Instruções Psicofônicas

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Capítulo LXIV

Justiça


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Em nossa reunião da noite de 12 de maio de 1955, conduzido por nossos Benfeitores Espirituais, comunicou-se no Grupo o irmão que ficamos conhecendo por José Augusto.

Médico parricida que foi na Terra, a sua história comovente exalta a justiça e nos convida à reflexão.


Amigos, frequentando-vos o círculo de preces, ofereço-vos meu caso, como elemento de exaltação da justiça.

Inútil dizer que não passo de pobre sofredor desencarnado, procurando a paz consigo mesmo.

Antigamente eu era um médico ocioso e, por isso, infiel ao mandato que o mundo me conferira.

Filho de pais endinheirados, muito cedo perdi minha mãe, que a morte nos furtara ao convívio, passando, assim, a condensar todas as atenções do meu progenitor, que se desvelava por ver-me feliz.

Em razão disso, ainda depois de meu casamento, residíamos juntos. E ele, devotado, embalou-me os três filhinhos no regaço afetuoso.

Vivíamos em paz, entretanto, a preguiça conduziu-me ao hábito do jogo, em noitadas alegres.

E porque me fizera sanguessuga da fortuna paterna, dissipando-a, deixei que a ideia do parricídio me aflorasse à cabeça,

Meu pai era um velho hipertenso e a morte dele investir-me-ia na posse de volumosa herança. Alimentei, assim, o propósito de assassiná-lo, discretamente.

Sem qualquer escrúpulo moral, tocaiei a oportunidade, como a fera vigia a ocasião de atirar-se sobre a presa.

Certa manhã, o velhinho caiu desamparadamente no chão, quando tentava consertar nosso grande relógio de parede, ferindo-se num dos pulsos.

Por muitos dias, ataduras marcaram-lhe o braço escoriado e, dando pasto à crueldade, considerei que o ensejo havia surgido.

Num momento em que se queixava de vertigens, não titubeei. Apliquei-lhe um soporífero e, depois de longo entendimento sobre saúde, conduzi-o ao banheiro para a sangria que o seu estado orgânico recomendava.

O doente obedeceu sem qualquer relutância. Esperei que os seus nervos se amolgassem e, assim que o vi amolentado, abri-lhe as veias.

Meu pai, contudo, lendo-me a perversidade no olhar, embora semivencido pela ação do anestésico, ainda encontrou forças para dizer aos meus ouvidos:

— Não me mates, meu filho!…

Não obstante excitado, na condição de médico preparei-lhe o cadáver, recolocando as ataduras.

O remorso, porém, passou a subjugar-me. Não inspirei a mínima desconfiança aos que me cercavam, quanto ao meu inqualificável delito, no entanto, minha vida modificou-se.

Reconhecendo que o criminoso vive preso mentalmente ao local do crime, senti-me algemado ao banheiro fatídico.

Obsidiado por aquela dependência de nossa casa, à maneira de louco, dias e noites, agarrava-me a ela, ouvindo meu pai, rogando penosamente:

— Não me mates, meu filho!…

Anotando-me a demência, por dois anos consecutivos, minha família recorreu, debalde, a colegas distintos, a orações, a socorros morais e físicos.

E, justamente ao se decidir o inventário, que me entregaria o espólio valioso, eis que, a banhar-me, sofro a ruptura do aneurisma que me impôs a desencarnação.

Qual acontecera a meu pai, também eu me despedia do corpo, num banho sanguinolento.

O remorso, martelando-me o crânio, percutira dolorosamente sobre o coração, abreviando-me a partida, sem que eu pudesse tocar a riqueza obtida por minha insânia perversa.

Concluí que disputara simplesmente o inferno emoldurado de ouro, porque não posso descrever-vos o tormento a que me submeti sem remédio.

Narrar-vos minha desdita é impraticável na palavra humana… Todas as grandes comoções jazem imanifestas no espírito, porque a palavra na Terra é apenas um símbolo limitado que nunca define os grandes estados do coração.

Emaranhei-me no tempo sem saber calculá-lo. Continuava eu no banheiro sanguinolento ou ele perseverava dentro de mim?!… Formulando semelhante pergunta a mim mesmo, prosseguia fitando meu pai na água vermelha e ouvindo-lhe a súplica inolvidável:

— Não me mates, meu filho!…

Em vão, procurei fugir de mim mesmo, aniquilar-me, morrer de novo ou asilar-me no inferno idealizado pela teologia católica, porquanto as cinzas inexistentes do nada ou as chamas exteriores seriam bênçãos, confrontadas com o martírio que me vergastava a consciência.

Minha própria imaginação atormentada era meu cárcere. E, desse ergástulo, meu pensamento extravasava, dando forma às criações de meu remorso em padecimento remissor…

Um momento apareceu em que mãos piedosas me trouxeram à oração.

Há quase três anos partilho-vos as preces e estudos e ouço-vos a palavra de consolação e socorro, junto aos aflitos e desesperados, delinquentes e suicidas, loucos e enfermos, obsidiados e obsessores, que saíram da carne pela porta falsa do desequilíbrio e da ilusão e de cada apontamento regenerador retirei os fios com que teci a minha túnica de apaziguamento e renovação.

Tenho aprendido a humilhar-me e a esperar… Procuro converter o arrependimento tardio em oração oportuna…

E quando algo pude rogar aos nossos amigos, pedi a felicidade de rever minha vítima, a fim de mendigar-lhe perdão.

Sempre supus que meu progenitor me odiasse e que o pensamento dele me perseguisse, reclamando punição e vingança…

Entretanto, nossos instrutores fizeram-me reconhecer que eu não era castigado senão por mim mesmo, que a imagem de meu pai agonizante no banheiro terrível era a fixação de minhalma no quadro íntimo que o meu pensamento vitalizava em remorso constante…

Amparado pelos amoráveis benfeitores de nossa vida, fui reconduzido à presença daquele para quem eu fora objeto de imensa adoração!

Oh! mistérios divinos da Sabedoria Celestial!… Penetramos vasto gabinete de um gerente de indústria e, ali, depois de tantos anos, encontrei meu pai em posição semelhante àquela em que nos despedimos…

Era o mesmo homem na madureza física, aureolada agora pela experiência do trabalho incessante a lhe brilhar os olhos lúcidos! E, acima da fronte encanecida, destacava-se antigo retrato a óleo — o meu retrato.

Meu velho progenitor havia renascido da união conjugal de um dos meus filhos que, sem fortuna material, já que eu fora substituído em casa por um homem tão viciado e devasso quanto eu havia sido, aprendera na rude escola do esforço pessoal a conviver com o trabalho digno…

Na ordem terrena, transferira-se meu pai à condição de meu neto…

Num relance, apreendi-lhe os pensamentos. Sentia por mim carinhosa atração e inexprimível amor. Desejaria ter consigo o avô que supunha desconhecer…

Afeiçoara-se-me à efígie e respeitava-me o nome… Orava por minha paz no mundo das almas e envolvia-me a presença com irradiações de infinita ternura…

Ah! o pranto jorrou-me em catadupas de alegria e gratidão!… Quis atirar-me em seus braços e renascer na fonte consanguínea que lhe fecunda o campo familiar!…

Essa ventura seria, porém, agora, demasiado sublime para quem se fez tão infortunado, mas ser-lhe-ei servo fiel.

Ressurgirei no mundo entre aqueles que lhe obedecem à orientação, poderei engraxar-lhe os sapatos, preparar-lhe a mesa e chamá-lo “meu senhor”… Isso constituirá, graças a Deus, a minha felicidade maior!…

Amigos, que desfrutais, ainda na carne, o tesouro divino do conhecimento com Jesus, considerai a riqueza que vos felicita o caminho!… E, pelo muito que convosco tenho recebido de nossos benfeitores, peço ao Pai Celestial nos proteja e abençoe.




José Augusto
Francisco Cândido Xavier

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