Lázaro Redivivo

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Capítulo III

Carta aberta

Meu amigo, soube que vocês esperaram, em Sebastianópolis, um escritor já morto, com grande estardalhaço jornalístico.

À maneira do viajante que volta de longe, estranho na própria terra e irreconhecível aos seus, deveria ele descer de algum ônibus invisível e aparecer como fantasma autêntico, relacionando novidades e anedotas do país das sombras.

Segundo a tradição venerável do Evangelho, Jesus apareceu numa sala de portas cerradas, em Jerusalém, depois da ressurreição, mas somente aos discípulos amados, à luz da confiança na intimidade do coração, contando-se, ainda, que um deles, transformando-se, de chofre, em investigador renitente, avançou para o Mestre, apalpando-lhe as chagas ainda vivas, como se o Cristo só pudesse ser identificado pelas feridas da cruz.

O escritor que vocês aguardavam, porém, era chamado a testemunho maior. Exigiam que ele retomasse os ossos carcomidos no apartamento de subsolo, onde seu corpo descansa, e viesse para a via pública discutir com os sacerdotes, confundir os médicos, esclarecer tabeliães e serventuários da justiça e mostrar, não somente as úlceras exclusivamente a um amigo, mas todas as suas vísceras à curiosidade popular.

Francamente, a expectação de vocês estarrecia a qualquer, embora compreenda com que naturalidade os vivos provocam os mortos, dentro do véu da carne, velho manto das ilusões.

Vocês, aí no mundo, enviam tantos amigos para o Céu e tantos inimigos para o Inferno, tentando subverter a justiça divina, que não era demais requisitar a presença de um comentarista morto, recorrendo à justiça humana. E, observando os apuros do escritor desencarnado, recordei o artigo vigésimo das famosas instruções de Torquemada, segundo Llorente, que, por espírito de caridade na salvação dos hereges, recomendava aos inquisidores a exumação dos cadáveres dos escrevinhadores impenitentes, para responderem aos processos de lesa-fé, embora os réus só pudessem comparecer em atitude pouco higiênica, em virtude dos vermes que se lhes apossavam dos ossos. Felizmente, porém, para a tranquilidade de todos nós, que já atravessamos as águas turvas do , e para honra da civilização, Tomás de Torquemada também já restituiu os despojos ao campo de cinzas, há quatrocentos e quarenta e sete anos. Não obstante esta certeza confortadora, impressionava-me o volume de opiniões desconcertantes e das acusações lançadas a esmo.

Reclamavam vocês a presença do morto, com todos os pormenores anatômicos e características psicológicas e, para tanto, pediam o apoio da organização judiciária, apesar da dificuldade para encontrar um meirinho habilitado a entregar mandados no “outro mundo”.

Muitos afirmavam que a providência estabeleceria a vitória definitiva da verdade, como se a ressurreição do Cristo não tivesse felicitado o espírito humano há quase vinte séculos. Outros queriam ver para crer, convencidos de que a fé representa construção fenomênica, sem bases no raciocínio e no coração. Não faltaram os que lambiam os beiços, esperando a surpresa final, transformando o respeitável estudo das questões do destino e do ser em ruidosa luta de boxe, com o menosprezo de todos os patrimônios espirituais que a civilização ajuntou, devagarinho, vertendo sangue e lágrimas nos conflitos evolutivos.

Dissuadam-se, porém, se é que ainda conservam injustificável expectativa quanto aos demais.

Os mortos têm voltado em todos os tempos para acalentar a esperança dos vivos de boa vontade, mas os homens de má-vontade estão cegos e é impossível curar a cegueira voluntária, não obstante nossa dedicação afetuosa aos companheiros de luta. Ainda mesmo que os desencarnados surgissem de inopino aos olhos das criaturas humanas, em vista do entendimento rudimentar em que se encontram, recorreriam sem demora às teorias de negação, criando recursos para novos ensaios de dúvida palavrosa e brilhante.

Os fenômenos não saciam a sede espiritual e a sensação não substitui o trabalho necessário ao desenvolvimento. Convençam-se de que nenhum de nós confundirá as leis eternas. Nem a exigência de vocês e nem a nossa afetividade poderão perturbar a ordem estabelecida. Todas as realizações legítimas pedem preparo e serviço, e você já pensou nas graves consequências do fato que pleiteavam, apaixonadamente? Que seria dos vivos, atolados até o pescoço nos interesses mesquinhos do imediatismo terrestre, se os mortos andassem agora materializados, publicamente, exigindo-lhes a renovação instantânea que só o trabalho, o tempo e a experiência podem fornecer?

Desiluda-se, meu caro. Imensurável é a compaixão do Senhor que jamais nos fulminará a pequenez de vermes com a revelação inopinada e integral de sua grandeza.

Além disso, vocês todos virão para cá. Ninguém faltará na, passagem silenciosa que alguns companheiros alegres costumam apelidar pitorescamente de “defuntolândia”. Sem exceção de um só, lançar-se-ão às águas pesadas do velho rio da morte. Não importa a identificação dos necrotérios onde vocês deixarão as vísceras cansadas… Conforta-nos, sobretudo, a certeza de que nas reuniremos uns aos outros, a fim de crescermos em sabedoria e compreensão.

Entretanto, recordando as antigas ilusões que também me dominaram, quando perambulei no vale de sombras da carne, e notando a desvairada paixão com que se reclamava a presença do morto, ouso terminar esta carta com uma interrogação. Teriam vocês, de fato, bastante desassombro e serenidade para ver tranquilamente o fantasma e ouvir as revelações da morte?


(.Humberto de Campos)


Sebastianópolis — Referência alegórica à cidade do Rio de Janeiro, antigamente chamada São Sebastião do Rio de Janeiro.



Irmão X
Francisco Cândido Xavier

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