Luz no Lar

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Capítulo XXXV

Carta a meu filho


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Meu filho, dito esta carta para que você saiba que estou vivo.

Quando você me estendeu a taça envenenada que me liquidou a existência, não pensávamos nisso. Nem você, nem eu.

A ideia da morte vagueava longe de mim, porque esperava de suas mãos apenas o remédio anestesiante para a minha enxaqueca.

Entendi tudo, porém, quando você, transtornado, cerrou subitamente a porta e exclamou com frieza:

— Morre, velho!

As convulsões que me tomavam de improviso, traumatizavam-me a cabeça… Era como se afiada navalha me cortasse as vísceras num braseiro de dor.

Pude ainda, no entanto, reunir minhas forças em suprema ansiedade e contemplar você, diante de meus olhos.

Suas palavras ressoavam-me aos ouvidos: — “morre velho!” Era tudo o que você, alterado e irreconhecível, tinha agora a dizer.

Entretanto, o amor em minhalma era o mesmo.

Tornei à noite recuada quando o afaguei pela primeira vez. Sua mãezinha dormia, extenuada…

Pequenino e tenro de encontro ao meu peito, senti em você meu próprio coração a vagir nos braços…

E as recordações desfilaram, sucessivas. Você, qual passarinho contente a abrigar-se em meu colo, o álbum de fotografias em que sua imagem apresentava desenvolvimento gradativo em todas as posições, as festas de aniversário e os bolos coloridos enfeitados de velas que seus lábios miúdos apagavam sempre numa explosão de alegria… Rememorei nossa velha casa, a princípio humilde e pobre, que o meu suor convertera em larga habitação, rica e farta… Agoniado, recordei incidentes, desde muito esquecidos, nos quais me observava expulsando crianças ternas e maltrapilhas do grande jardim de inverno para que nosso lar fosse apenas seu… Reencontrei-me, trabalhando, qual suarento animal, para que as facilidades do mundo nos atendessem as ilusões e os caprichos…

Em todos os quadros a se me reavivarem na lembrança, era você o grande soberano de nosso pequeno mundo…

O passado continuou a desdobrar-se, dentro de mim. Revisei nossa luta para que os livros lhe modificassem a mente, o baldado esforço para que a mocidade se lhe erigisse em alicerce nobre ao futuro… De volta às antigas preocupações que me assaltavam, anotei-lhe, de novo, as extravagâncias contínuas, os aperitivos, os bailes, os prazeres, as companhias desaconselháveis, a rebeldia constante e o carro de luxo com que o presenteei num momento infeliz…

Filho do meu coração, tudo isso revi… Dera-lhe todo o dinheiro que conseguira ajuntar, mas você desejava o resto.

Nas vascas da morte, vi-o, ainda, mãos ansiosas, arrebatando-me o chaveiro para surripiar as últimas joias de sua mãe… Vi perfeitamente quando você empalmou o dinheiro, que se mantinha fora de nossa conta bancária, e, porque não podia odiá-lo, orei — talvez com fervor e sinceridade pela primeira vez — rogando a Deus nos abençoasse e compreendendo, tardiamente, que a verdadeira felicidade de nossos filhos reside, antes de tudo, no trabalho e na educação com que lhes venhamos a honrar a vida.

Não dito esta carta para acusá-lo. Nem de leve me passou pelo pensamento o propósito de anunciar-lhe o nome. Você continua sangue de meu sangue, coração de meu coração.

Muitas vezes, ouvi dizer que há filhos criminosos, mas entendo hoje que, na maioria das circunstâncias, há, junto deles, pais delinquentes por acreditarem muito mais na força do cofre que na riqueza do espírito, afogando-os, desde cedo, na sombra da preguiça e no vício da ingratidão.

Não venho falar, assim, unicamente a você, porque seu erro é o meu erro igualmente. Falo também a outros pais, companheiros meus de esperança, para que se precatem contra o demônio do ouro desnecessário, porque todo ouro desnecessário, quando não busca o conselho da caridade, é tentação à loucura.

Há quem diga que somente as mães sabem amar e, realmente, o regaço materno é uma bênção do paraíso. Entretanto, meu filho, os pais também amam e, por amar imensamente a você, dirijo-lhe a presente mensagem, afirmando-lhe estar em prece para que a nossa falta encontre socorro e tolerância nos tribunais da Divina Justiça, aos quais rogo me concedam, algum dia, a felicidade de tê-lo novamente ao meu lado, por retrato vivo de meu carinho… Então nós dois juntos, de passo acertado no trabalho e no bem, aprenderemos, enfim, como servir ao mundo, servindo a Deus.




Essa mensagem foi originalmente publicada em 1961 pela FEB e é a 27ª lição do livro “”



J.
Francisco Cândido Xavier

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