Capítulo X

Nova morada espiritual


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Decididamente, o paraíso de contemplação inalterável não era criação para mim.

As alegrias do retorno à espiritualidade enobrecida e o reconforto da palestra com o Irmão Andrade e Marta traziam-me, sem dúvida, infinito júbilo; todavia, ali mesmo, estirado no repouso do leito, sentia falta do serviço.

Sondava o reajustamento de minhas forças, reconhecendo que o cérebro não demonstrava o cansaço dos derradeiros dias da corpo de carne e as fadigas do coração jaziam extintas. Dentro de meu ser lavrava bendita renovação.

Pretendia rogar trabalho com aproveitamento de minhas possibilidades na ação útil, contudo, receava. Ignorava se minha pobre tarefa no mundo fora aprovada pelos poderes superiores. E, no íntimo, eu não desconhecia os meus próprios erros.

Como solicitar admissão às obras elevadas se não basta a boa intenção para servir com eficiência? Estimaria sair da câmara e ver o quadro lá fora.

Respiraria, desse modo, o abençoado clima da atividade mental, observando, de antemão, quais seriam minhas probabilidades no futuro próximo. Apesar dos impositivos de trabalho que me torturavam o pensamento, deliberei calar.

Eu era, agora, um homem distanciado do leme. Asilara-me em outra embarcação e em outro mar, sob o patrocínio da generosidade alheia.



O Irmão Andrade, que me assinalava as mais íntimas apreciações, comentou o desengano de todas as criaturas que procedem da Terra esperando um céu de contemplações baratas, salientando que muitos Espíritos ociosos, na falsa apreciação da divina justiça, imploram indevido descanso no paraíso, à última hora da experiência terrestre, depois de haverem sorvido todos os venenos da alma na taça do corpo. Precipitam-se, então, nas trevas, revoltados no desespero e na indisciplina além do sepulcro, logo que se capacitam da necessidade de continuação do esforço intensivo no autoaperfeiçoamento. Muitos irmãos infelizes, nesses protestos inúteis contra as Leis Universais, caem presas de temíveis organizações de malfeitores desencarnados, aprendendo aflitivamente a desfazer os grilhões pesados da ignorância e da má-fé, ao contato de entidades cruéis que os dominam por tempo indeterminado, qual ocorre na Esfera carnal aos homens rebeldes e ingratos que pagam alto preço pelo reajustamento espiritual de si mesmos, na estrada escura da desarmonia e da desilusão.

Considerou comigo os imperativos do serviço e, fazendo-me rir de contentamento, notificou que a minha colaboração seria examinada na primeira oportunidade, aconselhando-me, todavia, muita meditação e muita calma, a fim de não reentrar nas construções da espiritualidade com os prejuízos da luta humana.

Porque lhe perguntasse pelo julgamento de meus atos, respondeu que a morte não nos conduz a tribunais vulgares e, sim, à própria consciência, e que, dentro de mim mesmo, encontraria, de acordo com os conhecimentos evangélicos hauridos no mundo, os pontos vulneráveis do meu espírito, de maneira a corrigi-los.

Corei sinceramente, ao registrar-lhe as observações.

Atenuando, no entanto, o choque com que me beneficiava, esclareceu que os desencarnados totalmente extraviados não conseguiam acesso até ali e que, não obstante entregue ao meu próprio julgamento, um amigo de Mais Alto viria ajudar-me a recompor o sentimento e o raciocínio.

Intrigado por não ouvir o nome do benfeitor anunciado e não desejando ser indiscreto, perguntei ao Irmão Andrade se ele mesmo não poderia auxiliar-me em semelhante juízo, ao que replicou, sorrindo:

— Como assim, Jacob? Também eu estou lutando comigo mesmo. Não posso.

Ante essa revelação de humildade, calei-me resignado.



Daí a minutos, ausente Marta do quarto, ajudou-me o abençoado amigo a preparar-me e reerguer-me.

Antes de sair, pedi-lhe me auxiliasse numa oração breve, na qual roguei ao Todo-Poderoso me amparasse, dentro da nova vida, e me abençoasse os propósitos de progredir na prática do bem e no conhecimento da verdade.

O prestimoso companheiro abraçou-me, aprovando-me a súplica.

Passados alguns instantes, achávamo-nos junto da filha, numa confortável sala de estar.

Com emoção, vi um retrato de família, adornado de flores. Umedeceram-se-me os olhos ao identificá-lo. Como não recordar semelhante peça afetiva? Não registro a ocorrência pela sua feição pessoal. Desejo apenas marcá-la para consolo de quantos supõem na morte uma derribada completa das doces alegrias familiares.

A organização doméstica, na Esfera elevada mais próxima do homem, é muito rica de encanto.

Formulei indagações variadas em torno de parentes que eu esperava rever ao regressar. Para todas as interrogações possuía Marta uma resposta clara e feliz.

Informou-me quanto ao destino de quase todos os laços do coração.

Alguns associados de minhas experiências jaziam de volta às regiões da carne, disputando novos troféus de redenção, enquanto outros operavam em círculos distantes. Muitos deles, encarnados ou não, poderiam ser visitados por mim e me visitariam a seu turno.

Reparando-me o interesse pelas novidades, mostrou-me a filha tudo o que representava o acervo da casa.

Quadros e decorações, objetos e enfeites desfilaram diante meus olhos encantados.

Nem todas as peças eram semelhantes ao material caseiro que conhecemos na vida terrena, mas a afinidade de tudo o que eu via de novo com o ambiente humano era flagrante no quadro geral.

Deteve-se, contente, ante um piano de cauda, harmonioso e belo, mais completo que os do Plano físico, afirmando, radiante, que ali mesmo tivera a satisfação de tocar para a mamãe, anos antes de minha vinda.

Graciosa e meiga, executou para meus ouvidos uma ária em que deixava transparecer sua extrema delicadeza filial e, talvez porque me visse os olhos marejados de lágrimas, recapitulando as emoções da paternidade terrestre, abandonou o instrumento e conduziu-me ao salão de leitura.

Espantei-me ante o carinho com que eram conservadas as publicações. A arte gráfica atinge aqui uma perfeição que não pode ser avaliada na Terra. Os tipos são estruturados em material luminoso e as gravuras na cor natural parecem animadas e vivas.

Folheei um volume de vastas proporções. Compunham-no recordações de Beethoven, destacando as lutas com que fora surpreendido no mundo para difundir entre os encarnados a mensagem musical dos Planos superiores. Lendo as páginas iniciais, apreendi-lhe sublimes conceitos quanto à mediunidade divina entre as criaturas humanas.

Perguntei à filha sobre o paradeiro do grande compositor, ao que Marta respondeu dizendo sabê-lo numa Esfera superior, cujo clima ainda lhe não fora dado alcançar.

O Irmão Andrade referiu-se aos festivais maravilhosos dos Círculos sublimados, asseverando que os artistas enobrecidos continuam criando a beleza e o bem para o desenvolvimento da vida planetária e, depois de encantadora conversação, saímos em agradáveis momentos de férias.



Muito difícil narrar a emoção que me dominou, ao afastar-me do interior doméstico.

Lembrando os dias rápidos em que tentava descansar na quietude de uma cidade serrana, quando ainda no corpo físico, vi desdobrar-se ante meus olhos enlevados a paisagem florida e brilhante de um burgo feliz.

As casas residenciais distanciavam-se largamente umas das outras, revelando o prévio programa de paz que as fez surgir.

Espécies variadas de plantas ostentavam flores garbosas e perfumadas.

Estávamos numa extensa planície e, não longe, divisava o casario que se adensava.

Respirávamos, certamente, nas cercanias de grande cidade do meu novo Plano.

Informou-me Marta de que ela recebera permissão das autoridades para hospedar-me ali, no grande parque de educação e refazimento em que trabalhava. Incumbia-se de educar crianças, recentemente desencarnadas, em notável organização que visitei em seguida. Colaborava com diversos trabalhadores no auxílio aos pequeninos arrebatados à experiência carnal.

Alguns amigos dedicados pretendiam receber-me; entretanto, a filha querida aguardava-me. Dispunha-se a reconduzir-me à escola espiritual, tanto quanto eu tivera a felicidade de oferecer-lhe o coração na experiência física.

Satisfazendo-me à indagação, esclareceu que os edifícios do parque não representavam propriedade particular. Eram patrimônio comum, orientado pela administração central da coletividade.

Demonstrando a estranheza que me assaltava, asseverou Marta que na Terra os fundamentos da propriedade são idênticos, variando somente os aspectos da retenção provisória das utilidades planetárias por parte do homem, usufrutuário dos bens da vida, porque, apesar das leis respeitáveis que regem o assunto entre as criaturas, toda individualidade encarnada é compelida um dia, pela morte, a deixar as vantagens da Esfera física.



Atravessávamos extensas e formosas avenidas marginadas por vegetação caprichosa e linda, quando tive o contentamento de ver alguns pássaros marcados por peregrina beleza. Cantavam extáticos, qual se fossem minúsculos seres conscientes, glorificando a Divindade.

A plumagem luminosa impunha-me assombro.

Trinavam junto de nós, sem temer-nos. Disse-me, então, o amigo Andrade que os seres inferiores, onde quer que se encontrem, refletem, de algum modo, as qualidades dos seres superiores que os cercam e afirmou que os irracionais da Esfera carnal poderiam exibir outras condições de aprimoramento, na posição de consciências iniciantes, se os homens adotassem atitude mental mais elevada, perante a vida.

A harmonia do ambiente lembrava uma pastoral divina.

Perguntei a Marta, de súbito, com a aspereza que me é própria, se me seria possível avistar as autoridades administrativas ali sediadas, mas a filha, amorosa e convincente, me pediu aguardasse mais tempo.

Reparei o halo de luz que a envolvia e os traços brilhantes que cercavam Andrade, fixando-me, em seguida, num demorado autoexame.

Meu corpo espiritual jazia tão obscuro quanto o veículo denso de carne.

Compreendi o conselho e, por pouco, não me despenhei no desânimo lamentável. Não trazia ainda comigo suficiente bagagem de luz para buscar, confiante, a aproximação dos Espíritos superiores.




Irmão Jacob
Francisco Cândido Xavier


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