Mãe Antologia Mediúnica
Versão para cópiaCarta a minha mãe
Hoje, mamãe, eu não te escrevo daquele gabinete cheio de livros sábios, onde o teu filho, pobre e enfermo, via passar os espectros dos enigmas humanos junto da lâmpada que, aos poucos, lhe devorava os olhos, no silêncio da noite.
A mão que me serve de porta-caneta é a mão cansada de um homem paupérrimo que trabalhou o dia inteiro, buscando o pão amargo e quotidiano dos que lutam e sofrem. A minha secretária é uma tripeça tosca à guisa de mesa e as paredes que se rodeiam são nuas e tristes como aquelas de nossa casa desconfortável em Pedra do Sal. O telhado sem forro deixa passar a ventania lamentosa da noite e deste remanso humilde onde a pobreza se esconde, exausta e desalentada, eu te escrevo sem insônias e sem fadigas para contar-te que ainda estou vivendo para amar e querer a mais nobre das mães.
Queria voltar ao mundo que eu deixei para ser novamente teu filho, desejando fazer-me um menino, aprendendo a rezar com o teu espírito santificado nos sofrimentos.
A saudade do teu afeto leva-me constantemente a essa Parnaíba das nossas recordações, cujas ruas arenosas, saturadas do vento salitroso do mar, sensibilizam a minha personalidade e dentro do crepúsculo estrelado de tua velhice, cheia de crença e de esperança, vou contigo, em espírito, nos retrospectos prodigiosos da imaginação, aos nossos tempos distantes. Vejo-te com os teus vestidos modestos em nossa casa da Miritiba, suportando com serenidade e devotamento os caprichos alegres de meu pai. Depois, faço a recapitulação dos teus dias de viuvez dolorosa junto da máquina de costura e do teu “terço” de orações, sacrificando a mocidade e a saúde pelos filhos, chorando com eles a orfandade que o destino lhe reservara e junto da figura gorda e risonha da Midoca ajoelho-me aos teus pés e repito:
— “Meu Senhor Jesus Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte.”
Muitas vezes, o destino te fez crer que partirias antes daqueles que havias nutrido com o beijo das tuas carícias, demandando os mundos ermos e frios da morte. Mas partimos e tu ficaste. Ficaste no cadinho doloroso da Saudade, prolongando a esperança numa vida melhor no seio imenso da Eternidade. E o culto dos filhos é o consolo suave do teu coração. Acariciando os teus netos, guardas com desvelo o meu cajueiro que aí ficou como um símbolo, plantado no coração da terra parnaibana e, carinhosamente, colhes das suas castanhas e das suas folhas fartas e verdes, para que as almas boas conservem uma lembrança do teu filho, arrebatado no turbilhão da dor e da morte.
Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de selva na carne moça da terra, pedi velasse pelos teus dias de isolamento e velhice, substituindo-me junto do teu coração. Todos os nossos te estendem as suas mãos bondosas e amigas e é assombrada que hoje, ouves a minha voz, através das mensagens que tenho escrito para quantos me possam compreender. Sensibilizam-se as tuas lágrimas, quando passas os olhos cansados sobre as minhas páginas póstumas e procuro dissipar as dúvidas que torturam o teu coração, combalido nas lutas. Assalta-me o desejo de me encontrares, tocando-me com a generosa ternura de tuas mãos, lamentando as tuas vacilações e os teus escrúpulos, temendo aceitar as verdades espíritas em detrimento da fé católica que te vem sustentando nas provações. Mas não é preciso, mamãe, que me procures nas organizações espiritistas e para creres na sobrevivência do teu filho não é necessário que abandones os princípios da tua fé. Já não há mais tempo para que o teu espírito excursione em experiências no caminho vasto das filosofias religiosas.
Numa de suas páginas, dizia Coelho Neto que as religiões são como as linguagens. Cada doutrina envia a Deus, a seu modo, o voto de sua súplica ou de sua adoração. Muitas mentalidades entregam-se aí no mundo aos trabalhos da discussão. Chega porém um dia em que o homem acha melhor repousar na fé a que se habituou, nas suas meditações e nas suas lutas. Esse dia, mamãe, é o que estás vivendo, refugiada no conforto triste das lágrimas e das recordações. Ascendendo às culminâncias do teu Calvário de saudade e de angústia, fixas os teus olhos na celeste expressão do Crucificado e Jesus que é a providência misericordiosa de todos os desamparados e de todos os tristes, te fala ao coração dos vinhos suaves e doces de Caná que se metamorfosearam no vinagre amargoso dos martírios e das palmas verdes de Jerusalém que se transformaram na pesada coroa de espinhos. A cruz então se te afigura mais leve e caminhas. Amigos devotados e carinhosos te enviam de longe o terno consolo dos seus afetos e prosseguindo no teu culto de amor aos filhos distantes, esperas que o Senhor com as suas mãos prestigiosas, venha decifrar para os teus olhos os grandes mistérios da vida.
Esperar e sofrer têm sido os dois grandes motivos em torno dos quais rodopiaram os teus quase setenta e cinco anos de provações, de viuvez e de orfandade.
E eu, minha mãe, não estou mais aí para afagar-te as mãos trêmulas e os teus cabelos brancos que as dores santificaram. Não posso prover-te de pão e nem guardar-te da fúria da tempestade, mas abraçando o teu Espírito, sou a força que adquires na oração como se absorvesses um vinho misterioso e divino.
Inquirido certa vez pelo grande Luís Gama sobre as necessidades de sua alforria, um jovem escravo lhe observou:
“Não, meu senhor!… a liberdade que me oferece me doeria mais que o ferrete da escravidão, porque minha mãe, cansada e decrépita, ficaria sozinha nos martírios do cativeiro.”
Se Deus me perguntasse, mamãe, sobre os imperativos da minha emancipação espiritual, eu teria preferido ficar aí, não obstante a claridade apagada e triste dos meus olhos e hipertrofia que me transformava num monstro para levar-te o meu carinho e a minha afeição, até que pudéssemos partir juntos, desse mundo onde sonhamos tudo para nada alcançar.
Mas se a morte parte os grilhões frágeis do corpo, é impotente para dissolver as algemas inquebrantáveis do espírito.
Deixa que o teu coração prossiga, oficiando no altar da saudade e da oração; cântaro divino e santificado, Deus colocará dentro dele o mel abençoado da esperança e da crença, e, um dia, no portal ignorado do mundo das sombras, eu virei, de mãos entrelaçadas com a Midoca, retrocedendo no tempo para nos transformarmos em tuas crianças bem-amadas. Seremos agasalhados então nos teus braços cariciosos como dois passarinhos minúsculos, ansiosos da doçura quente e doce das asas de sua mãe e guardaremos as nossas lágrimas nos cofres de Deus onde elas se cristalizam como as moedas fulgurantes e eternas do erário de todos os infelizes e desafortunados do mundo.
Tuas mãos segurarão ainda o “terço” das preces inesquecíveis e nos ensinarás, de joelhos, a implorar de mãos postas as bênçãos prestigiosas do Céu. E enquanto os teus lábios sussurrarem de mansinho — “Salve, Rainha… mãe de misericórdia…”, começaremos juntos a viagem ditosa do Infinito sobre o dossel luminoso das nuvens claras, tênues e alegres do Amor.
(.Irmão X)
(“Aurora” Rio, 1-5-1936)
[Ref. ao Dr. Mirócles Campos 5eras.]
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