Momentos de Ouro

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Capítulo XIX

Aula da vida


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A casa repousava, além de zero hora,

Quando o juiz no leito ouviu certo rumor ao fundo.

Quem seria? pensou, ansioso e expectante…

Talvez um assaltante…

Quem, no entanto, ousaria

Penetrar-lhe a mansão, construída no alto,

Com dois guardas, na ronda, de vigia?


A princípio, o ruído parecia

Um barulho tão leve, tão de manso,

Que mais se assemelhava ao vento na folhagem,

Quando o palácio, à noite, era paz e descanso.


Mas o brando alarido aumentava de porte,

Justamente na alcova sempre reservada

Em que ele, o juiz, mantinha um cofre forte.

Armou-se à pressa e afastou-se da cama,

Pés descalços, andou no carpete, em pijamas;

E pela porta além, levemente entreaberta,

Lobrigou a figura baixa e estranha

De um mascarado que se recobria

Numa capa sombria,

A furtar-lhe, no cofre escancarado,

Todo o dinheiro ali depositado.


Manejando lanterna diminuta,

O invasor ocupado nada escuta.

Mas o juiz entrando em fúria cega

Ergue o revólver, firme. Aponta e descarrega

Toda a carga de balas no infeliz

Que tomba morto agora em pleno escuro.

Indeciso e nervoso, o magistrado

A erguer-se em defensor do próprio domicílio,

Liga a luz, sob a dor do gesto cometido,

E fita o mascarado

A encharcar-se de sangue…


Chama os guardas amigos, de plantão,

Ativa o telefone e pede policiais

Que lhe arranquem do lar o assaltante caído,

Depois de se lavrarem

Depoimentos, notas, testemunhos

Para os efeitos justos e legais.


Efetuadas todas as medidas,

Um servente de mãos embrutecidas

Inspeciona o cadáver e, ao movê-lo,

Despe-lhe a capa enorme

E retirando a máscara de pano,

Vem ao juiz e informa, desumano:

— É um menino, Excelência … Um ladrão nato

Devia ter no jeito a esperteza de um rato.


Na angústia enorme do seu próprio drama,

O magistrado exclama:

— Horríveis tempos! Dias infelizes!…

Época de ladrões e meretrizes!…

Já não mais temos lar em segurança

Que possa resguardar uma simples criança…

Onde iremos, meu Deus? Meninos salteadores,

Crimes, violência, guerra e uma série de horrores!…


Nisso, quatro serventes se aproximam,

Carregam com cuidado o corpo inerte e triste,

Mas o Juiz, ao vê-lo, não resiste;

Detém todo o cortejo em súbita parada,

Cai sobre o morto em pranto convulsivo,

Beija-lhe a face inerme e ensanguentada,

Como se o jovem morto inda estivesse vivo

E bradou, em supremo desconforto:

— O que fiz, Grande Deus, para sofrer em minha própria casa,

Esta dor que me arrasa?

Matei para viver e estou aniquilado e morto;

Matei, mas nem de longe imaginava

Que abatia sem pena

O filho que adorava…

Deus, Grande Pai, dá-me de qualquer forma,

A expiação que me condena…

Lançava o sangue ao chão amplo e rubro rastilho

E o pobre prosseguia, em convulsões de dor:

— Dá-me forças, meu Deus!… Perdoa-me, Senhor!…

O pequeno assaltante era o seu próprio filho.




Maria Dolores
Francisco Cândido Xavier


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