Cinquenta Anos Depois

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Capítulo I

A morte de Cnéio Lúcius

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Dois meses havia que o Imperador e seus áulicos preferidos deixaram Roma.

Naquele fim de primavera do ano 133, a vida das nossas personagens, na Capital do Império, corria em aparente serenidade.

Alba Lucínia concentrava na filha e nos carinhos paternos a sua vida diuturna, sentindo-se, porém, muito combalida, devido às intensas preocupações morais, não somente pela ausência do marido, como pela atitude de Lólio Úrbico,  que, vendo-se senhor do campo e abusando da autoridade de que dispunha na ausência de César, redobrava os seus assédios com mais empenho e veemência.

A nobre senhora tudo fazia para ocultar uma situação tão amarga e, todavia, o conquistador prosseguia, implacável, nos seus propósitos desvairados, mal suportando o adiamento indefinido de suas esperanças inconfessáveis.

 

Anteriormente, a esposa de Helvídio tinha em Túlia Cevina a amizade de uma irmã carinhosa e desvelada, que sabia reconfortá-la nos dias de provações mais ásperas; mas, antes da viagem de César, o tribuno Máximo Cunctátor fora designado para uma demorada missão política na 1béria  distante, levando a esposa em sua companhia.

Alba Lucínia via-se quase só, na sua angústia moral, porquanto não podia revelar aos velhos pais, tão extremosos, as lágrimas ocultas do seu coração atormentado.

Frequentemente, deixava-se ficar horas a fio, a conversar com a filha, cuja simplicidade de espírito e cujo fervor na crença a encantavam, mas, por maiores que fossem os seus esforços, não conseguia dominar a fraqueza orgânica que começava a preocupar o círculo da família.

 

Um fato viera perturbar, ainda mais, a existência aparentemente tranquila dos nossos amigos, na Capital do Império. Cneio Lúcius adoecera gravemente do coração, o que para os médicos de um modo geral, era coisa natural, atento à idade.

Debalde foram empregados elixires e cordiais, tisanas e panaceias. O venerável patrício dia a dia se mostrava mais debilitado. Entretanto, Cneio desejava viver ainda um pouco, até o regresso do filho, afim de apertá-lo nos braços, antes de morrer. Nos seus extremos de afeição paternal, queria recomendar-lhe o amparo às duas irmãs Publícia e Márcia, esclarecendo a Helvídio todo os seus desejos. Mas, o experiente conhecimento das obrigações políticas forçava-o a resignar-se com as circunstâncias. Élio Adriano,  de acordo com os seus hábitos, não regressaria antes de um ano, na melhor das hipóteses. E uma voz íntima lhe dizia que, até lá, o corpo esgotado deveria baixar, desfeito em cinzas, à paz do sarcófago. Algo triste, nada obstante os valores da sua fé, o venerável ancião alimentava no cérebro meditações graves e profundas, acerca da morte.

 

Célia, apenas, com as suas visitas, lograva arrancá-lo, por algumas horas, dos seus dolorosos cismares.

Com um sorriso de sincera satisfação, abraçava-se à neta, dirigindo-se ambos para a janela fronteira ao Tibre, e, quando a jovem lhe falava da alegria do seu espírito, com o poder orar num local tão belo, Cneio Lúcius costumava esclarecer:

— Filha, outrora eu sentia a necessidade do santuário doméstico com as suas expressões exteriores… Não podia dispensar as imagens dos deuses nem prescindir da oferta dos mais ricos sacrifícios; hoje, porém, dispenso todos os símbolos religiosos para auscultar melhor o próprio coração, recordando o ensino de Jesus à Samaritana, (Jo 4:1) ao pé do Garizim, de que há de vir o tempo em que o Pai Todo-Poderoso será adorado não nos santuários de pedra, mas no altar do nosso próprio espírito… E o homem, filhinha, para encontrar-se com Deus no íntimo de sua consciência, jamais encontrará templo melhor que o da Natureza, sua mãe e mestra…

 

Conceitos que tais eram expendidos a cada instante, nos colóquios com a neta.

Ela, por sua vez, transformava as esperanças desfeitas em aspirações celestiais, convertendo os sofrimentos em consolo para o coração do idolatrado velhinho. Seu espírito fervoroso, com a sublime intuição da fé, que lhe ampliava a esfera de compreensão, adivinhava que o adorado avô não tardaria muito a ir-se também a caminho do túmulo. Lamentava antecipadamente a ausência daquela alma carinhosa e amiga, convertida em refúgio do seu pensamento desiludido, mas, ao mesmo tempo, rogava ao Senhor, coragem e fortaleza.

 

Num dia de grande abatimento físico, Cneio Lúcius viu que Márcia abria a porta do quarto, de mansinho, com um sorriso de surpresa. A filha mais velha vinha anunciar-lhe a chegada de alguém muito caro ao seu espírito generoso. Era Silano, o filho adotivo, que regressava das Gálias.  O patrício mandou-o entrar, com o seu júbilo carinhoso e sincero. Levantou-se, trêmulo, para abraçar o rapaz que, na juventude sadia dos seus vinte e dois anos completos, o apertou também nos braços, quase chorando de alegria.

— Silano, meu filho, fizeste bem em vir! — exclamou serenamente — Mas, conta-me! vens a Roma com alguma incumbência de teus chefes?

O rapaz explicou que não, que havia solicitado uma licença para rever o pai adotivo, de quem se sentia muito saudoso, acrescentando os seus propósitos de se fixar na Capital do Império, caso consentisse, esclarecendo que o seu comandante nas Gálias, Júlio Saulo, era um homem grosseiro e cruel, que o submetia a constantes maus tratos, a pretexto de disciplina. Rogava ao pai que o protegesse junto das autoridades, impedindo-lhe o regresso.

Cneio Lúcius ouviu-o com interesse e retrucou:

— Tudo farei, na medida dos meus recursos, para satisfazer teus justos desejos.

 

Em seguida, meditou profundamente, enquanto o filho adotivo lhe notava o grande abatimento físico.

Saindo, porém, dos seus austeros pensamentos, Cneio Lúcius acrescentou:

— Silano, não desconheces o passado e, um dia, já te falei das circunstâncias que te trouxeram ao meu coração paternal.

— Sim respondeu o rapaz em tom resignado — conheço a história do meu nascimento, mas os deuses quiseram conceder ao mísero enjeitado do mundo um pai carinhoso e abnegado, como vós, e não maldigo o destino.

O ancião levantou-se e, depois de abraçá-lo comovido, caminhou pelo quarto, apoiando-se com esforço. Em dado instante, deteve os passos vagarosos, diante de um cofre de madeira decorado de acanto,  abrindo-o cuidadosamente.

Dentre os pergaminhos dessa caixa-forte, retirou um pequeno medalhão, dirigindo-se ao rapaz com estas palavras:

— Meu filho, os enjeitados não existem para a Providência Divina. Nem mesmo remontando ao pretérito deves alimentar, no íntimo, qualquer mágoa, em razão da tua sorte. Todos os destinos são úteis e bons, quando sabemos aproveitar as possibilidades que o Céu nos concede em favor da nossa própria ventura…

 

E, como se estivesse mergulhando o pensamento no abismo das recordações mais longínquas, prosseguiu depois de uma pausa:

— Quando Márcia te beijou pela primeira vez, nesta casa, encontrou sobre o teu peito de recém-nascido este medalhão, que guardei para entregar-te mais tarde. Nunca o abri, meu filho. Seu conteúdo não podia interessar-me, pois, fosse qual fosse, terias de ser para mim um filho muito amado… Agora, porém, sinto que é chegada a ocasião de to entregar. Diz-me o coração que não viverei muito tempo. Devo estar esgotando os últimos dias de uma existência, de cujos erros peço o perdão do Céu, com todas as minhas forças. Mas, se me encontro próximo do túmulo, tu estás moço e tens amplos direitos à existência terrestre… Possivelmente, viverás em Roma doravante, e é bem possível chegue o momento em que terás necessidade de uma lembrança como esta… Guarda-a, pois, contigo.

Silano estava profundamente tocado nas fibras mais sensíveis do coração.

— Meu pai — exclamou comovido, recolhendo o medalhão zelosamente — guardarei a recordação sem que o conteúdo me interesse. Também eu, de qualquer modo, não reconheceria outro pai senão vós mesmo, em cuja alma generosa encontrei o próprio carinho maternal, que me faltou nos mais recuados dias da vida.

Ambos se abraçaram com ternura, continuando a palestra afetuosa, sobre fatos interessantes da Província ou da Corte.

 

Nessa mesma noite, o venerável patrício recebeu a visita de Fábio Cornélio, de quem solicitou as providências favoráveis às pretensões do filho adotivo.

O censor, mutíssimo sensibilizado em vista das solenes circunstâncias em que o pedido era feito, examinou o assunto com o máximo interesse, de modo que, em pouco tempo, obtinha a transferência de Silano para Roma, utilizando-lhe os serviços na própria esfera de sua gestão administrativa e fazendo do rapaz um funcionário de sua inteira confiança.

Considerando o ingresso daquela nova personagem na esfera de suas relações familiares, Alba Lucínia recordou as confidências de Túlia, mas procurou arquivar, com cuidado, as suas impressões íntimas, aceitando de bom grado a amizade respeitosa que Silano lhe demonstrava.

No lar de Helvídio Lúcius, contudo, a situação moral se complicava cada vez mais, em face das arremetidas de Lólio Úrbico, que, de modo algum, se decidia a abandonar as suas criminosas pretensões.

 

Certo dia, à tarde, quando Alba Lucínia e Célia regressavam de um dos habituais passeios ao Aventino,  receberam a visita do prefeito dos pretorianos, cuja fisionomia torturada demonstrava inquietação e profundo abatimento.

A jovem recolheu-se ao interior, enquanto a nobre patrícia iniciava a sua conversação amistosa e digna. O prefeito, porém, depois de alguns minutos, a ela se dirigiu, quase desvairadamente, nestes termos:

— Perdoe-me a ousadia reiterada e impertinente, mas não me posso furtar ao imperativo dos sentimentos que me avassalam o coração. Será possível que a senhora não me possa conceder uma leve esperança?!… Debalde tenho procurado esquece-la… A lembrança dos seus atrativos e peregrinas virtudes está gravada em meu espírito com caracteres poderosos e indeléveis!… O amor que a senhora em mim despertou é uma luz indestrutível, ardente, acesa em meu peito para toda a eternidade!…

 

Alba Lucínia escutava-lhe as declarações amorosas tocada de temor e espanto, sentindo-se incapaz de traduzir a repugnância que aquelas afirmativas lhe causavam.

Enceguecido, porém, na sua paixão, o prefeito dos pretorianos continuava:

— Amo-a profunda e loucamente… De há muito, e bem jovem, tudo tenho feito para esquece-la, em obediência às linhas paralelas dos nossos destinos; mas o tempo mais não fez que aumentar essa paixão, que me invade e anula todos os meus bons propósitos. Confio, agora, na sua magnanimidade e quero guardar no peito mísero uma tênue esperança!… Atenda às minhas súplicas! Conceda-me um olhar! Sua indiferença me fere o coração com a perspectiva dolorosa de nunca realizar meu sonho divino de toda a vida… Adoro-a! sua imagem me persegue por toda parte, como uma sombra… Porque não corresponder a essa dedicação sublime que vibra em minh’alma? Helvídio Lúcius não poderia ser, nunca, o coração destinado ao seu, no que se refere à compreensão e ao amor!… Quebremos o arganel das convenções que nos separam, vivamos os anseios de nossa alma. Sejamos felizes com a nossa união e o nosso amor!…

 

Estupefata, Alba Lucínia calava-se, sem atinar com as respostas precisas, na tortura de suas emoções.

Todavia, por detrás das cortinas, uma cena significativa se verificara.

Dirigindo-se distraidamente, para a sala de recepções, Célia surpreendera as atitudes de Hatéria, que, qual sombra, se detinha no corredor, à escuta das palavras do prefeito, proferidas em voz alta e imprudente.

Acercando-se do local, ouviu, também ela, as últimas frases apaixonadas do marido de Cláudia, fazendo-se pálida de surpresa dolorosa.

Apesar de ouvir, distintamente, quanto o prefeito houvera pronunciado, notou que sua mãe se mantivera em estranho silêncio. Seria possível uma tal afeição sob aquele teto? O coração inocente não desejava dar guarida aos pensamentos inferiores e injuriosos à castidade materna. Desejou orar, antes de tudo, afim de que o seu espírito não cedesse aos julgamentos precipitados e menos dignos; mas urgia dali afastar a criada antes que a situação se complicasse, a ponto de incidir na maledicência e na curiosidade dos próprios servos.

— Hatéria, que fazes aqui? — Perguntou bondosamente.

— Vim trazer as flores da patroa — respondeu fingindo despreocupação — entretanto, temia perturbar a tranquilidade da senhora e do senhor prefeito, que tanto se estimam.

 

A cúmplice de Cláudia Sabina frisou as últimas palavras com tamanha simplicidade, que a própria Célia, na santa ingenuidade da sua alma carinhosa, não percebeu qualquer malícia.

— Está bem. Dá-me as flores que eu mesma as entregarei à mamãe.

Hatéria retirou-se imediatamente, para evitar suspeitas, enquanto Célia, colocando as rosas num jarrão da ante-sala, recolhia-se ao quarto, de coração opresso, extravasando na prece sincera as lágrimas dolorosas da sua alma intranquila.

O silêncio da mãe a impressionara profundamente. Seria possível que ela amasse aquele homem? Teriam surgido divergências íntimas, tão profundas, entre seus pais, para que uma hecatombe sentimental viesse desabar naquela casa sempre bafejada de afeições tão puras?… Não ouvira a palavra materna responder ao conquistador com a energia merecida. Aquele mutismo lhe apavorava o coração. Seria crível que as paixões do mundo houvessem dominado a genitora, tão digna e tão sincera, na ausência de seu pai? As mais dolorosas conjeturas lhe povoavam a mente superexcitada e dolorida.

 

Todavia, fez o propósito íntimo de não deixar transparecer as suas dúvidas e inquietações. O coração de filha recusava-se a crer na falência materna, mas, mesmo assim, raciocinava no seu foro cristão que se Alba Lucínia prevaricasse algum dia, seria chegado o momento de, como filha, testemunhar-lhe o mais santificado amor, com as sublimes demonstrações de uma renúncia suprema.

Agasalhando essas disposições, seu espírito carinhoso sentiu-se confortado, relembrando os preciosos ensinamentos de Jesus.

No entanto, a esposa de Helvídio, sem que a filha chegasse a ouvir-lhe as palavras indignadas, depois de longa pausa, revidara com energia:

— Senhor, tenho tolerado sempre os vossos insultos com resignação e caridade, não somente pelos laços que vos ligam a meu pai, como pela expressão de cordialidade entre vós e meu esposo; mas a paciência também tem os seus limites.

Onde a vossa dignidade de patrício adquiriu tão baixo nível, inconcebível nos mais vis malfeitores do Esquilino?!  Lá no ambiente provinciano, nunca supus que em Roma os homens de governo se valessem de suas prerrogativas para humilhar mulheres indefesas, com a hediondez de paixões inconfessáveis.

Não vos envergonhais da vossa conduta, tentando nodoar a reputação de uma casa honesta e de uma mulher que se honra em cultivar as mais elevadas virtudes domésticas? Em que condições tentais esse crime inaudito! Vossas incríveis declarações, na ausência de meu marido, valem por vergonhosa traição e a mais torpe das covardias!…

Atentai bem para o vosso procedimento inacreditável! As portas acolhedoras desta casa, que se abriram constantemente para vos receber como amigo, estão abertas para vos expulsar como a um monstro!…

 

De faces incendidas, Alba Lucínia manifestava o seu ânimo resoluto, em tão angustiadas circunstâncias. Indignada, apontava a porta ao conquistador, convidando-o a retirar-se.

— Senhora, é assim que me recebe uma afeição sincera? — Resmungou Lólio Úrbico em voz surda.

— Não conheço o código da prevaricação e nunca pude compreender a amizade pelo caminho da injúria. — esclareceu a pobre senhora com o heroísmo de sua energia feminina.

Ouvindo-a e percebendo-lhe a virtude indomável, o prefeito dos pretorianos abriu a porta para retirar-se, exclamando colérico:

— Há de ouvir-me com mais benevolência noutra ocasião. Tenho paciência inesgotável!

E saiu precipitadamente, para as sombras da noite, que já se havia fechado sob o céu pardacento.

Vendo-se só a patrícia deu expansão às lágrimas amargas que se lhe represavam no íntimo. A saudade do marido, as preocupações morais, os insultos do conquistador impiedoso, a falta de um coração amigo que lhe pudesse recolher e compartir as amarguras, tudo contribuía para adensar as nuvens que lhe toldavam o raciocínio.

 

Debalde buscou a filha consolá-la em suas angustiosas inquietações. Três dias passaram, amargurados e tristes.

Célia podia, apenas, avaliar a angústia materna, mas não conseguia estabelecer a causa dos seus pesares, sentindo-se ainda atormentada e confusa com as declarações do prefeito. Abstraindo-se, todavia, de qualquer pensamento que pudesse infirmar a dignidade materna, buscou esquecer o assunto, multiplicando os testemunhos carinhosos.

Alba Lucínia, a seu turno, ponderava com amargura a nefasta influência que Lólio Úrbico e sua mulher exerciam nos destinos de sua família, rogando com fervor aos deuses-lares  compaixão e misericórdia.

A situação prosseguia com as mesmas características dolorosas, quando, um dia, o velho servo Belisário, pessoa da confiança de Cneio Lúcius e de seus familiares, veio avisar que o estado de saúde do ancião se agravara inesperadamente. Márcia lhes dava ciência do fato, esperando fossem ao Aventino com a urgência possível.

Dentro de uma hora a liteira de Helvídio estava a caminho.

 

Em pouco tempo, Célia e sua mãe defrontavam o bondoso velhinho, que as recebeu com um largo sorriso, não obstante o visível abatimento orgânico. A cabeça encanecida repousava nos travesseiros, de onde não se podia mais erguer, mas as mãos enrugadas e alvas acariciaram a nora e a neta com inexcedível ternura . Alba Lucínia notou-lhe o esgotamento geral, surpreendendo-se com o seu aspecto. A fulguração estranha dos olhos dava ensejo às mais tristes perspectivas.

Às primeiras perguntas, respondeu o enfermo com serenidade e lucidez:

— Nada houve que justificasse tantos temores de Márcia… Acredito que, amanhã mesmo, terei recuperado o ritmo normal da vida. O médico já veio e providenciou o necessário e oportuno…

E notando o profundo abatimento da esposa de Helvídio, acrescentou:

— Que é isso, minha filha? Vens atender a um doente, mais enferma e abatida que ele próprio?… Tua fraqueza dá-me cuidados… Tens os olhos fundos e as faces descoradas e tristes!…

 

A esse tempo, percebendo que o avô desejava dirigir-se mais particularmente à sua mãe, Célia retirou-se para junto de Márcia, que lhe confiava as suas apreensões sobre o estado de saúde do venerável ancião.

Alba Lucínia, sentando-se à beira do leito, beijou a destra do enfermo com amor e enternecimento.

Queria desculpar-se da impressão que lhe causara, pretextar uma enxaqueca ou alegar outro motivo banal com que pudesse justificar o seu abatimento, mas, soberana tristeza apoderara-se do seu espírito. Além de todos os pesares, algo lhe segredava ao coração que o velho sogro, amado como pai, estava a partir para as névoas do túmulo. Diante dessa dolorosa perspectiva, seus olhos o contemplavam com a ternura piedosa do seu coração feminino. Em vão procurou um pretexto, no íntimo, para não incomodá-lo com as suas realidades amargas e, todavia, o olhar estranho e fulgurante de Cneio Lúcius parecia perscrutar a verdade em si mesma.

— Calas-te, filha?… — murmurou ele, depois de esperar por minutos a resposta às carinhosas interpelações — Alguém chegou a ferir-te o coração afetuoso e desvelado? Teu silêncio dá-me a entender uma dor moral muito grande…

 

Sentindo que o enfermo lhe identificara o angustioso estado d’alma, Alba Lucínia deixou rolar uma lágrima, filha do seu coração dilacerado.

— Meu pai — não vos preocupeis comigo nem vos assuste esta lágrima! Sinto-me presa dos mais estranhos e torturantes pensamentos… A ausência de Helvídio, os problemas do lar e agora a vossa saúde abalada, constituem para mim um complexo de pensamentos amargos e indefiníveis!… Mas os deuses hão de apiedar-se da nossa situação, protegendo Helvídio e restituindo-vos a saúde preciosa!…

— Sim, filha, mas não é só isso o que te acabrunha — retrucou Cneio Lúcius com o seu olhar sereno e percuciente — outras mágoas te constringem o coração!… Há muito venho meditando no contraste da vida que levavas na Província, com a que experimentas aqui, no báratro das nossas convenções sociais… Teu espírito sensível, por certo, vem ferindo-se nos espinhos das estradas ásperas dos nossos tempos de decadência e contrastes dolorosos!…

E, como se a sua análise sondasse mais fundo, acrescentou:

— Sinto, ainda, que determinadas pessoas do nosso círculo social hão dilacerado teu coração profundamente… Não é verdade?…

 

Fixando-lhe os olhos calmos e luminosos, cuja transparência não admitia subterfúgios, a esposa de Helvídio replicou com um suspiro de angústia:

— Sim, meu pai, não vos iludis; contudo, espero que confieis em mim, pois dentro da grandeza dos nossos códigos familiares saberei cumprir os deveres de esposa e mãe, acima de quaisquer circunstâncias.

O venerável patrício meditou longamente como se buscasse, no íntimo, uma solução para consolo da nora, sempre considerada como filha extremosa e digna.

Em seguida, como se houvera escutado as vozes silenciosas do próprio coração, acrescentou:

— Já ouviste dizer que temos várias vidas terrenas?

— Como, meu pai? Não compreendo.

— Sim, alguns filósofos mais antigos nos deixaram no mundo essas verdades consoladoras. Lutei contra elas, desde os estudos da mocidade, fiel às nossas tradições mais respeitáveis; contudo, a velhice e a enfermidade possuem também as suas grandes virtudes!… As experiências humanas ensinaram-me que precisamos de várias existências para aprender e nos purificarmos… Agora que me encontro no limiar do sepulcro, as mais profundas meditações me visitam a mente. A questão das vidas sucessivas aclarou-se, com toda a beleza de suas prodigiosas consequências. A velhice faz-me sentir que o Espírito não se modifica tão só com as lições ou com as lutas de um século, e a enfermidade me fez reconhecer no corpo uma vestimenta pobre, que se desfaz com o tempo. Viveremos além-túmulo com as nossas impressões mais vivas mais sinceras, e retornaremos à Terra para continuar as mesmas experiências, em favor de nossa evolução espiritual.

 

Percebendo que a nora lhe ouvia a palavra filosófica, tomada de profunda surpresa, o venerando ancião acentuou:

— Estas considerações, filha, vêm-me do íntimo para esclarecer-te que, apesar da decrepitude portadora da morte, tenho o espírito vivaz e repleto das mesmas disposições e esperanças. Sem a certeza da imortalidade, a vida terrestre seria uma comédia estúpida e dolorosa. Mas eu sei que além do túmulo outra vida floresce e novas possibilidades felicitarão o nosso ser.

Por essa razão, vibro com as tuas dores de agora, crendo, porém, que no futuro a Providência Divina nos concederá novas experiências e caminhos novos… Os que hoje nos odeiam ou nos perseguem, poderão ser convertidos ao bem com o nosso amor desvelado e compassivo. Quem sabe? Após esta vida, poderemos voltar, resgatando os nossos corações para o Céu e auxiliando a redenção dos inimigos. Tenhamos fé, piedade e esperança, considerando que o tempo deve ser para nós um patrimônio divino!… De acordo com o elevado princípio das vida múltiplas, os laços do sangue ensejam as mais sublimes possibilidades de transfundirmos a torpeza do ódio, ou dos sentimentos inconfessáveis, em algemas cariciosas de abnegação e de amor…

Sem forças físicas para defender os filhos queridos das ciladas e perigos do mundo, guardo as minhas esperanças afetuosas para o porvir ainda longínquo, sem descrer da sabedoria que rege os trabalhos e provações da existência terrena.

 

Cneio Lúcius estava fatigado. As palavras sábias e inspiradas saíam-lhe da garganta, com dificuldade indefinível. Alem disso, Alba Lucínia não lhe compreendeu as exortações carinhosas e transcendentes. Atribuiu-as, intimamente, a possíveis alterações mentais, decorrentes do seu estado físico. Mostrando-se mais forte, em face das próprias amarguras, fez sentir ao ancião que o seu estado requeria repouso e deveria abster-se de esforços prolongados e inadequados ao momento.

O sábio patrício percebeu a incompreensão da nora, esboçando um sorriso carinhoso e resignado.

Daí a momentos, a esposa de Helvídio confiava aos da casa as suas impressões, relativamente ao estado mental do enfermo, o que, conforme esclarecera Márcia, não era surpresa, desde que o generoso velhinho manifestara as suas pelas doutrinas cristãs.

 

Somente Célia compreendeu a situação, correndo a consolá-lo. Com a sua ternura imensa, abraçou-se ao avô, enquanto ele lhe advertiu:

— Sei porque assim me beijas e abraças… É pena que todos os nossos não possam compreender os princípios que nos esclarecem e consolam o coração!… Aos outros, não deverei falar com a franqueza com que permutamos nossos pensamentos… A ti, portanto, cumpre-me confessar que meu corpo está vivendo as derradeiras horas. Daqui a pouco, terei partido para o mundo da verdade, onde cessam todos os convencionalismos humanos. Em vez de confiar-te a teus pais, confio os meus filhos ao teu coração!… Sinto que Helvídio e Lucínia experimentam muitas amarguras no ambiente de Roma, do qual, há muito, se desabituaram… Sacrifica-te por eles, filhinha… Se sobrevierem situações difíceis, ama-os ainda mais… Tu que me levaste ao Evangelho, deverás recordar que Jesus afirmava-se como remédio dos enfermos e pecadores… Sua palavra misericordiosa não vinha para os sãos, mas para os doentes, e as mãos para salvar as ovelhas tresmalhadas do seu aprisco divino… Não temas a renúncia ou o sacrifício de todos os bens do mundo… A dor é o preço sagrado de nossa redenção… Se Deus apiedar-se de minha indigência espiritual, virei do mistério do túmulo para te fortalecer com o meu amor, se tanto for preciso…

 

Enquanto a neta lhe ouvia a palavra, altamente emocionada, mas serena em sua fé, o venerando patrício continuava, depois de longa pausa:

— Desde ontem, sinto que vou penetrando em uma vida nova e diferente… Ouço vozes que me chamam ao longe, e seres luminosos e imperceptíveis para os outros que me cercam o leito, desolados… Pressinto que o corpo não tardará a cair na agonia… mas, antes disso, quero dizer-te que estarás sempre no coração do avôzinho, seja onde e como for.

Sua palavra tornava-se morosa e arquejante, mas a jovem, compreendendo a situação do querido enfermo, amparou-lhe a cabeça alva de neve, com mais cuidado e maior ternura.

— Célia — murmurou com dificuldade — todos os meus desejos referentes à vida… material… estão expressos… em carta a Helvídio. No cofre de minhas… lembranças… Minha consciência de pecador… está em preces e sei… que Jesus não desprezará minhas súplicas… Mas desejaria… recitasses a oração do Senhor, nesta hora extrema…

 

Seus lábios moviam-se ainda, como se a queda súbita das energias impedisse a elocução, mas a neta, alma temperada na fé ardente e nas grandes emoções das angústias terrestres, compreendeu o olhar calmo e profundo do agonizante, e começou a murmurar, retendo as próprias lágrimas:

— Pai nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na Terra, como nos Céus… (Mt 6:9)

Tranquilamente, terminou, como se as suas palavras houvessem alcançado o Paraíso.

O ancião fixou nela o olhar carinhoso, como se, no silêncio da hora extrema, houvesse concentrado na sua afeição os derradeiros pensamentos.

Cheia de cuidados, Célia ajeitou-lhe os travesseiros, depois de um beijo molhado de pranto, dirigindo-se em seguida ao interior, onde cientificou sua mãe do que ocorria.

 

Cneio Lúcius havia caído em abatimento profundo. A dispneia implacável interceptara-lhe de todo a palavra e ele entrou em agonia lenta, que devia durar mais de setenta horas…

De nada valeram os recursos médicos do tempo, com as suas fricções e beberagens. O moribundo perdia o “tonus vital”, aos poucos, em meio das mais dolorosas aflições.

As lágrimas de Márcia e Publícia misturaram-se às de Alba Lucínia e filha ante os rudes padecimentos do velhinho adorado. Um servo foi expedido a toda pressa para Cápua, requisitando a presença de Caio Fabrícius e sua mulher, que poderiam, talvez, chegar a Roma para as derradeiras homenagens.

 

Na manhã do terceiro dia de agonia dolorosa, como sói acontecer com as pessoas de idade avançada, Célia percebeu que o avô estava nas derradeiras impressões da existência terrestre… a respiração era quase imperceptível, um frio intenso começava a invadir-lhe os pés e as mãos.

Todos os familiares compreenderam que chegara o instante supremo… Márcia, nas suas expressões de amargura resignada, sentou-se junto do venerando genitor, aconchegando-lhe a cabeça entre os joelhos, carinhosa, enquanto Célia segurava-lhe as mãos frias e enrugadas… Com a alma em prece fervorosa, suplicando a Jesus recebesse o avô na luz de sua misericórdia, a jovem cristã, no êxtase da sua fé, sentiu que a câmara espaçosa se enchia de claridades estranhas e indefiníveis. Figurou-se-lhe divisar seres luminosos, aéreos, a cruzarem a alcova em todas direções… Por vezes, chegava a lhes fixar os traços fisionômicos, embora não os identificasse, surpreendendo-se com a visão de túnicas alvinitentes, semelhantes a largos peplos de neve translúcida…

 

Todavia, entre aqueles seres radiosos entreviu alguém que lhe era conhecido. Era Nestório, que a confortava com um afetuoso sorriso. Compreendeu, então, que os bem-amados que nos precedem no túmulo vêm dar as boas-vindas aos que atingiram o último dia na Terra… Naquele minuto luminoso, seu coração enchia-se de carinhoso júbilo e de radiosas esperanças… Desejou falar ao vulto de Nestório, perguntando-lhe por Ciro, mas, absteve-se de pronunciar qualquer palavra, receosa de que a sua abençoada visão se desfizesse… Contudo, como se os pensamentos mais íntimos fossem ouvidos pelo amigo desencarnado, percebeu que o ex-escravo lhe falava, ouvindo a sua voz, estranhamente, como se o fenômeno obedecesse a um novo meio de audição intra-cerebral.

— Filha — parecia-lhe dizer o Espírito de Nestório, afetuosamente — Ciro já veio e vê-lo-ás breve!.. Acalma o coração e guarda a tua fé sem desdenhar o sacrifício!… Adeus!… Junto de alguns amigos desvelados, aqui viemos buscar o coração de um justo!…

 

Com os olhos marejados de pranto, a filha de Helvídio notou que Nestório abraçara-se ao moribundo, enquanto uma força invencível a arrancava do êxtase, fazendo-a voltar à vida comum.

Como se houvera chegado de outro Plano, ouviu que Márcia e sua mãe pranteavam e certificou-se de que o moribundo deixara escapar o último suspiro.

Cneio Lúcius, com a consciência edificada nos largos padecimentos de uma longa vida, partira ao amanhecer, quando o maravilhoso Sol romano começava a dourar as eminências do Aventino com os primeiros beijos da aurora…

 

Então, um luto pesado se abateu sobre o palácio que, por tantos anos, havia servido de ninho aos seus grandes sentimentos. Durante oito dias, seus despojos ficaram expostos à visitação pública, na qual se confundiam nobres e plebeus, por lhe trazerem, todos, um pensamento agradecido.

A notícia do infausto acontecimento foi mandada a Helvídio pelo correio do próprio Imperador, enquanto Caio e a esposa chegavam da Campânia,  afim de assistir às derradeiras homenagens ao morto ilustre e querido.

Cneio Lúcius não tivera o conforto da presença de Helvídio, mas Cornélio fez questão de tomar todas as providências para que não lhe faltassem as honras do Estado. Assim, o venerando patrício, justamente conhecido e estimado por suas virtudes morais e cívicas, antes de baixar ao túmulo, recebeu as homenagens da cidade em peso.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

Uma Família Romana

1 • 1

Varando a multidão que estacionava na grande praça de Esmirna, em clara

manhã do ano 131 da nossa era, marchava um troço de escravos jovens e atléticos, conduzindo uma liteira ricamente ataviada ao gosto da época.

De espaço a espaço, ouviam-se as vozes dos carregadores, exclamando:

– Deixai passar o nobre tribuno Caio Fabricius! Lugar para o nobre representante de Augusto! Lugar!... Lugar!...

Desfaziam-se os pequenos grupos de populares, formados à pressa em torno do mercado de peixes e legumes, situado no grande logradouro, enquanto o rosto de um patrício romano surdia entre as cortinas da liteira, com ares de enfado, a observar a turba rumorosa.

Seguindo a liteira, caminhava um homem dos seus quarenta e cinco anos presumíveis, deixando ver nas linhas fisionômicas o perfil israelita, tipicamente características, e um orgulho silencioso e inconformado. A atitude humilde, todavia, evidenciava condição inferior e, conquanto não participasse do esforço dos carregadores, adivinhava-se-lhe no semblante contrafeito a situação dolorosa de escravo.

Respirava-se, à margem do golfo esplêndido, o ar embalsamado que os ventos do Egeu traziam do grande Arquipélago.

O movimento da cidade crescera de muito naqueles dias inolvidáveis, seqüentes à última guerra civil que devastara a Judéia para sempre. Milhares de peregrinos invadiam-na por todos os flancos, fugindo aos quadros terrificantes da Palestina, assolada pelos flagelos da última revolução aniquiladora dos derradeiros laços de coesão das tribos laboriosas de Israel, desterrando-as da pátria.

Remanescentes de antigas autoridades e de numerosos plutocratas de Jerusalém, de Cesaréia, de Betel e de Tiberíades, ali se acotovelam famélicos, por subtraírem-se aos tormentos do cativeiro, após as vitórias de Júlio Sexto Severo sobre os fanáticos partidários do famoso Bar-Coziba.

Vencendo os movimentos instintivos da turba, a liteira do tribuno parou à frente de soberbo edifício, no qual os estilos grego e romano se casavam harmoniosamente.

Ali estacionando, foi logo anunciado no interior, onde um patrício relativamente jovem, aparentando mais ou menos quarenta anos, o esperava com evidente interesse.

– Por Júpiter! – exclamou Fabricius, abraçando o amigo Helvídio Lucius – não supunha encontrar-te nessa plenitude de robustez e elegância, de fazer inveja aos próprios deuses!

– Ora, ora! – replicou o interpelado, em cujo sorriso se podia ler a satisfação que lhe causavam aquelas expansões carinhosas e amigas – são milagres dos nossos tempos. Aliás, se há quem mereça tais gabos, és tu, a quem Adônis sempre rendeu homenagens.

Neste ínterim, um escravo ainda moço trazia a bandeja de prata, onde se alinhavam pequenos vasos de perfume e coroas da época, adornadas de rosas.

Helvídio Lucius serviu-se cuidadosamente de uma delas, enquanto o visitante agradecia com leve sinal de cabeça.

– Mas, ouve! – continuava o anfitrião sem dissimular o contentamento que lhe causava a visita – há bastante tempo aguardamos tua chegada, de maneira a partirmos para Roma com a brevidade possível. Há dois dias que a galera está à nossa disposição, dependendo a partida tão-somente da tua vinda!...

E batendo-lhe amistosamente no ombro, rematava:
– Que demora foi essa?...
– Bem sabes – explicou Fabricius – que sumariar os estragos da última

revolução era tarefa assaz difícil para realizar em poucas semanas, razão pela qual, apesar da demora a que te referes, não levo ao Governo Imperial um relatório minucioso e completo, mas apenas alguns dados gerais.

– E a propósito da revolução da Judéia, qual a tua impressão pessoal dos acontecimentos?

Caio Fabricius esboçou um leve sorriso, acrescentando com amabilidade:

– Antes de dar a minha opinião, sei que a tua é a de quem encarou os fatos com o maior otimismo.

– Ora, meu amigo – disse Helvídio, como a justificar-se –, é verdade que a venda de toda a minha criação de cavalos da Iduméia, para as forças em operações, me consolidou as finanças, dispensando-me de maiores cuidados quanto ao futuro da família; mas isso não impede considere a penosa situação desses milhares de criaturas que se arruinaram para sempre. Aliás, se a sorte me favoreceu no plano de minhas necessidades materiais, devo-o principalmente à intervenção de meu sogro, junto do prefeito Lólio Úrbico.

– O censor Fábio Cornélio agiu assim tão decisivamente a teu favor? – perguntou Fabricius, algo admirado.

– Sim.

– Está bem – disse Caio já despreocupado –, eu nunca entendi patavina da criação de cavalos da Iduméia ou de bestas da Ligúria. Aliás, o êxito dos teus

negócios não altera a nossa velha e cordial amizade. Por Pólux!... Não há necessidade de tantas explicações nesse sentido.

E depois de sorver um trago de Falerno solicitamente servido, continuou, como que analisando as próprias reminiscências mais íntimas:

– O estado da Província é lastimável e, na minha opinião, os judeus nunca mais encontrarão na Palestina o benefício consolador de um lar e de uma pátria. Em diversos reencontros, morreram mais de cento e oitenta mil israelitas, segundo o conhecimento exato da situação. Foram destruídos quase todos os burgos. Na zona de Betel a miséria atingiu proporções inauditas. Famílias inteiras, desamparadas e indefesas, foram covardemente assassinadas. Enquanto a fome e a desolação operam a ruína geral, chega também a peste, oriunda da exalação dos cadáveres insepultos. Nunca supus rever a Judéia em tais condições...

– Mas, a quem deveremos inculpar do que ocorre? O governo de Adriano não se tem caracterizado pela retidão e pela justiça? – perguntou Helvídio Lucius com grande interesse.

– Não posso afirmá-lo com certeza – revidou Fabricius, atencioso –; todavia, considero pessoalmente que o grande culpado foi Tineio Rufus, legado pró-pretor da Província. Sua incapacidade política foi manifesta em todo o desenvolvimento dos fatos. A reedificação de Jerusalém com o nome de Elia Capitolina, obedecendo aos caprichos do Imperador, apavora os israelitas, desejosos todos de conservar as tradições da cidade santa. O momento requeria um homem de qualidades excepcionais, à frente dos negócios da Judéia. Entretanto, Tineio Rufus não fez mais que exacerbar o ânimo popular com imposições religiosas de todos os matizes, contrariando a clássica tradição de tolerância do Império nos territórios conquistados.

Helvídio Lucius ouvia o amigo, com singular interesse, mas, como se desejasse afastar de si mesmo alguma reminiscência amarga, murmurou:

– Fabricius, meu caro, tua descrição da Judéia me apavora o espírito... Os anos que passamos na Ásia Menor me devolvem a Roma com o coração apreensivo. Em toda a Palestina campeiam superstições totalmente contrárias às nossas tradições mais respeitáveis, e essas crenças estranhas invadem o próprio ambiente da família, dificultando-nos a tarefa de instituir a harmonia doméstica...

– Já sei – replicou o amigo solicitamente –, queres aludir, com certeza, ao Cristianismo, com as suas inovações e os seus asseclas.

Mas... – ajuntou Caio, evidenciando uma atenção mais íntima –, acaso Alba Lucínia teria deixado de ser a segurança vestalina de tua casa? Seria possível?

– Não – replicou Helvídio ansioso por se fazer compreendido –, não se trata de minha mulher, sentinela avançada de todos os feitos da minha vida, há longos anos, mas de uma das filhas que, contrariamente a todas previsões, imbuiu-se de semelhantes princípios, causando-nos os mais sérios desgostos.

– Ah! lembro-me de Helvídia e de Célia, que, em meninas, eram bem dois sorrisos dos deuses na tua casa. Mas tão jovens e dadas, assim, a cogitações filosóficas?

– Helvídia, a mais velha, não se impregnou de tais bruxarias; mas a nossa pobre Célia parece bastante prejudicada pelas superstições orientais, tanto que, regressando a Roma, tenciono deixá-la em companhia de meu pai, por algum tempo. Suas lições de virtude doméstica hão de renovar-lhe o coração, segundo cremos.

– É verdade – concordou Fabricius –, o venerando Cneio Lucius reformaria para as tradições romanas os sentimentos mais bárbaros de nossas Províncias.

Fizera-se ligeira pausa na conversação, enquanto Caio tamborilava com os dedos, dando a entender a sua preocupação, como se evocasse alguma dolorosa lembrança.

– Helvídio – murmurou o tribuno fraternalmente –, teu regresso a Roma é de causar apreensões aos teus verdadeiros amigos. Recordando teu pai, lembro-me instintivamente de Silano, o pequeno enjeitado que ele chegou quase a adotar oficialmente como próprio filho, desejoso de libertar-te da calúnia a ti imputada no albor da mocidade...

– Sim – disse o anfitrião, como se houvera repentinamente despertado –, ainda bem que não desconheces ser caluniosa a acusação que pesou sobre mim. Aliás, meu pai não ignora isso.

– Apesar de tudo, teu venerável genitor não hesitou em cumular a criança, a ele encaminhada, com o máximo de carinhos...

Depois de passar nervosamente a mão pela fronte, Helvídio Lucius acentuou:

– E Silano?... Sabes o que é feito dele?

– As últimas informações davam-no como incorporado às nossas falanges que mantêm o domínio das Gálias, como simples soldado do exército.

– Às vezes – ajuntou Helvídio preocupado – tenho pensado na sorte desse rapaz, pupilo da generosidade de meu pai, desde os tempos de minha juventude. Mas, que fazer? Desde que me casei, tudo fiz por trazê-lo à nossa companhia. Minha propriedade da Iduméia poderia proporcionar-lhe uma existência simples e liberta de maiores cuidados, sob as minhas vistas atentas; todavia, Alba Lucínia se opôs terminantemente aos meus projetos, não só recordando os comentários

caluniosos de que fui alvo no passado, como também alegando seus direitos exclusivos à minha afeição, pelo que, fui compelido a conformar-me, levando em conta as nobres qualidades da sua alma generosa.

Bem sabes que minha esposa deve receber as minhas atenções mais respeitosas. Não tenho remédio senão aceitar de bom grado as suas afetuosas imposições.

– Helvídio, bom amigo – exclamou Fabricius, demonstrando prudência –, não devo nem posso interferir na tua vida íntima. Problemas há, na vida, que somente os cônjuges podem solucionar, entre si, na sagrada intimidade do lar; mas, não é apenas pelo caso de Silano que me sinto apreensivo, relativamente ao teu regresso.

E fixando o amigo bem nos olhos, rematou:
– Lembraste de Cláudia Sabina?...
– Sim... – respondeu vagamente.
– Não sei se estás devidamente informado a seu respeito. Cláudia é hoje a

esposa de Lólio Úrbico, o prefeito dos pretorianos. Não deves ignorar que esse homem é a personalidade do dia, como depositário da máxima confiança do Imperador.

Helvídio Lucius passou a mão pela fronte, como se desejasse afugentar uma penosa recordação do passado, revidando, afinal, para tranqüilidade de si mesmo:

– Não desejo exumar o passado, visto ser hoje um outro homem; mas, se houver necessidade de ser prestigiado na Capital do Império, não podemos esquecer, igualmente, que meu sogro é pessoa de toda a confiança, não só do prefeito a que aludes, como de todas as autoridades administrativas.

– Bem o sei, mas não ignoro também que o coração humano tem escaninhos misteriosos... Não acredito que Cláudia, hoje elevada às esferas da mais alta aristocracia, pelos caprichos do destino, haja olvidado a humilhação do seu amor violento de plebéia, espezinhado em outros tempos.

– Sim – confirmou Helvídio Lucius com os olhos parados no abismo de suas recordações mais íntimas –, muitas vezes tenho lamentado o haver nutrido em seu coração uma afetividade tão intensa; mas, que fazer? A juventude está sujeita a caprichos numerosos e, a maior parte das vezes, não há advertência que possa romper o véu da cegueira...

– E estarás hoje menos moço para que te sintas completamente livre dos caprichos multiplicados da nossa época?

O interpelado compreendeu todo o alcance daquelas observações sábias e prudentes, e como se não lhe prouvesse o exame das circunstâncias e dos fatos,

cuja lembrança penosa o atormentaria, replicou sem perder o aparente bom humor, embora os olhos evidenciassem uma preocupação amargurosa:

– Caio, meu bom amigo, pelas barbas de Júpiter! Não me faças voltar ao pélago escuro do passado. Desde que chegaste, nada me disseste além de assuntos penosos e sombrios. De início, é a miséria da Judéia, de arrepiar os cabelos, com os seus quadros de desolação e ruína e, depois, eis-te voltado para o passado escabroso, como se não nos bastassem as atuais amarguras... Fala-me antes de algo que me consolide o repouso íntimo. Embora não saiba explicar o motivo, tenho o coração apreensivo quanto ao futuro. A máquina de intrigas da sociedade romana aborrece-me o espírito, que nunca encontrou ensejos de lhe fugir ao ambiente detestável. Meu regresso a Roma inquina-se de perspectivas dolorosas, embora não ouse confessá-lo!...

Fabricius ouviu-o, atento e compungido. As palavras do amigo denunciavam o profundo temor de retornar ao passado tão cheio de aventuras. Aquela atitude súplice atestava que a recordação dos tempos idos ainda lhe palpitava no peito, apesar de todos os esforços para esquecer.

Reprimindo os próprios receios, falou, então, afetuosamente:
– Pois bem, não falaremos mais nisso.
E acentuando a alegria que lhe causava aquele encontro, continuou

comovidamente:
– Então, poderia acaso esquecer-me de algo que me pedisses?
Sem mais delonga, encaminhou-se para o átrio onde os serviçais de

confiança lhe esperavam as ordens, regressando à sala acompanhado pelo desconhecido que lhe seguira a liteira, na atitude humilde de escravo.

Helvídio Lucius surpreendeu-se, ao ver a personagem interessante que lhe era apresentada.

Identificara, imediatamente, a sua condição de servo, mas o espanto lhe provinha da profunda simpatia que aquela figura lhe inspirava.

Seus traços de israelita eram iniludíveis, porém, no olhar havia uma vibração de orgulho nobre, temperado de singular humildade. Na fronte larga, notavam-se cãs precoces, se bem que o físico denunciasse a pletora de energias orgânicas da idade madura. O aspecto geral, contudo, era o de um homem profundamente desencantado da vida. No rosto, percebia-se o sinal de macerações e sofrimentos indefiníveis, impressões dolorosas, aliás compensadas pelo fulgor enérgico do olhar, transparente de serenidade.

– Eis a surpresa – frisou Caio Fabricius alegremente: – comprei, como lembrança, esta preciosidade, na feira de Terebinto, quando alguns de nossos companheiros liquidavam o espólio dos vencidos.

Helvídio Lucius parecia não ouvir, como que procurando mergulhar fundo naquela figura curiosa, ao alcance de seus olhos, e cuja simpatia lhe impressionava as fibras mais sensíveis e mais íntimas.

– Admiras-te? – insistiu Caio desejoso de ouvir as suas apreciações diretas e francas. – Quererias, porventura, que te trouxesse um Hércules formidando? Preferi lisonjear-te com um raro exemplar de sabedoria.

Helvídio agradeceu com um sinal expressivo, acercando-se do escravo silencioso, com um leve sorriso.

– Como te chamas? – perguntou solícito.
– Nestório.
– Onde nasceste? Na Grécia?
– Sim – respondeu o interpelado com um doloroso sorriso. – Como pudeste alcançar Terebinto?

– Senhor, sou de origem judia, apesar de nascido em Éfeso. Meus antepassados transportaram-se à Jônia, há alguns decénios, em virtude das guerras civis da Palestina. Criei-me nas margens do Egeu, onde mais tarde constituí família. A sorte, porém, não me foi favorável. Tendo perdido minha companheira, prematuramente, devido a grandes desgostos, em breve, sob o guante de perseguições implacáveis, fui escravizado por ilustres romanos, que me conduziram ao antigo país de meus ascendentes.

– E foi lá que a revolução te surpreendeu? – Sim.
– Onde te encontravas?
– Nas proximidades de Jerusalém.

– Falaste de tua família. Tinhas apenas mulher?
– Não, senhor. Tinha também um filho.
– Também morreu?
– Ignoro. Meu pobre filho, ainda criança, caiu, como seu pai, na dolorosa

noite do cativeiro. Apartado de mim, que o vi partir com o coração lacerado de dor e de saudade, foi vendido a poderosos mercadores do sul da Palestina.

Helvídio Lucius olhou para Fabricius, como a expressar a sua admiração pelas respostas desassombradas do desconhecido, continuando, porém, a interrogar:

– A quem servias em Jerusalém?
– A Calius Flavius.
– Conheci-o de nome. Qual o destino do teu senhor?...
– Foi dos primeiros a morrer nos choques havidos nos arredores da cidade,

entre os legionários de Tineio Rufus e os reforços judeus chegados de Betel.

– Também combateste?

– Senhor, não me cumpria combater senão pelo desempenho das obrigações devidas àquele que, conservando-me cativo aos olhos do mundo, há muito me havia restituído à liberdade, junto de seu magnânimo coração. Minhas armas deviam ser as da assistência necessária ao seu espírito leal e justo. Calius Flavius não era para mim o verdugo, mas o amigo e protetor de todos os momentos. Para meu consolo íntimo, pude provar-lhe a minha dedicação, quando lhe fechei os olhos no alento derradeiro.

– Por Júpiter! – exclamou Helvídio, dirigindo-se em alta voz ao amigo – é a primeira vez que ouço um escravo abençoar o senhor.

– Não é só isso – respondeu Caio Fabricius bem-humorado, enquanto o servo os observava ereto e digno –, Nestório é a personificação do bom-senso. Apesar dos seus laços de sangue com a Ásia Menor, sua cultura acerca do Império é das mais vastas e notáveis.

– Será possível? – tornou Helvídio admirado.
– Conhece a História Romana tão bem quanto um de nós.
– Mas chegou a viver na capital do mundo?
– Não. Ao que ele diz, somente a conhece por tradição.
Já convidado pelos dois patrícios, sentou-se o escravo para demonstrar os

seus conhecimentos.
Com desembaraço, falou das lendas encantadoras que envolviam o

nascimento da cidade famosa, entre os vales da Etrúria e as deliciosas paisagens da Campânia. Rômulo e Remo, a lembrança de Acca Larentia, o rapto das Sabinas, eram imagens que, na linguagem de um escravo, broslavam-se de novos e interessantes matizes. Em seguida, passou a explanar o extraordinário desenvolvimento econômico e político da cidade. A história de Roma não tinha segredos para o seu intelecto. Remontando à época de Tarquínio Prisco, falou de suas construções maravilhosas e gigantescas, detendo-se, em particular, na célebre rede de esgotos, a caminho das águas lodosas do Tibre. Lembrou a figura de Sérvio Túlio, dividindo a população romana em classes e centúrias. Numa Pompílio, Menênio Agripa, os Gracos, Sérgio Catilina, Cipião Nasica e todos os vultos famosos da República foram recordados na sua exposição, onde os conceitos cronológicos se alinhavam com admirável exatidão. Os deuses da cidade, os costumes, conquistas, generais intrépidos e valorosos, eram com detalhes indelevelmente gravados na sua memória. Seguindo o curso dos seus conhecimentos, rememorou o Império nos seus primórdios, salientando as suas realizações portentosas, desde o faustoso brilho da Corte de Augusto. As magnificências dos Césares, trabalhadas pela sua dialética fluente, apresentavam

novos coloridos históricos, em vista das considerações psicológicas, acerca de todas as situações políticas e sociais.

Por muito tempo falara Nestório dos seus conhecimentos do passado, quando Helvídio Lucius sinceramente surpreendido o interpelou:

– Onde conseguiste essa cultura, radicada em nossas mais remotas tradições?...

– Senhor, tenho manuseado todos os livros da educação romana, ao meu alcance, desde moço. Além disso, sem que me possa explicar a razão, a Capital do Império exerce sobre mim a mais singular de todas as seduções.

– Ora – ajuntou Caio Fabricius satisfeito –, Nestório tanto conhece um livro de Salústio, como uma página de Petrônio. Os autores gregos, igualmente, não têm segredos para ele. Considerada, porém, a sua predileção pelos motivos romanos, quero acreditar haja ele nascido ao pé de nossas portas.

O escravo sorriu levemente, enquanto Helvídio Lucius esclarecia:

– Semelhantes conhecimentos evidenciam um interesse injustificável da parte de um cativo.

E depois de uma pausa, como se estivesse arquitetando um projeto íntimo, continuou a falar, dirigindo-se ao amigo:

– Meu caro, louvo-te a lembrança. Minha grande preocupação, no momento, era obter um servo culto, que pudesse incumbir-se de enriquecer a educação de minhas filhas, auxiliando-me, simultaneamente, no arranjo dos processos do Estado, a que agora serei compelido pela força do cargo.

O anfitrião mal havia concluído o seu agradecimento, quando surgiram na sala a esposa e as filhas, num gracioso cromo familiar.

Alba Lucínia, que ainda não atingira os quarenta anos, conservava no rosto os mais belos traços da juventude, a iluminarem o seu perfil de madona. Junto das filhas, duas primaveras risonhas, seu aspecto de mocidade ganhava um todo de nobres expressões vestalinas, confundindo-se com as duas, como se lhes fora irmã mais velha, ao invés de mãe extremosa e afável.

Helvídia e Célia, porém, embora a semelhança profunda dos traços fisionômicos, deixavam transparecer, espontaneamente, a diversidade de temperamentos e pendores espirituais. A primeira entremostrava nos olhos uma inquietação própria da idade, indiciando os sonhos febricitantes que lhe povoavam a alma, ao passo que a segunda trazia no olhar uma reflexão serena e profunda, como se o espírito de mocidade houvera envelhecido prematuramente.

Todas as três exibiam, graciosamente, os delicados enfeites do “peplum” em sua feição doméstica, presos os cabelos em preciosas redes de ouro, ao mesmo tempo que ofereciam a Caio Fabricius um sorriso de acolhimento.

– Ainda bem – murmurou o hóspede com vivacidade própria do seu gênio expansivo, avançando para a dona da casa –, o meu grande Helvídio encontrou o altar das Três Graças, entronizando-as egoisticamente no lar. Aliás, aqui estamos nas plagas do Egeu, berço de todas as divindades!...

Suas saudações foram recebidas com geral agrado.

Não somente Alba Lucínia, mas também as filhas se regozijavam com a presença do carinhoso amigo da família, de muitos anos.

Em breve, todo o grupo se animava em palestra amena e sadia. Era o burburinho das notícias de Roma, de mistura com as impressões da Iduméia e de outras regiões da Palestina, onde Helvídio Lucius estagiara junto da família, enfileirando-se as opiniões encantadoras e íntimas, acerca dos pequeninos nadas de cada dia.

Em dado instante, o dono da casa chamou a atenção da esposa para a figura de Nestório, encolhido a um canto da sala, acrescentando entusiasticamente:

– Lucínia, eis o régio presente que Caio nos trouxe de Terebinto.
– Um escravo?!... – perguntou a senhora com entonação de piedade.
– Sim. Um escravo precioso. Sua capacidade mnemônica é um dos

fenômenos mais interessantes que tenho observado em toda a vida. Imagina que tem dentro do cérebro a longa história de Roma, sem omitir o mais ligeiro detalhe. Conhece nossas tradições e costumes familiares como se houvera nascido no Palatino. Desejo sinceramente toma-lo a meu serviço particular, utilizando-o ao mesmo tempo no apuro da instrução de nossas filhas.

Alba Lucínia fitou o desconhecido tomada de surpresa e simpatia. Por sua vez, as duas jovens o contemplavam admiradas.

Saindo, contudo, da sua estupefação, a nobre matrona ponderou refletidamente:

– Helvídio, sempre considerei a missão doméstica como das mais delicadas de nossa vida. Se esse homem deu provas dos seus conhecimentos, tê-las-ia dado também de suas virtudes para que venhamos a utilizá-lo, confiadamente, na educação de nossas filhas?

O marido sentiu-se embaraçado para responder à pergunta tão sensata e oportuna, mas, em seu auxílio veio a palavra firme de Caio, que esclareceu:

– Eu vo-la dou, minha senhora: se Helvídio pode abonar-lhe a sabedoria, posso eu testificar as suas nobres qualidades morais.

Alba Lucínia pareceu meditar por momentos, acrescentando, afinal, com um sorriso satisfeito:

– Está bem, aceitaremos a garantia da sua palavra.

Em seguida, a graciosa dama fitou Nestório com caridade e brandura, compreendendo que, se o seu doloroso aspecto era, incontestavelmente, o de um escravo, os olhos revelavam uma serenidade superior, saturada de estranha firmeza.

Depois de um minuto de observação acurada e silenciosa, voltou-se para o marido dizendo-lhe algumas palavras em voz quase imperceptível, como se pleiteasse a sua aprovação, antes de dar cumprimento a algum de seus desejos. Helvídio, por sua vez, sorriu ligeiramente, dando um sinal de aquiescência com a cabeça.

Voltando-se, então, para os demais, a nobre senhora falou comovidamente:

– Caio Fabricius, eu e meu marido resolvemos que nossas filhas venham a utilizar a cooperação intelectual de um homem livre.

E, tomando de minúscula varinha que descansava no bojo de um jarrão oriental, a um canto da sala, tocou levemente a fronte do escravo, obedecendo às cerimônias familiares, com as quais o senhor libertava os cativos na Roma Imperial, exclamando:

– Nestório, nossa casa te declara livre para sempre!...

Filhas – continuou a dizer sensibilizada, dirigindo-se às duas jovens –, nunca humilheis a liberdade deste homem, que terá toda a independência para cumprir os seus deveres!...

Caio e Helvídio entreolharam-se satisfeitos. Enquanto Helvídia cumprimentava de longe o liberto, com um leve aceno de cabeça, altiva, Célia aproximou-se do alforriado, que tinha os olhos úmidos de lágrimas e estendeu-lhe a mão aristocrática e delicada, numa saudação sincera e carinhosa. Seus olhos encontraram o olhar do ex-escravo, numa onda de afeto e atração indefiníveis. O liberto, visivelmente emocionado, inclinou-se e beijou reverentemente a mão generosa que a jovem patrícia lhe oferecia.

A cena comovedora perdurava por momentos, quando, com surpresa geral, Nestório se levantou do recanto em que se achava e, caminhando até o centro da sala, ajoelhou-se ante os seus benfeitores, osculando humildemente os pés de Alba Lucínia.


Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

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João 4:1

E QUANDO o Senhor entendeu que os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que João

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Mateus 6:9

Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;

mt 6:9
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