Luz no Lar

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Capítulo LIX

Pais e filhos


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Nas vésperas da reencarnação, sou impelido a falar-vos de minha bancarrota espiritual!…

Instrutores e guardiães recomendam-me destacar a importância do ouvido… Conseguiria, no entanto, ensinar alguma coisa? Devo compreender a razão dessa ordem.

Nada possuo de bom para dar; contudo, as vítimas da calúnia conseguem reter o doloroso privilégio de exibir a própria falência!… Ó Deus de amor, dai-me forças para confessar a verdade, apenas a verdade!…

Pedreiro modesto, órfão de mãe desde a meninice, casei-me por amor, embora contra os desígnios de meus irmãos, que me reservavam noiva diferente. Garantindo-me a escolha, porém, estava nosso pai a meu lado — o abnegado pai que amadurecera o raciocínio nas dificuldades do mundo e iluminara o coração no conhecimento do Espiritismo. Carinhoso, assegurou-me o enlace, aprovou-me as decisões e intentou preparar-me, diante da vida, dispensando-me ensinamentos que eu simulava aceitar, de modo a lhe não perder a complacência e a ternura…

Seis anos passaram, sem que a hostilidade familiar contra minha mulher esmorecesse, seis anos de maledicência na base da perseguição cordial…

Alice, a companheira inexperiente, proporcionara-me dois filhos queridos, quando se engravidou pela terceira vez.

Nessa época, o veneno já me corroera a confiança. Apontava-se amigo nosso de infância como sendo o responsável pelos supostos desacertos daquela que a Providência Divina me colocara nas mãos por esposa leal.

Circunstâncias provocadas pelos que mostravam interesse em nossa desunião, falsos testemunhos, bilhetes anônimos e difamações fantasiadas de bons conselhos acabaram por arruinar-me…

Discutimos. Acusei-a, defendeu-se. Chorou, escarneci…

E, para fiscalizar-lhe a conduta, transferi-me para a casa paterna, ameaçando tomar-lhe as crianças, através do desquite. Para isso, porém, queria provas, tinha fome de confirmações do inexistente.

Meu pai surgia conciliador:

— Meu filho, paternidade é compromisso perante Deus…

— Você não tem direito de proceder assim…

— Onde a caridade para com a esposa ingênua?…

— Mesmo que ela errasse, constituiria isso motivo para uma sentença de abandono implacável?

— Há comportamentos ditados por desequilíbrios espirituais que não conhecemos na origem…

— Pense nas tragédias da obsessão que campeiam no mundo…

— E os pequeninos? Terão eles a culpa de nossas perturbações?

— Recorramos a prece, meu filho!… A prece nos clareará o caminho…

Silenciava, ao recolher-lhe as advertências, em face da veneração que lhe tributava, mas, no íntimo, articulava minhas respostas imanifestas: “orarei pela boca do revólver”, “pobre pai”, “bobo de velho com setenta e seis anos”, “cabeça tonta”, “caduco”, “fanático”…

E, noite a noite, espreitava, de longe, os movimentos de Alice, à feição da serpente vigiando a furna de que aparentemente desertara.

Duas semanas decorreram, normais, quando sobreveio o momento em que lobriguei o vulto de um homem que saía de nossa casa…

Seria o rival…

Guardei segredo e prossegui na tocaia.

Mais quatro dias e o mesmo homem chegou de carro, despediu-se do motorista e entrou… Puxei o relógio. Onze horas e quinze minutos. Noite quente.

Prevenido, acerquei-me da moradia, que se localizava em subúrbio remoto.

Encontraram-se os dois com mostras de intimidade e, a distância, notei que se acomodavam num banco de pedra do pátio lateral, que a sombra envolvia. Conversavam sugerindo carinho mútuo. Enxergava-lhes o perfil, mergulhado em penumbra, conquanto não lhes ouvisse as palavras, e estudei, friamente, a posição que ocupavam na peça estreita.

Desvairado, consultei o portão de entrada, verificando-o semi-aberto. Acesso fácil.

Com a sagacidade de um felino, avancei, descarregando a arma nos dois.

Ouvi gritos, mas ocultei-me na vizinhança, para fugir em seguida, a sentir-me vingado.

Não vacilaria arrostar a polícia, se necessário.

Tentando refrigerar a cabeça, procurei descansar algumas horas em praia deserta. Entreguei o revólver à lama de esgoto esquecido e voltei a casa para saber, aterrado, que eu não apenas assassinara minha esposa, mas também meu abnegado pai que a socorria…

Não acreditei.

Corri ao necrotério e, ao reconhecê-los, tornei ao lar, atormentado pelo remorso, e enforquei-me, sem dar outra impressão que não fosse a de um homem que a dor fizera delirar, atirando-o ao suicídio…

Exilado por minha própria crueldade, em vales tenebrosos, nunca mais vi os que amo…

Entendereis o que sofro?

Quantos anos passaram sobre os meus crimes? Não sei… Os que choram sem o controle do tempo não sabem contar as horas…

Misericórdia, meu Deus!…

Dai-me a reencarnação, os empeços da Terra, a luta, a provação e o esquecimento, mas ainda que eu padeça humilhação e surdez, durante séculos, permiti, Senhor, que eu aprenda a escutar!…




João
Francisco Cândido Xavier


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