Relatos da Vida [FEB]

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Capítulo X

Campanha diferente


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Esperava por você justamente aqui, para tratarmos de assunto sério — falou-me Capistrano, velho amigo agora no Plano Espiritual, que conheci maduro e próspero, em pequena loja do Botafogo, ao tempo em que ainda me acomodava à carcaça enferma.

Em torno de nós, na esquina da rua Real Grandeza, grupos fraternos de amigos desencarnados chasqueavam, alegres, dos carros que despejavam criaturas e flores para as comemorações dos finados, junto ao aristocrático cemitério São João Batista.

Corbelhas e buquês, recordando joias da primavera, derramavam-se de mãos ricas e pobres, engelhadas e juvenis, em homenagem aos afetos queridos, que quase todos os visitantes supunham para sempre estatelados ali no chão.

— Soube, meu caro — prosseguiu Capistrano singularmente abatido, — que você ainda escreve para os vivos do mundo…

E, apontado para respeitável matrona, acompanhada de dois carregadores portando ricos vasos, continuou:

— Grafe uma crônica, recomendando a extinção de semelhantes excessos. Mostre a inconveniência do orgulho na casa dos mortos imaginários da Terra, que hoje reconhecemos deve ser um recinto de silêncio e oração. Em toda a parte, o progresso marca no mundo admiráveis alterações. Guerras modificam a geografia, apóstolos renovam leis, a civilização aprimora-se, engenhos varrem o espaço, indicando a astronáutica do futuro, no entanto, com raras exceções de alguns países que estão convertendo necrópoles em jardins, os nossos cemitérios repousam estanques, lembrando parques improdutivos, onde se alinham primorosas plantas de pedra sobre montões de batatas podres. Órgãos de fiscalização e sistemas de vigilância controlam mercados e alfândegas, na salvaguarda dos interesses públicos e ninguém coíbe os investimentos vãos em tanta riqueza morta.

Capistrano fitou-nos, como a verificar o efeito das palavras que pronunciara, veemente, e seguiu adiante:

— Imagine você que também errei por faltar-me orientação. Tive uma filha única que foi todo o encanto de minha viuvez dolorida. Marília, aos dezoito janeiros, era a luz de minh’alma. Criei-a com todo o enternecimento do jardineiro que observa, enlevado, o crescimento de uma flor predileta. Entretanto, mimada por meus caprichos paternos, minha inexperiente menina negou-me todas as previsões. Enamorou-se, na praia, de um rapaz doidivanas, que se entregava aos exercícios da bola, e, certa feita, menosprezada por ele, tomou violenta dose de corrosivo relegando-me à solidão. Ao vê-la, nas raias da agonia, sem que meu amor pudesse arrebatá-la ao domínio da morte, rendi-me dementado, a total desespero. Nunca averiguei as razões que lhe ditaram atitude assim tão drástica è jamais procurei o moço anônimo que, decerto, ao abandoná-la, não teria a intenção da faze-la infeliz. Passei, no entanto, a cultuar-lhe loucamente a memória. Despendi mais da metade de minhas singelas economias para erigir-lhe um túmulo de alto preço… E, por vinte anos consecutivos, adorei o monumento inútil, lavando frisos, fazendo lumes, mudando enfeites, plantando flores. Envelheci chorando sobre o lápide, e quando os meus olhos divisavam o custoso jazigo, tateava o relevo das chorosas legendas…

Um dia, chegou minha vez. O coração parou, deslocando-me do corpo hirto. No entanto, embora desencarnado, apeguei-me ao sepulcro que venerava, estirando-me nele. Se amigos logravam afastar-me para esse ou aquele mister, acabava tornando ao formoso monstro de mármore para lamentar-me a clamar pela filha que não conseguia ver. Quatro anos rolaram sobre minha aflitiva situação, quando, em determinada manhã, experimentei contentamento indizível, sentindo-me à feição da terra gelada que se reaviva ao calor do sol. Inexplicavelmente contemplava Marília na tela da saudade, qual se lhe fosse receber, de novo, o beijo de amor e luz, quando antigo orientador buscou-me, presto, e conduzindo-me, bondoso, à rua General Polidoro, apontou-me um homem suarento e cansado, a carregar ternamente, nos próprios braços, triste menina muda, paralítica e pobre… Ao fixar-lhe os olhos embaciados de criança-problema, a realidade espiritual clareou-me a razão. Surpreendera Marília reencarnada, em rudes padecimentos expiatórios, e, mais tarde, vim a saber que renascera por filha do mesmo homem que lhe fora motivo ao gesto tremendo de deserção… Desde essa hora, fugi das ilusões que me prendiam a pesadelo tão longo! … Acordei renovado, para novamente respirar e viver, trabalhar e servir…

Capistrano enxugou o pranto que lhe corria copioso e ajuntou com amargura:

— Escreva, meu amigo, escreva às criaturas humanas e informe, claramente, que os vivos da Espiritualidade agradecem o respeito e o carinho com que se lhes dignificam os restos, mas rogue para que se abstenham destes quadros fantásticos de vaidade ostentosa, com que se pretende honrar o nome dos que partiram… Peça para que socorram as crianças desajustadas e enfermas, enjeitadas e infelizes com o dinheiro mumificado nestes cofres de cinza… Diga-lhes para que se compadeçam dos meninos desamparados e que provavelmente, muitos daqueles entes inolvidáveis que procuram nos carneiros de luxo, estão hoje em provações cruéis, nos institutos de correção ou no leito dos hospitais, na ociosidade das ruas ou em pardieiros esburacados que o progresso esqueceu… Fale da reencarnação e explique-lhes que muitos dos imaginados mortos que ainda amam, jazem sepultos em corpos vivos, quase sempre, desnutridos e atormentados, suplicando alimento e remédio, refúgio e consolação…

A palavra do amigo silenciou, embargada de lágrimas, e aqui me encontro, atendendo à promessa de redizer-lhes a história numa página simples. Entretanto, não guardo a pretensão de ser prontamente compreendido, de vez que se estivesse na avenida Rio Branco ou na Praça Mauá, envergando impecável costume de linho inglês, entre homens ainda encarnados, eu diria também que este caso é um conto de mortos para mortos, e que os mortos devem estar mortos sem preocupar a ninguém.


(.Humberto de Campos)


Irmão X
Francisco Cândido Xavier


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