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Capítulo VII

Marte


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Enquanto as empresas de turismo organizam na Terra os grandes cruzeiros intercontinentais, realizando um dos mais belos esforços de socialização do século XX, no mundo dos Espíritos organizam-se caravanas de fraternidade, nos Planos do intermúndio.

Na Região do estômago, o privilégio pertence aos sujeitos felizes, bem fichados nos círculos bancários, mas, nos Planos do coração, os livros de cheque são desnecessários.

Novo Gulliver da vida, mergulho a minha observação nos espetáculos assombrosos, experimentando, além das águas do , a mudança integral de todas as perspectivas.

Encarcerado no ponto convencional de sua existência transitória, o homem terrestre é aquela coruja incapaz de enfrentar a luz da montanha, em pleno dia, suportando apenas a sombra espessa e triste de sua noite. Como , filho de Oileu, contempla, às vezes, o tridente irado dos deuses, mas, embora a sua desesperação e o seu orgulho, não vai além da ilha, onde a maré alta o atirou, nos caprichosos movimentos do oceano da Vida.

A Morte não é uma fonte miraculosa de virtude e de sabedoria. É, porém, uma asa luminosa de liberdade para os que pagaram os mais pesados tributos de dor e de esperança, nas esteiras do Tempo.

Enquanto os astrônomos europeus e americanos examinam, cuidadosamente, os seus telescópios, para a contemplação da paisagem de Marte, à distância de quase trinta e sete milhões de milhas, preparando as lentes poderosas de seus instrumentos de óptica, fomos felicitados com uma passagem gratuita ao nosso admirável vizinho do Sistema Solar, cujo percurso, nas adjacências do orbe, vem empolgando igualmente os núcleos de seres invisíveis, localizados nas regiões mais próximas da Terra.

A descrição das viagens, desde o princípio deste século, é uma das modalidades mais interessantes da literatura mundial; todavia, o homem que vá do Rio de Janeiro a Tóquio, de avião, sem escalas de qualquer natureza, não poderá descrever o caminho, com os seus detalhes mais interessantes. Transmitirá aos seus leitores a emoção da imensidade, mas não conseguirá pintar uma nuvem. Fora de suas máquinas aéreas, poderia fornecer a impressão de uma águia, mas o turista do Espaço, para se fazer entendido pelos companheiros da carne, teria de recorrer às figuras mais atrevidas do mundo mitológico.

É por isso que apelarei aqui para o véu de ou para o dorso de Pégaso, cuja patada faz brotar a fonte de Hipocrene, no Hélicon das divindades.

Depois de alguns segundos, chegávamos ao termo de nossa viagem vertiginosa.

Dentro da atmosfera marciana, experimentamos uma extraordinária sensação de leveza… Ao longe, divisei cidades fantásticas pela sua beleza inaudita, cujos edifícios, de algum modo, me recordavam a Torre Eiffel ou os mais ousados arranha-céus de New York. Máquinas possantes, como se fossem sustidas por novos elementos semelhantes ao “Hélium”, balouçavam-se, ao pé das nuvens, apresentando um vasto sentido de estabilidade e de harmonia, entre as forças aéreas.

Aos meus olhos, desenhavam-se panoramas que o meu Espírito imaginara apenas para os mundos ideais da mitologia grega, com os seus paraísos cariciosos.

Aturdido, interpelei o chefe da nossa caravana, que se conservava silencioso:

— “Se a Terra julga a influência de Marte como profundamente belicosa, como poderemos conciliar a definição dos astrólogos com os espetáculos que estamos presenciando?”

— “E porventura — respondeu-me o excelente mentor espiritual — chegaste a conhecer no planeta terrestre um homem ou uma ideia, que retirasse a humanidade de sua rotina, sem sofrimento e sem guerra? Para o nosso mundo, Marte é um irmão mais velho e mais experimentado na vida. Sua atuação no campo magnético de nossas energias cósmicas visam a auxiliar os homens terrenos para que possam despir os seus envoltórios de separatividade e de egoísmo.”

Mas, nesse instante, havíamos chegado a um belo cômoro atapetado de verdura florida. Ante os meus olhos atônitos, rasgavam-se avenidas extensas e amplas, onde as construções eram fundamente análogas às da Terra. Tive então ensejo de contemplar os habitantes do nosso vizinho, cuja organização física difere um tanto do arcabouço típico com que realizamos as nossas experiências terrestres. Notei, igualmente, que os homens de Marte não apresentam as expressões psicológicas de inquietação em que se mergulham os nossos irmãos das grandes metrópoles terrenas. Uma aura de profunda tranquilidade os envolve.

É que, esclareceu o mentor que nos acompanhava, os marcianos já solucionaram os problemas do meio e já passaram pelas experimentações da vida animal, em suas fases mais grosseiras. Não conhecem os fenômenos da guerra e qualquer flagelo social seria, entre eles, um acontecimento inacreditável. Evolveram sem as expiações coletivas, amarguradas e terríveis, com que são atormentados os povos insubmissos da Terra. As pátrias, ali, não recebem o tributo do sangue ou da morte de seus filhos, mas são departamentos econômicos e órgãos educativos, administrados por instituições justas e sábias.

Era tempo, contudo, de observarmos a cidade com as suas disposições interessantes.

O leitor não poderá dispensar o nome dessa cidade prodigiosa, e à falta de termos comparativos, chamemos-lhe Marciópolis.

Orientado pelo amigo que nos dirigia a singular excursão, atingimos extensa praça, onde se erguia um templo maravilhoso pela sua imponência, tocada de majestosa simplicidade, e onde, ao que fomos informados, se viam reunido todos os credos religiosos.

De uma de suas eminências, vimos o nosso Sol, bastante diferenciado, entornando na paisagem as tintas do crepúsculo.

A vegetação de Marte, educada em parques gigantescos, sofria grandes modificações, em comparação com a da Terra. É de um colorido mais interessante e mais belo, apresentando uma expressão de tonalidade avermelhada em suas características gerais.

Na atmosfera, ao longe, vagavam nuvens imensas, levemente azuladas, que nos reclamaram a atenção, explicando-nos o mentor da caravana fraterna que se tratava de espessas aglomerações de vapor d’água, criadas por máquinas poderosas da ciência marciana, a fim de que sejam supridas as deficiências do líquido nas regiões mais pobres e mais afastadas do largo sistema de canais, que ali coloca os grandes oceanos polares em contínua comunicação, uns com os outros.

Tais providências, explica o Espírito superior e benevolente, destinam-se a proteger a vida dos reinos mais fracos da natureza planetária, porque, em Marte, o problema da alimentação essencial, através das forças atmosféricas, já foi resolvido, sendo dispensável aos seus habitantes felizes a ingestão das vísceras cadavéricas dos seus irmãos inferiores, como acontece na Terra, superlotada de frigoríficos e de matadouros.

Todavia, ao apagar das luzes diurnas, o grande templo de Marciópolis enchia-se de povo. Observei que a nossa presença espiritual não era percebida, daí podermos examinar a multidão, à vontade, em seus mínimos movimentos.

Todos os grandes centros deste planeta, esclareceu o nosso amigo e mentor espiritual, sentem-se incomodados pelas influências nocivas da Terra, o único orbe de aura infeliz, dentre suas vizinhanças mais próximas, e, desde muitos anos, enviam mensagens ao globo terráqueo, através das ondas luminosas, as quais se confundem com os raios cósmicos, cuja presença, no mundo, é registada pela generalidade dos aparelhos radiofônicos.

Ainda há pouco tempo o Instituto de Tecnologia da Califórnia inaugurou um vasto período de experimentações, para averiguar a procedência dessas mensagens, misteriosas para o homem da Terra, anotadas com mais violência pelos balões estratosféricos, conforme as demonstrações obtidas pelo Dr. Robert Millikan, nas suas experiências científicas.

A palestra esclarecedora seguia o seu curso interessante, mas os movimentos na praça acentuavam-se, sobremaneira.

No horizonte, surgia uma grande estrela de luz avermelhada, enquanto os dois satélites marciáticos resplandeciam.

Todos os olhares fitavam o céu, ansiosamente.

Aquela estrela era a Terra.

Uma comissão de cientistas iniciou, da tribuna maior do santuário, uma vasta série de estudos sobre o nosso mundo distante. Aparelhos luminosos foram afixados, na praça pública, ao passo que presenciávamos a exibição de mapas quase irrepreensíveis dos nossos continentes e dos nossos mares. Teorias notáveis com respeito à situação espiritual do planeta terrestre foram expendidas, entendendo-se perfeitamente as ideias dos estudiosos que as expunham, através da linguagem universal do pensamento.

A Terra enviava-nos a sua claridade, em reflexos trêmulos e tristes. Observamos, então, que os marcianos haviam colocado em seu templo poderosos telescópios.

Enquanto os melhores aparelhos da América possuem um diâmetro de duzentas polegadas, com a possibilidade de aumentar a imagem de Marte doze mil vezes, a astronomia marciana pode contemplar e estudar a Terra, aumentando-lhe a imagem mais de cem mil vezes, chegando ao extremo de examinar as vibrações de ordem psíquica, na sua atmosfera.

A nossa grande surpresa não parou aí, entre os mais avançados aspectos de evolução de cultura.

Enquanto a luz avermelhada da Terra tocava a nossa visão espiritual, víamos que todas as multidões do templo se haviam aquietado, de leve… A Ciência unida à Fé apresentava um dos espetáculos mais belos para o nosso espírito.

Vimos, então, que ao influxo poderoso daquelas mentes irmanadas no mesmo nível evolutivo, pela sabedoria e pelo sentimento, formara-se sobre o santuário uma estrada luminosa, em cujos reflexos descera do Alto um mensageiro celeste.

Recebido com as intensas vibrações de júbilo divino e silencioso, a figura quase angélica, começou a falar, depois de uma prece comovedora:

— “Irmãos, ainda é inútil toda tentativa de comunicação com a Terra rebelde e incompreensível! Debalde os astrônomos terrenos vos procuram ansiosos, nos abismos do Infinito!… Seus telescópios estão frios, suas máquinas, geladas. Faltam-lhes os ardores divinos da intuição sublime e pura, com as vibrações da fé que os levariam da ciência transitória à sabedoria imortal. Fatigados na impenitência que lhes caracteriza as atividades inquietas e angustiosas os homens terrestres precisam de iluminação pelo amor, a fim de que se afastem do círculo vicioso da destruição, na tecnocracia da guerra. Lá, os irmãos se devoram uns aos outros, com indiferença monstruosa! Os povos não se afirmam pelo trabalho ou pela cultura, mas pelas mais poderosas máquinas de morticínio e de arrasamento. Todos os progressos científicos são patrimônio do egoísmo utilitário ou elementos sinistros da ruína e da morte!… Enquanto as árvores de Deus frondejam no caminho da Vida e do Tempo, cheias de frutos cariciosos, as criaturas terrenas consideram-se famintas de violência e de sangue. A ciência de seres como esses não poderia entender as vibrações mais elevadas do espírito! Os vícios de uma falsa cultura casam-se aos vícios das religiões convencionalistas, que estacionam em exterioridades nocivas ou se detêm nos fenômenos, sem cogitar das causas profundas, esquecendo-se o homem do templo divino do seu coração, onde as bênçãos de Deus desejam florir e semear a vida eterna!… Tão singulares desequilíbrios provocaram na personalidade terrestre um sentido bestial que lhe corrompe os mais preciosos centros de força e, somente agora, cogitam as instituições divinas da transição necessária, a fim de que a vida na Terra se efetive, com o sentido da verdadeira humanidade, ali conhecido tão somente na exposição teórica de alguns Espíritos insulados!… Irmãos, contemplemos a Terra e peçamos ao Senhor do Universo que as modificações, precisas ao seu aperfeiçoamento, sejam menos dolorosas ao coração de suas coletividades! Oremos pelos nossos companheiros, iludidos nas expressões animais de uma vida inferior, de modo que a luz se faça em seus corações e em suas consciências, possibilitando as vibrações recíprocas de simpatia e comunicação, entre os dois mundos!…”

A multidão ouvia-lhe a palavra, atenta e comovida, e nós lhe escutávamos a exortação profunda, como se fôramos convocados, de longe, pela harmonia mágica da lira de Orfeu, quando o nosso mentor espiritual nos acorda, do êxtase, a nos bater levemente nos ombros, chamando-nos ao regresso.

Em todos os lugares, há os que mandam, e vivem os que obedecem. Na categoria dos últimos, voltamos às Esferas Espirituais da Terra, como o homem ignorante que fizesse um voo, sem escalas, através do mundo, confundido e deslumbrado, embora não lhe seja possível definir o mais leve traço de seu espantoso caminho.


(.Irmão X)


(Recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em 25 de Julho de 1939)


[Para melhor compreensão do que foi dito pelo autor espiritual, atentemos para as considerações de Emmanuel na lição: , especialmente nos indicadores 7 e 8]


Aqueronte — Nome de um dos quatro rios do Inferno, por onde as almas passavam sem esperança de regressar, e de curso tão impetuoso que arrastava, qual se fossem grãos de areia, grandes blocos de rochedos.


Ájax — filho de Oileu, rei dos Lócrios (Grécia) — era um príncipe intrépido, mas brutal e cruel. Equipou quarenta navios para a guerra de Troia. Tomada esta, ele ultrajou uma profetisa de classe, que se refugiara no templo, motivo por que os deuses fizeram submergir sua esquadra. Salvo do naufrágio, agarrou-se a um rochedo dizendo, com arrogância: Escapei, apesar da cólera dos deuses! Irritados com seu desmesurado orgulho, os deuses o aniquilaram, ali mesmo.


Ísis — Uma das principais divindades egípcias. Tendo reinado durante muito tempo foi depois de morta, elevada à categoria de deusa (a canonização dos tempos subsequentes), e em sua honra e culto celebravam-se ritos, chamados — Mistérios de Ísis. Na forma comum, é representada (à imagem das santa) sob a figura de uma jovem mulher, sentada, amamentando um dos filhos, , tendo sobre a testa duas pontas ou um globo lunar.


Pégaso — Cavalo alado que tem destacados feitos na mitologia grega. Nele iam os poetas em visita ao monte da inspiração. Ainda hoje, em tropo literário se diz que, em busca de inspiração os poetas cavalgam o Pégaso. Nesse monte, chamado Hélicon, Pégaso, com uma patada fez surgir a fonte da água inspiradora, denominada Hipocrene, isto é — fonte do cavalo.


Percepção e sintonia — [A percepção está fundada na sintonia: os excursionistas estavam sintonizados com as criaturas sob sua observação mas o mesmo poderia não ocorrer com os que estavam sendo observados.]


Orfeu — O músico mágico da mitologia. Seus acordes encantavam, e atraiam as próprias feras. Tendo sua esposa Eurídice sido picada e morta por uma serpente, no dia nupcial, ele foi ao Inferno onde obteve, pela sedução da sua lira, que divindades dali lhe ressuscitassem a consorte, com a condição, porém, de não olhar para trás, antes de deixar os limites do Inferno, cláusula que Orfeu infringiu. Essa lenda serviu de enredo à conhecida ópera de Gluck — Orfeu.



Humberto de Campos
Francisco Cândido Xavier

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