Capítulo VII

Incidente em viagem


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Se o homem soubesse a extensão da vida que o espera além da morte do corpo, certamente outras normas de conduta escolheria na Terra!

Não me refiro aqui aos materialistas sem fé. Aliás, a maioria dos ateus não passam de grande assembleia de crianças espirituais, necessitadas de proteção e ensinamento.

Reporto-me, com vigor, aos que adotam uma crença religiosa, usando lábios e paixões, sem se afeiçoarem, no íntimo, às verdades renovadoras que abraçam.

Nós mesmos, os que nos beneficiamos ao contato dos princípios do Espiritismo Cristão, principalmente nós que ouvimos a mensagem dos que respiram noutros Planos da vida eterna, se fôssemos menos palavrosos e mais cumpridores das lições que recebemos e transmitimos, outras condições nos caracterizariam além do sepulcro, porque a justiça indefectível nos espreita em toda parte e porque transportamos conosco, para onde formos, as marcas de nossos defeitos ou virtudes.

Depois da sepultura, sabemos, com exatidão, que o reino do bem ou o domínio do mal moram dentro de nós mesmos.



Seguíamos sem novidades e, pouco a pouco, adaptava-me a volatear como aluno que recapitula a prova.

Em torno, a paisagem escurecia sempre, não obstante resplandecerem as estrelas no alto.

Possuía a perfeita noção de viajarmos sobre vasto abismo de trevas. Observava, porém, admirado que não me sentia em processo de ascensão. A ideia de verticalidade estava longe de nós, tanto quanto a linha de esfericidade escapa à apreciação do homem que habita o globo da Terra.

Reparei, receoso, que não distante da estrada que percorríamos, vagarosamente, apareciam sinais de vida e movimento. Ruídos de vozes desagradáveis alcançavam-nos os ouvidos de quando em quando. Formas monstruosas, de espaço a espaço, surgiam visíveis ao nosso olhar e, pelo que me era dado perceber, flutuávamos sobre região vulcânica, cujo “solo instável” oferecia erupções nos mais diversos pontos.

O que me afligia sinceramente era a contemplação de seres de lamentável aspecto, além das margens.

Não estou autorizado a descrever o que vi nesse particular, mas posso afirmar que as figuras sinistras da Mitologia ficam a dever à realidade com que eu era surpreendido.

Registrando o temor que se apossara de mim, o Irmão Andrade, em voz baixa, explicou-me que os Planos habitados pela mente encarnada emitiam, de permeio com as criações dos Espíritos inferiores desencarnados, formas perturbadas, quando não horripilantes, de vez que a maioria das criaturas terrestres, na carne ou desenfaixadas do corpo, denunciavam-se, no íntimo, através de comportamento quase irracional. Salientou que a Esfera próxima do homem comum, em razão disso, é povoada por verdadeira aluvião de seres estranhos, caprichosos e muita vez ferozes. Chegou mesmo a dizer que inúmeros sábios da espiritualidade superior classificam semelhante região de “império dos dragões do mal”. Rememorei a leitura de páginas mediúnicas vindas ao meu conhecimento antes da morte e o companheiro dedicado confirmou-as, declarando que a zona em que viajávamos constituía realmente o umbral vastíssimo, entre a residência dos irmãos encarnados e os Círculos vizinhos.

Acentuou que o pensamento espalha vibrações em todas as latitudes do Universo e que as projeções da mente encarnada no planeta terreno não correspondem aos ideais superiores que inspiram as leis da Humanidade. Os homens por fora — acrescentou o protetor, — nas experiências da vida social, aparentam cavalheirismo e nobreza; todavia, por dentro, na expressão real do ser, revelam ainda qualidades menos dignas, muito próximas da impulsividade dos animais. Na manifestação livre do espírito prevalece a verdade da alma, não a aparência da forma passageira, e daí o largo cosmorama de paisagens escuras, torturadas e dolorosas que rodeia o lar terreno, em cuja substância igualmente sutil operam as entidades perversas, a modo do lobo que pode beber da mesma fonte em que a ovelha se dessedenta.

Percebi que o benfeitor desejava destacar que, em tais lugares, tanto pode o emissário do amor exercitar-se na renúncia do bem, como pode o malfeitor das sombras internar-se no crime e no mal.

Compreendendo, no entanto, que as atenções dele se dividiam entre o carinho para comigo e a expectativa asfixiante da hora, sofreei o desejo de perguntar.



Quantas horas despendêramos, voejando sobre o extenso império das sombras?

Debalde tentava rearticular a noção de tempo. O abatimento e as surpresas sucessivas como que me aniquilavam o autocontrole.

Continuávamos sem ocorrências dignas de menção especial, através da mesma paisagem triste e obscura, quando um dos membros da expedição, ao lado de Bezerra, lhe mostrou um objeto semelhante à bússola que conhecemos na Terra, emitindo impressões que o supervisor escutou atenciosamente.

Logo após, o venerável amigo determinou uma pausa e, congregando-nos todos em derredor dele, comunicou em voz sumida e prudente que nos avizinhávamos de uma ponte de acesso aos círculos de atividade espiritual dignificada, que nos aguardavam além; entretanto, o registro magnético do psiquismo de nosso grupo assinalava o fenômeno que classificou por “inquietante média de pavor”. Acrescentou que a importância da ponte era tão grande que, comumente, muitos habitantes das regiões perturbadas se aglomeravam na base que deveríamos atingir dentro em pouco, ameaçando os candidatos ao reino da luz. Pediu-nos calma e decisão, silêncio e prece e, sobretudo, lembrou-nos a obrigação de esquecer qualquer falta mais grave do passado para não cairmos em sintonia com os Espíritos ignorantes, penitentes ou malfeitores, daqueles domínios. Competia-nos manter harmonia e serenidade em nós mesmos, porque de outra maneira poderíamos interromper a corrente de força que sustentava os companheiros menos aptos ao serviço de volitação.



Não nos movimentáramos por muito tempo, e um facho de luz sublime varreu o céu, não longe, indicando uma ponte cuja extensão não pude, no momento, precisar.

Tão formosa e tocante foi a revelação no horizonte próximo, que muitos nos pusemos em pranto. A emotividade não provinha apenas da claridade que nos tocara os olhos; comovente mensagem de amor transparecia daqueles raios brilhantes, que percorreram o firmamento, copiando a beleza dum arco-íris móvel.

Enquanto muitos companheiros continham a custo as notas de assombro que nos dominavam, cerrei os olhos, por minha vez, naturalmente envergonhado.

Temor súbito vagueava-me nalma!

Teria cumprido todos os meus deveres? Se constrangido a comparecer ante um tribunal da vida superior, estaria habilitado a apresentar uma consciência limpa de culpas? Como seriam meus atos examinados? Bastaria a boa intenção para justificar as próprias faltas?

O sinal luminoso cortou vagarosamente o céu, de novo.

Minha alegria ante a aproximação do Plano mais elevado era inexcedível, mas a noção de responsabilidade quanto às dádivas recebidas no mundo que eu deixara, pesava agora muito mais intensamente sobre mim… Mereceria o ingresso naquele domicílio celestial?

Corriam-me as lágrimas, copiosas, quando o grupo estacou. No mesmo instante, ouvi um dos irmãos recém-desencarnados gritar em choro convulso:

— Não! não! não posso! eu matei na Terra! Não mereço a luz divina! Sou um assassino, um assassino!

Aqueles brados ressoaram lúgubres, sombras a dentro.

Outras vozes responderam, horríveis:

— Vigiemos a ponte! Assassinos não passam, não passam!

Pareceu-me que maltas de feras preparavam-se para atacar-nos.

Não distante, a projeção resplandecente do invisível holofote clareava o caminho, qual se fora movida em “câmara lenta”.

Entre nós, emoções e lágrimas junto de um companheiro em crise.

Em torno, ameaças e lamentos estranhos.

Além, a luz convidativa.

Bezerra, sereno, mas fundamente preocupado, rompeu a expectação, cientificando-nos de que deveríamos olvidar os erros do pretérito e que um dos amigos, em vista de corresponder em demasia à lembrança do mal, impusera descontinuidade à nossa viagem. Acentuou que as reminiscências de crimes transcorridos não deveriam perturbar-nos e que bastaria sintonizar-nos excessivamente com o pretérito para causarmos sérios prejuízos a outrem e a nós mesmos, em circunstância delicada quanto aquela. Disse que o irmão em crise realmente fora homicida em outra época, mas trabalhara em favor da regeneração própria e a bem da Humanidade com tamanho valor nos últimos trinta anos da existência, que merecera carinhosa proteção dos orientadores de Mais Alto e que não devia levar a penitência tão longe, pelo menos naquele momento, a ponto de ameaçar o êxito da expedição. Necessitávamos reatar o “fio de ligação mental comum”, a fim de que a nossa capacidade volitante fosse mantida em alto padrão. De outro modo, a concentração em massa de entidades inferiores ao pé da ponte, que se alonga sobre o abismo, talvez nos dificultasse a passagem.

Finalizando a ligeira observação, Bezerra acenou para mim e recomendou-me orar em voz alta, para que a nossa corrente de energia espiritual se recompusesse.



Espantado com a designação superior, senti medo e vacilei. Ia pronunciar uma frase a esmo, esquivando-me à incumbência, mas Marta dirigiu-me expressivo olhar. Em silêncio, pedia-me obedecer à ordem recebida e prometia ajudar-me no cometimento.

Amparado por ela e pelo Irmão Andrade, dispus-me a executar a determinação.

Que prece pronunciaria? Mantinha-se-me o cérebro incapaz de criar uma peça verbal, compatível com as aflições da hora. Escutando os rugidos que procediam das trevas, fixei a filhinha e lembrei que Marta repetira aos meus ouvidos o Sl 23:1, nos inquietantes minutos de minha liberação da carne. Copiar-lhe-ia o gesto. E erguendo meu espírito para o Alto, sentindo de instante a instante que a emoção e o pranto me cortavam as palavras, repeti os versículos sagrados.

Ao redor, conspiravam, em nosso prejuízo, o barulho e a ameaça; todavia, quando pronunciei as frases de confiança: — “Ainda que andemos pelo vale da sombra e da morte, não temeremos mal algum, porque Ele, o Senhor, está conosco; a sua vontade e a sua vigilância nos consolam” — nosso grupo, com Bezerra à frente, levitou sem dificuldade e ganhamos a ponte, atravessando-a a poucos pés de altura acima do arcabouço em que é estruturada, conservando o espírito em prece expectante, como se pesada força de imantação nos atraísse fortemente para o abismo.

Que lápis do Plano carnal conseguiria descrever a nossa sensação de contentamento e alívio?

Momentos surgem na vida em que só o profundo silêncio da alma consegue traduzir a paz, o reconhecimento e a alegria.




Irmão Jacob
Francisco Cândido Xavier

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