Registros Imortais

Versão para cópia
Capítulo LVIII

Pagamento


Temas Relacionados:

58ª reunião | 5 de dezembro de 1957


: Arnaldo Rocha, Ênio Santos, Elza Vieira, Laura Nogueira Lima, Geni Pena 10avier, Lucília Xavier Silva, Francisco Teixeira de Carvalho, Geraldo Benício Rocha, Edite Malaquias 10avier, Álvaro de tal… Aderbal Nogueira Lima, Zínia Orsine Pereira, e Waldemar Silva.


Infelizes todos aqueles que trazem, cravado no coração, o espinho da culpa!

Por mais procurem entorpecer a consciência no ruído das festividades mundanas mais se lhes afunda no peito o grilhão do remorso, e por mais se elevem às culminâncias da galeria social mais se sentem amesquinhados no íntimo de si mesmos!

Riqueza e consideração pública não lhes sanam as chagas imanifestas. Proteção e favor não lhes atenuam a insegurança. Para eles, a luz do sol é uma acusação permanente e a sombra noturna é um grito inarticulado de dor, que lhes agrava a solidão. Sorriem por fora, suportando por dentro amarguras inomináveis. Muitas vezes, exibem nas mãos títulos dourados que a sociedade reverencia, mas no imo da própria alma carregam consigo um inferno de maldição!

Sou um Espírito assim, desditoso e atribulado, que, trazido ao vosso recinto por veneráveis benfeitores, se vos abre aos ouvidos à maneira do enfermo diante do médico generoso, ou à feição do crente perante o sacerdote.

Era eu jovem médico, atormentado pela vaidade e pela ambição. O ouro fácil dominava-me o pensamento. Enriquecer-me a qualquer preço era o meu objetivo fundamental. Por morte da minha mãe, a herança de nossa casa era realmente vultosa e por que meu pai não se compadecesse com a ausência dela, seguindo-lhe os passos na direção do sepulcro, só me restou para compartilhar a fortuna minha pobre irmã, Amália Maria, que, em seus vinte e três anos primaveris, era noiva de um rapaz futuroso e correto.

Não me resignei, todavia, com a ideia da divisão dos nossos haveres, demasiadamente expressivos em joias, dinheiro amoedado e vasta propriedade imobiliária. Imaginei a melhor maneira de desfazer-me da adorável criatura, que confiava em mim como a única pessoa capaz de garantir-lhe a felicidade.

Prevaleci-me de leve surto gripal para começar minha obra nefasta, administrando-lhe, pouco a pouco, os anestésicos que lhe abalariam para sempre a saúde física. Gradativamente, tisnei-lhe a lucidez mental. Dia a dia, confundi-lhe o cérebro, tentando afastar o interesse do moço que lhe disputava a mão de mulher nobre e digna.

Perdoai-me o luxo de minudências em minha confissão, entretanto, o criminoso precisa vasculhar todos os escaninhos da memória para desvencilhar-se do excesso de horror a si mesmo.

Quando minha irmã passou a revelar a condição de uma alienada mental perfeita, conduzi-a a exame de velho amigo, professor distinto, cuja cooperação indireta eu desejava no acabamento de minha obra funesta. Através de entendimento particular, falei-lhe de convulsões epileptoides inexistentes, referindo-me a sintomas que apenas surgiam no quadro de minha imaginação perversa.

Meu professor e colega entregou-se a detido exame da paciente e concordamos em que apreciávamos juntos um traumatismo encéfalo-craniano de alto calibre. Afastada minha irmã de nossa conversação, fiz-me solene, aventando a suspeita de uma hemorragia epidural. O amigo eminente meneou a cabeça, considerando que o meu diagnóstico era demasiado precoce, contudo, aquiesceu à minha insistência, no sentido de promovermos a ablação do cérebro para pesquisas naturais. Por minha própria iniciativa, minha irmã, sem enfermidade alguma, foi conduzida ao serviço cirúrgico, submetendo-se, inerme, à trepanação de sondagem. A craniotomia, entretanto, nada indicou de grave, porque a região avascular não demonstrava irregularidade alguma e o percurso da aca não sofria qualquer alteração.

Consciente de suas responsabilidades, o distinto operador interrompeu o trabalho e pediu-me tempo para uma conclusão satisfatória. Entregue, porém, aos meus cuidados no hospital, tomei a meu cargo a alimentação da enferma em convalencência para suprimir todos os recursos vitalizantes que lhe pudessem devolver o equilíbrio. E prevalecendo-me de sua fraqueza progressiva apliquei-lhe entorpecentes de significativa expressão, que, ao fim de quarenta dias, lhe impuseram a morte.

Agora não havia qualquer entrave à realização de meus desejos. Afastada minha irmã do cenário físico, eu, que era materialista confesso, senhoreei a fortuna de nossa casa, esbanjando-a a meu modo, não obstante conservar significativo patrimônio para o futuro casamento que eu pretendia realizar. Entretanto, a sombra de minha irmã acompanhava-me os passos. Via-lhe o rosto em cada cliente que se valia de minha cooperação. Ideava-lhe o corpo em cada enfermo prostrado no gabinete de cirurgia. Se gastava alguma soma importante, lembrava-me dela, que devia partilhar comigo o dinheiro de nosso nome e assim, com o tempo, senti-me, igualmente, conturbado, até que em certa noite, justamente ao abeirar-me do matrimônio, sequioso de renovação e de alívio, quando conduzia meu carro, a sós, senti falhar-me a atenção, sofrendo um desastre de largas consequências. Esbarrando violentamente num poste, entrei, de imediato, em choque comatoso, sendo transportado para o mesmo hospital onde minha irmãzinha fora indevidamente internada para sofrer.

Chamado o mesmo professor, de cuja confiança me utilizara para a consumação do meu crime, determinou ele, sem intenção, fosse eu conduzido para o mesmo aposento e para o mesmo leito em que Amália Maria encontrara a morte. Submetido a exame, verificou meu amigo, junto de outros colegas, que eu era vítima de hemorragia progressiva causada pela rotura de pequenos seios venosos que acompanham as artérias meníngeas, exigindo trepanação imediata para a sondagem precisa.

Em verdade, fui operado com extremoso carinho. Em verdade, agora apenas a vida vegetativa ocupava-me o corpo, todavia, minh’alma respirava, desperta… Meu cérebro espiritual enlaçava-se-me ao cérebro físico, que não mais podia pensar e, através dele, ouvia a voz de minha irmã a perguntar-me pelo amor que eu lhe protestava cada dia, pela afeição de nossa meninice, pelo carinho de nossa infância, pela confiança de nossos pais… As lágrimas dela, como orvalho morno, caíam sobre mim, enquanto meus amigos, a se revezarem, circunspectos, aguardavam-me, em vão, o despertar.

Foi assim que eu também, entorpecido sem usar entorpecentes, durante quarenta dias consecutivos, experimentei a mesma flagelação que impusera à minha vítima, para desencarnar nas mesmas circunstâncias e encontrar os meus débitos, como havia deixado antes do berço, com agravantes dolorosos, porquanto minha irmã esperava-me os braços para tornar à Terra e refazer-se.

Entre nós, porém, temos hoje o meu remorso tardio e a considerável perda de tempo, que tudo faço para sanar, amenizando as dívidas que me oneram o Espírito desditoso. É por isso que em me comunicando convosco trago-vos o fel da minha lição, solicitando a vossa prece em meu benefício e rematando as minhas palavras com um apelo a todos aqueles que se sentem fascinados pelo demônio do ouro, para que recuem no caminho da delinquência, para que não se atrevam à apropriação indébita, porque a vida continua como vida, além da morte, de nada valendo para nós a fuga dos tribunais humanos, de vez que todos caímos, quando culpados, nas engrenagens da Justiça Perfeita, que nos cobra, em favor de nossa própria felicidade, o pagamento de nossas dívidas, palmo a palmo e vintém a vintém.




Comunicação recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, do Grupo Meimei, em Pedro Leopoldo, Minas Gerais.

O nome foi grafado assim mesmo pelo datilógrafo, conforme consta do registro original.



A. P.
Francisco Cândido Xavier


Acima, está sendo listado apenas o item do capítulo 58.
Para visualizar o capítulo 58 completo, clique no botão abaixo:

Ver 58 Capítulo Completo
Este texto está incorreto?