Pontos e Contos

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Capítulo XVI

A besta do rei

À frente da assembleia fraternal que examinava a posição difícil dos médiuns com graves responsabilidades, o velhinho amigo estampou singulares característicos fisionômicos e narrou:

— Sem qualquer propósito de plagiar o nosso prestimoso Esopo, já ouvi contar a história de uma besta de carga, que pode ilustrar os nossos comentários de modo significativo.

Certo rei da Mesopotâmia necessitava transportar enorme tesouro de uma cidade para outra, a benefício dos próprios súditos. Vastíssima zona do Reino precisava renovar os sistemas de trabalho e melhorar os processos evolutivos; entretanto, para esse fim, não dispunha de recursos substanciais. Vocês sabem que, na Terra, toda prosperidade requisita apoio físico, tanto quanto a luz de uma candeia reclama combustível. Ora, naquele tempo, os homens não dispunham das facilidades de transporte. Os filósofos ensinavam a verdade e os poetas já sublimavam a poesia; contudo, a inteligência do mundo estava muito longe da locomotiva e do avião… O soberano, assim, atado às injunções da época, determinou fosse procurada uma besta elogiável para o serviço. Depois de várias pesquisas, surgiu o animal nas condições desejadas. O muar escolhido podia conservar as manhas inerentes à espécie, mas devia ser calmo, zurrar apenas em horas de perigo e corcovear o menos possível.

A jornada seria laboriosa. Dias e noites de marcha forçada, com intensivo aproveitamento das horas. Aprazada a partida, a besta, em sua ingenuidade de serviçal, prazerosamente recebeu arreamento brilhante.

Deixou o palácio, sob aclamações festivas. Precedida de carruagens e batedores e seguida de infantes armados, era ladeada de fidalgos e escrivães, guardas e mordomos, artesãos e ourives, lanceiros e escudeiros, congregados em rumoroso séquito para acompanhá-la.

A expedição, realmente, era das mais proveitosas. Os benefícios seriam incalculáveis.

Isso, porém, não exonerava a besta do cansaço natural. As caixas repletas de metal precioso que sustentava, se provocavam geral admiração, eram para ela peso incômodo e incessante.

Em razão disso, a viagem que começou alegremente transformou-se, pouco a pouco, em peregrinação dolorosa.

Enquanto outros muares podiam comer os legumes frescos de que vinham carregados para alimento da expedição, a besta honrada e desditosa gemia sob a carga de ouro maciço.

O soberano, se era compreendido por grande parte dos súbitos, possuía também vassalos infiéis que por incapacidade de entendimento lhe solapavam a autoridade. Por essa razão, o animal sofredor era objeto de invectivas e achincalhes por parte dos adversários do Rei.

Suarenta e exausta, a infeliz namorava o espelho do Eufrates, sequiosa de uns goles de água pura; todavia, era obrigada a ver, com absoluta impossibilidade de satisfazer à sede que a torturava, seus irmãos de rebanho a se refestelarem rio a dentro.

De quando em quando, tangida pelas necessidades naturais, dirigia-se às margens do caminho, para lamber alguma gota de água barrenta ou tosar algum broto de capim verde; no entanto, não conseguia grande coisa. A comissão encarregada do tesouro chibatava-a para que tornasse ao meio-fio. Azeméis desapiedados feriam-na com aguilhões, toda vez que tentava cheirar outro animal, de modo a sentir-se menos sozinha, porque, no fundo, era uma besta como as outras.

Nas aldeias por onde passava, cheia de feridas e desapontamentos, súditos reconhecidos traziam-lhe forragem especial e preciosa que a infortunada não conseguia tragar, saudosa da natureza livre. Senhoras leais ao soberano enfeitavam-na com adornos simbólicos. Cavalheiros respeitáveis, amigos incondicionais do monarca, exaltavam as virtudes do solípede, pronunciando extensos discursos, junto de suas orelhas trêmulas.

O animal, guindado a situação de tal brilho, era, porém, descendente de sua espécie e não podia trair as leis evolutivas, não obstante o favor real.

Por semelhante motivo, amarguravam-lhe, não só as considerações e honrarias indébitas, como também as disputas sem-fim, que se levantavam, cada dia, em torno de suas patas inseguras.

Se varava as portas de alguma cidade, sua passagem causava distúrbios.

Cortesãos generosos intervinham, discutidores. Exigiam alguns que a besta tomasse a direção norte, outros solicitavam a direção sul. Matronas entusiastas pediam graças especiais para o animal e reclamavam modificações. Populares exaltados abeiravam-se das caixas preciosas, buscando contemplar, à força, as barras de ouro puro. Vítima da curiosidade e do atrevimento, a besta era compelida a tolerar pontapés e golpes incessantes. Se procurava refúgio, ao lado dos artesãos, faminta de socorro, os ourives protestavam, acreditando que o muar desejava fugir. Se tentava acolhimento junto dos ourives, para defender-se de alguma sorte, os artesãos provocavam reação rumorosa, fustigando-a a pontaços.

De quilômetro a quilômetro, o serviço tornava-se mais asfixiante… De vilarejo a vilarejo, a perturbação aumentava sempre.

A besta não conseguia aliviar-se. Devia transportar o tesouro e não podia comer, repousar ou banhar-se.

O narrador, inteligente e bondoso, sorriu, fez longa pausa e concluiu:

— O serviço foi realizado. Finda a jornada de sacrifício, a besta foi desarreada. A riqueza beneficiou a todos. Houve alegria geral no espírito coletivo. Mais possibilidades de trabalho, mais ânimo entre o povo. A besta, contudo, não era o mesmo animal do início. Trazia o corpo coberto de chagas sanguinolentas. Não sabia trotear quanto os outros muares. A forragem rica ou o capim verde não mais a interessavam. Ignorava o caminho da estrebaria. Afligia-se e assustava-se, tanto na cavalariça, como na pastagem refrescante. Orneava a esmo ou corria de um lado para outro, sem que ninguém a entendesse. Aos servidores do rei, felizes com as novas possibilidades, pouco importava o destino de tão extravagante animal. Alguns companheiros da expedição, mais “caridosos” e práticos, julgaram que o muar houvesse enlouquecido e resolveram, como solução única, enviá-lo ao matadouro.

Antes, porém, o soberano, que era piedoso e justo, mandou buscá-lo para as cocheiras de sua casa, não se sabe como, e ninguém mais o viu.

A essa altura da narrativa, o velhinho fez uma pausa, e, endereçando a nós outros o seu olhar percuciente e límpido, perguntou:

— Vocês não acham o médium de responsabilidade, em nossos dias, muito semelhante à besta do rei?

Sorrimos todos, entreolhando-nos surpresos, mas a curiosa interrogação ficou no ar…


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier

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