Sempre Jesus!… Sem ele e sem os ensinos de suas palavras que nos enchem de coragem e de fé para alcançar um reino de paz no porvir da alma, não sei bem o que seria das criaturas humanas, agrilhoadas ao cárcere dos sofrimentos terrestres… Sete anos de padecimentos infindos na soledade dos meus olhos mortos, figuram-se-me sete séculos de aprendizado cruel e doloroso! Somente assim, porém, poderia chegar a entender a lição do Crucificado!
O velho patrício, todavia, ao pronunciar a palavra “crucificado”, , na Páscoa do ano 33. Recordou que tivera em mãos o processo do Emissário Divino e, só então, ponderou a tremenda responsabilidade em que se vira envolvido naquele dia inolvidável e doloroso, exclamando depois de longa pausa:
— E pensar que, para um espírito como aquele, não houve sequer um gesto decisivo de defesa, da nossa parte, no angustioso momento da cruz infamante!… A mim, que agora vivo tão somente das minhas recordações amargas, parece-me vê-lo ainda à frente dos meus olhos, com os tristes estigmas da flagelação!…
Nele, concentrava-se todo o amor supremo do Céu para redenção das misérias da Terra e, entretanto, não vi pessoa alguma trabalhar pela sua liberdade, ou agir efetivamente em seu favor!…
— Menos alguém… — exclamou Ana, inopinadamente.
— Quem chegou a ter esse gesto nobre? — perguntou o velho cego, admirado. — Não me constou que alguém o defendesse.
— É porque ignorastes, até hoje, que vossa digna consorte e minha inesquecível benfeitora, atendendo aos nossos rogos, se dirigiu imediatamente a , tão logo o triste cortejo havia saído da corte provincial romana, para interceder pelo Messias de Nazaret, injustamente condenado pela multidão enfurecida. Recebida pelo governador no seu gabinete particular, foi em vão que a nobre senhora implorou compaixão e piedade para o Divino Mestre.
— Então Lívia chegou a dirigir-se a Pilatos para suplicar por Jesus? — perguntou o senador interessado e perplexo, recordando aquela tarde angustiosa da sua vida e rememorando as calúnias de Fúlvia, a respeito da esposa.
— Sim — respondeu a serva —, por Jesus, seu coração magnânimo desprezou todas as convenções e todos os preconceitos, não vacilando em atender às nossas súplicas, tudo fazendo por salvar o Messias da morte infamante!…
Públio Lêntulus sentiu, então, grande dificuldade para externar seus pensamentos, com a garganta sufocada de emoção, dentro de suas amargas lembranças, e com os olhos mortos, marejados de lágrimas…
Ana, porém, recordou todos os pormenores daquele dia doloroso, relatando suas passadas emoções, enquanto o senador e a filha lhe escutavam a palavra, tomados de pranto no caminho da dor, da gratidão e da saudade.
E era desse modo que, ao fim de cada dia, sob o céu brilhante e perfumado de Pompeia, aquelas três almas se preparavam para as realidades consoladoras da morte, dentro da claridade terna e triste das lições amargas do destino, na esteira das recordações amigas.
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