Relatos da Vida [FEB]
Versão para cópiaLição paternal
Questionávamos, em torno da fatalidade e do livre arbítrio, quando o velho Samuel tomou a palavra e contou, sereno:
— Hanina ben Hazan, um israelita imensamente rico, vivia em Jope, cercado de consideração pela nobreza de sua conduta. Embora senhoreasse extensos pomares e não obstante a enorme riqueza que granjeara no mercado de peles, caracterizava-se pela extrema simplicidade com que pautava todos os atos da vida. Estimado na posição de filósofo, reunia, no próprio lar semanalmente, todos os estudiosos dos Escritos Sagrados que se propusessem debater os problemas do povo, a fim de auxiliar os concidadãos com mais segurança.
Certa noite, laboriosa contenda irrompeu no recinto doméstico.
O rabi Johanan, visitante ilustre, declarara que, diante do Todo-Poderoso, todas as consciências são livres, ao que Boaz, filho único de Hanina, replicara, desabrido, que todas as criaturas são obrigadas a executar, matematicamente, a vontade de Deus.
Azedou-se a polêmica.
A assembleia dividida mostrava maioria absoluta, ao lado de Johanan, enquanto Boaz, no ímpeto da força juvenil, após justificar-se, furioso, apresentou a dúvida ao exame paterno.
O anfitrião, porém, conhecido pela grande prudência conquanto lastimasse o desrespeito do filho para com o sábio que hospedava, pediu com delicadeza fosse a questão adiada para o mês seguinte, de vez que desejava educar o herdeiro querido sem violência, e o conselho familiar foi encerrado em amistosas manifestações de alegria.
No dia imediato, Hanina chamou o filho que atingira a maioridade e confiou-lhe duas bolsas recheadas de ouro para entregar em Jerusalém, com vistas à realização de certo negócio.
Boaz deveria obedecer, implicitamente, todas as instruções e, ainda mesmo que tivesse qualquer plano, suposto favorável ao empreendimento, caber-lhe-ia silenciar ante os mercadores a quem o dinheiro se destinava.
O moço partiu com agenda rigorosa. Dia de saída e dia de chegada. Horários para reger-se na Cidade Santa. Moedas que poderia gastar em proveito próprio.
O jovem cumpriu as determinações e retornou, desenxabido, mas o genitor, articulando tarefa diferente, incumbiu-o de vender larga partida de lã a diversos comerciantes que se dirigiam para Haifa, marcando, porém, os preços que lhe pareciam convenientes e proibindo-lhe qualquer ingerência no assunto.
Depois de satisfazer as ordenações, o rapaz regressou, patenteando indisfarçável desalento.
Hanina, entretanto, buscou-lhe os préstimos na consecução de outra empresa. Dessa vez, doava-lhe expressivo tesouro em peças de prata, que passariam a pertencer-lhe, sob a condição de sujeitá-las ao governo de poderoso usurário seu amigo, em cuja guarda semelhantes recursos permaneceriam pelo prazo de dez anos, findo o qual as preciosidades seriam restituídas, acompanhadas de rendimento compensador.
O filho obedeceu, evidentemente contrariado, e, ao voltar, o pai cedeu-lhe um campo de vastas dimensões, com a ordem expressa de cultivar o trigo, estabelecendo prévias normas para os serviços da sementeira e da colheita, com instruções que ao jovem competia observar, rigidamente. Abraçando, contudo, as novas obrigações, o rapaz clamou, triste:
— Oh! Meu pai, há muito que vos sirvo, colocando empenho e sinceridade em tudo o que a vossa bondade me ordena fazer; entretanto, agora que me sinto homem feito, rogo permissão para considerar que a vossa autoridade, apesar de generosa, me impede a edificação do próprio destino, conforme a visão que o mundo me oferta. Algemado aos vossos desígnios, por três vezes nos últimos vinte dias, vi afastarem-se de mim valiosas oportunidades de melhorar a própria sorte. Sem qualquer tentativa de furto, eu poderia ter sugerido algumas alterações aos vossos representantes em Jerusalém, conseguindo excelente margem de lucro para os nossos negócios; no entanto, os vossos avisos eram irrevogáveis e não tive outro recurso senão inclinar-me à submissão. Nos barcos que demandavam os armazéns de Haifa, teria facilmente obtido pequena fortuna, sem dilapidar os interesses do próximo, ao fornecer a lã que me confiastes; todavia, era imperioso satisfazer-vos as injunções. Anteontem, passastes às minhas mãos substancioso patrimônio que poderia claramente favorecer-me a segurança porvindoura; contudo, ao invés de exercitar-me as faculdades no trabalho de minha própria manutenção, exigistes que a dádiva fosse depositada em meu nome, para somente beneficiar-me daqui a dez anos, quando não sei se viverei neste mundo até amanhã!… Hoje, mandais que eu lance o trigo numa terra que julgo mais adequada ao sustento da vinha… Ah! Meu pai, porque sonegais ao vosso filho o direito das próprias decisões?
O velho Hanina, porém, satisfeito e comovido, enlaçou-o, ternamente, e ponderou:
— Tens razão, filho meu… Compreendes, agora, a nossa liberdade, à frente do Pai Justo? O Criador concede às criaturas todos os bens da Criação, sem constranger-lhes o exercício da livre escolha…
E, fitando o moço tomado de júbilo, concluiu:
— Cada homem é independente, na própria alma, a fim de eleger o próprio caminho.
O velho Samuel fixou em nós outros o olhar penetrante e calmo e rematou:
— O tema não comporta discussões. Deus nos concede a todos a fazenda valiosa da vida; entretanto, cada um de nós é responsável pela sua própria consciência, no que sente, pensa, fala e realiza, perante a Lei.
E, abençoando-nos com ameno gesto de despedida, o sábio deixou-nos mergulhados em fundo silêncio, com a significativa história para remoer e pensar.
(.Humberto de Campos)
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