Luz Acima
Versão para cópiaRecordando o filósofo
Conta-se que Epicteto, o escravo filósofo, visitado por Lisandro, liberto de Epafrodito, que lhe apresentava despedidas, em razão de mudança precipitada para Roma, entrou em fundo silêncio, diante do amigo íntimo.
— Pois não te regozijas? — exclamou o amigo, exonerado do cativeiro — não sentirás comigo o júbilo da transferência feliz?
O interpelado fixou-o, de frente, e indagou: — Que pretendes?
— Uma viagem maravilhosa, o ambiente diverso, a modificação da vida, o esplendor da cidade imperial, a honra de ouvir os tribunos célebres, a contemplação dos espetáculos faustosos e, quem sabe, talvez o destaque entre os patrícios dominadores.
O filósofo escutava o companheiro sem o mais leve movimento.
Terminada a breve exposição, objetou, imperturbável:
— Empreendes longa e perigosa jornada, em busca de importância pessoal que te satisfaça a ambição. No entanto, que viagem já fizeste para modificar opiniões e melhorar sentimento?
O amigo surpreendido não conseguiu responder.
— Procuras ambiente diverso — prosseguiu o sábio sem alterar-se —; todavia, em que idade tentaste a própria renovação? Odeias sempre que te ferem, reages quando te insultam, justificas-te apressadamente quando te acusam de alguma falta… Que novidades poderás encontrar no caminho da vida? Desejas o esplendor da cidade dos Césares, mas não acendeste ainda a mais humilde candeia dentro de ti. Queres o júbilo de escutar os oradores famosos; porém, jamais consultaste alguém sobre os recursos que te façam melhor. Buscas espetáculos extravagantes para os olhos de carne, esquecido de que há prisioneiros contemplando festas loucas das grades do cárcere. Sonhas figurar entre os que dominam, mas não tens ainda o comando da própria existência.
O amigo corou ante as palavras serenas, mas exclamou irritadiço:
— No entanto, eu agora sou livre…
Epicteto sorriu e terminou:
— Tens a liberdade, mas não fugirás de ti mesmo…
O episódio recorda-nos a própria vida.
Da juventude, cheia de sonhos, à velhice coroada de desilusões, convida-nos a verdade ao campo consciencial para os serviços de iluminação íntima. À maneira do amigo de Epicteto, contudo, repousamos à sombra das árvores floridas de mentiras deliciosas, na floresta inextricável das emoções humanas. Procuramos melodias que nos embalem os ouvidos e decorações de luxo que nos magnetizem o olhar, colhemos botões de flores e inutilizamos frutos verdes, ciosos de nossa independência, permanecendo sempre os mesmos joguetes da reação inferior, quando a luta nos visita de leve.
Desejamos e realizamos no plano exterior, penetrando, em seguida, os caminhos do tédio mortal.
Esgotamos a taça de vinho embriagador para encontrarmos, no fundo, o vinagre do desalento.
Terminadas as decepções da natureza física, conservamos o derradeiro e mais terrível engano. Esperamos na morte a revelação de um paraíso maravilhoso de ambrosias e cânticos angélicos. Sonhamos atravessar sublimes pórticos de misteriosos palácios, repletos de tesouros augustos e láureas imortais.
É a viagem difícil do liberto a uma Roma diferente, aureolada de púrpuras e riquezas. Entretanto, à frente do castelo celestial, resplendente de luzes, estacamos, defrontados por nós mesmos, em amargosas sombras do coração. Intentamos avançar, ébrios de esperança, gritando nosso júbilo diante da “terra nova”. Todavia, pesadas algemas agrilhoam-nos o espírito ao que somos, fazendo-nos reconhecer que a semeadura da indiferença, produz abundante colheita de remorsos e lágrimas.
Reclamamos, choramos, suplicamos…
A consciência retilínea, porém, responde calma:
— Que realizaste senão repetir, até hoje, o que fazias há séculos? Odeias, quando te perseguem; reages, quando te apedrejam; defendes-te, apressado, quando te acusam… Não compreendeste, não ajudaste, não amaste.
Ansiosos pela fuga, contemplamos o plano infinito, que se desdobra, convidando-nos à maravilhosa aventura no limiar da Eternidade, e, tentando último esforço, para nos desvencilharmos das próprias obras, exclamamos, também:
— No entanto, eu agora sou livre…
E a consciência, divina e irrepreensível, replica-nos com a serenidade imperturbável do sábio cativo:
— Tens a liberdade, mas não fugirás de ti mesmo.
(.Humberto de Campos)
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