Cinquenta Anos Depois

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Capítulo IV

De Minturnes a Alexandria

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Enquanto a vida familiar de Fábio Cornélio transcorria, na cidade imperial, sem acidentes dignos de menção, sigamos a filha de Helvídio Lúcius na sua via dolorosa.

Levantando-se pela manhã, Célia alcançou a povoação de Fondi,  em cujas cercanias uma criatura generosa acolheu-a por um dia, com ternura e bondade. Foi o bastante para se reconfortar das caminhadas ásperas e longas, porque, no dia seguinte, punha-se novamente a caminho em direção de Itri,  a antiga “Urbs Mamurrárum”, aproveitando o mesmo traçado da Via Ápia. 

Em caminho, teve a satisfação de encontrar a carreta de Gregório, o mesmo carreiro humilde que a deixara, na antevéspera, nas montanhas de Terracina,  circunstância que lhe trouxe ao coração muita alegria. Nas dificuldades e dores do mundo, a fraternidade tem elos profundos, jamais facultados pelos gozos mundanos, sempre fugazes e transitórios.

Gregório ofereceu-lhe o mesmo lugar ao seu lado, num gesto de proteção que a jovem aceitou, considerando-o uma bênção do Alto.

 

Desta vez, reconheceram-se como dois bons amigos de outros tempos. Falaram da paisagem e dos pequenos acidentes da viagem, rematando Gregório com uma pergunta cheia de interesse:

— Tem a senhora outros parentes além de Fondi? Não me pareceu pequeno o sacrifício em aventurar-se a uma jornada tão longa como a de anteontem… Como consentiram prosseguisse outra viagem a pé?

— Sim, meu amigo — respondeu buscando desviar a sua afetuosa curiosidade — meus parentes de Fondi são paupérrimos e não desejo voltar a Roma sem rever um tio enfermo, que reside em Minturnes. 

— Ainda bem — murmurou o generoso plebeu, satisfeito com a resposta — sendo assim, poderei levá-la hoje até o fim da sua jornada, pois vou além das lagoas da cidade.

 

A marcha continuou entre as gentilezas de Gregório e os agradecimentos de Célia, que lhe apreciava a bondade, comovida.

Somente ao cair da tarde o veículo atingiu os arredores da cidade famosa.

Despedindo-se do carinhoso companheiro, a jovem cristã atentou na paisagem soberba que se desdobrava aos seus olhos. Uma formosa vegetação litorânea repontava dos terrenos alagadiços, num dilúvio de flores. A primeira porta da cidade estava a alguns metros, e, todavia, o seu amor pela Natureza fê-la estacionar junto das grandes árvores do caminho. O sol, em declínio, enviava à tela florida os seus raios agonizantes. Dominada por grandiosos pensamentos e experimentando um novo alento de vida, com a palavra de verdade e de consolação que , dos confins do túmulo; começou a orar, agradecendo a Jesus as suas graças sublimes e infinitas.

No seu caricioso embevecimento, contemplou a figurinha mimosa que se agitava em seus braços e beijou-lhe a fronte num arroubo de espiritualidade.

 

Na véspera, haviam recebido a hospitalidade da Natureza, mas, agora, ante as fileiras de casebres ali próximos da estrada, consultava a si mesma sobre o melhor meio de recorrer à piedade alheia, contando, porém, como das outras vezes, com o amparo de Jesus, que lhe forneceria a inspiração mais acertada, por intermédio dos seus lúcidos mensageiros.

Foi então que reparou numa choupana rodeada de laranjeiras, onde a vida parecia ser a mais simples e mais solitária. Seu aspecto singelo emergia do arvoredo a duzentos metros do local em que se encontrava, mas, como que atraída por algum detalhe que não poderia definir, Célia alcançou a trilha e bateu à porta. Brilhavam no céu as primeiras estrelas.

Depois de muito chamar, sentiu que alguém se aproximava com dificuldade, para dar voltas ao ferrolho.

E não tardou tivesse diante dos olhos surpresos uma figura patriarcal e veneranda, que a acolheu com solicitude e simpatia.

 

Era um velho de cabelos e barbas completamente encanecidos. As cãs prateadas realçavam-lhe os nobres traços romanos, irrepreensíveis. Aparentava mais de setenta anos, mas o olhar estava cheio de ternura e de vida, como se os seus raciocínios estivessem em plenitude de maturidade. Estendendo-lhe as mãos encarquilhadas e trêmulas, Célia notou pequena cruz a pender-lhe do peito, fora da toga descolorida e surrada.

Grandemente emocionada e compreendendo que se encontrava à frente de um velho cristão, murmurou humilde:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo!

— Para sempre, minha filha! — respondeu o ancião, esboçando num sorriso o júbilo que aquela saudação lhe causava — Entrai na choupana do mísero servo do Senhor e disponde dele, vosso servo, igualmente.

 

A filha de Helvídio Lúcius explicou, então, que se encontrava no mundo ao desamparo, com um filhinho de poucos dias, abençoando a hora feliz de bater à porta de um cristão, que, desde aquele instante, passaria a encarar como um mestre. Desde logo, estabeleceu-se entre ambos uma cordialidade e um afeto mútuos, tão expressivos, tão puros, que pareciam radicados na Eternidade.

Ouvindo-lhe a história, o ancião de Minturnes falou-lhe com brandura e sinceridade:

— Depois de examinar a tua situação, minha filha, hás de permitir te assista como um pai ou irmão mais velho, na fé e na experiência. É que, também, tive uma filha, perdida há pouco tempo, justamente quando vinha buscá-la para acompanhar-me no meu voluntário e bendito degredo na África… Parecia-se extraordinariamente contigo e terei grande ventura se me olhares com a mesma simpatia que me inspiraste. Ficarás nesta casa o tempo que quiseres, ou necessitares… Vivo só, após uma existência fértil de prazeres e de amarguras… Antigamente, a afeição de uma filha ainda me prendia o coração a cogitações mundanas, mas agora, vivo somente da minha fé em Jesus-Cristo, esperando que a sua palavra de misericórdia me chame breve ao seu reino, para a verificação da minha indigência!

 

Sua voz entrecortava-se de suspiros, como se os mais atrozes padecimentos íntimos lhe azorragassem o coração, ao evocar reminiscências.

— Há mais de um ano — continuou — aguardo oportunidade para regressar a Alexandria,  mas o deperecimento físico parece advertir-me que em breve serei forçado a entregar o corpo à terra da Campânia,  mau grado ao desejo de morrer no pouso solitário a que transportei o meu espírito…

Enquanto ele fazia uma pausa, a jovem aventou despreocupadamente:

— Sois romano, presumo, pelos traços inconfundíveis da vossa fisionomia patrícia.

Fitando-a bem nos olhos, como se quisesse certificar-se de toda a pureza e simplicidade d’alma da sua interlocutora, o ancião respondeu pausadamente:

— Filha, tua condição de cristã e a candidez que se irradia de tua alma obrigam-me a maior sinceridade para contigo!…

Nesta cidade ninguém me conhece, tal como sou!… Desde o dia em que me consagrei à instituição cristã, da qual participo no Egito longínquo, chamo-me Marinho para todos os efeitos. Dentro da nossa comunidade de homens sinceros e crentes, desprendidos dos bens materiais, fizemos voto solene de renúncia a todas as regalias efêmeras da Terra, a todas as suas alegrias, de modo a nos unirmos ao Senhor e Mestre com a compreensão clara e profunda da sua doutrina. Enquanto os déspotas do Império tramam a morte do Cristianismo, supondo aniquilá-lo com o suplício dos adeptos, fora de Roma organizam-se as forças poderosas que hão de agir no futuro, em defesa das ideias sagradas! Em todas as Províncias da Ásia  e da África  os cristãos se articulam em sociedades pacíficas e laboriosas, e guardam os escritos preciosos dos Discípulos do Senhor e dos seus seguidores abnegados, protegendo o tesouro dos crentes para uma posteridade mais piedosa e mais feliz!…”

 

Enquanto Célia o escutava com carinhoso interesse, o ancião de Minturnes continuava, depois de uma pausa, como que preparando o próprio pensamento para maior clareza das suas recordações.

— A outrem, filha, não poderia confiar o que te revelo esta noite, levado por um impulso do coração… Talvez meu espírito esteja acercando-se do sepulcro e o Mestre Amado queira advertir, indiretamente, a alma culpada e dolorida. Há qualquer coisa que me compele a confessar-te o passado com as suas inquietudes e incertezas… Não poderia explicar-te o que seja… Sei, apenas, que a inocência do teu olhar de cristã, de filha piedosa e meiga, faz nascer-me no peito exausto os bens divinos da confiança!…

 

Meu verdadeiro nome é Lésio Munácio, filho de antigos guerreiros, cujos ascendentes se notabilizaram nos feitos da República… Minha mocidade foi uma esteira longa de crimes e desvios, aos quais se entregou o meu espírito frágil, visto o desconhecimento do ensino de Jesus… Não trepidei, noutros tempos, em brandir a espada homicida, disseminando a ruína e a morte entre os seres mais humildes e desprezados… Auxiliei a perseguição aos núcleos do Cristianismo nascente, levando mulheres indefesas ao martírio e à morte, nos dias das festas execráveis!… Ai de mim, porém!… Mal sabia que um dia ecoaria em meu íntimo a mesma voz divina e profunda que soou para Paulo de Tarso a caminho de Damasco! (At 9:1) Depois dessa vida aventurosa, casei-me tarde, quando as flores da juventude já se despetalavam no outono da vida! Antes não o fizesse!… Para conquistar o afeto da companheira, fui compelido a gastar o impossível, lançando mão de todos os recursos! Sem preparação espiritual, construí o lar sobre a indigência mais triste! Em pouco tempo, uma filhinha graciosa vinha iluminar o âmago escuro das minhas reflexões sobre o destino, mas, atormentado pelas necessidades mais duras afim de mantermos em Roma o nosso padrão de vida social, senti que a pobre esposa, tomada de ilusões, não beberia comigo o cálice da pobreza e da amargura! Com efeito, em breve o meu lar estava ultrajado e deserto!…

 

O questor Flávio Hílas, abusando da amizade e da confiança que lhe dispensava, seduziu minha mulher, desviando-a ostensivamente do santuário doméstico, para escárnio de minhas esperanças e de meus sofrimentos… Desejei sucumbir para furtar-me à vergonha, mas o apego à filhinha me advertia que esse gesto extremo significava apenas covardia… Pensei, então, em procurar Flávio Hílas e a esposa infiel, para trucidá-los sumariamente com um golpe de espada, mas; quando buscava realizar o sinistro intento, encontrei um velho mendigo junto ao templo de , que me estendeu a destra dilacerada, não para implorar esmola, mas, para dar-me um fragmento de pergaminho que tomei sôfrego, como se recebesse secreta mensagem de um amigo. Depois de alguns passos, reconheci com assombro que ali se achavam grafados alguns pensamentos de Jesus-Cristo e que, depois, vim a saber serem os do Lc 6:20

Junto a esse hino dos bem-aventurados, estava a participação de que alguns amigos do Senhor se reuniriam junto dos velhos muros da Via Salária,  naquela noite!… Retrocedi para colher informes do mendigo, não o encontrei, porém, nem pude jamais obter notícias dele.

 

Aqueles ensinamentos do Profeta Galileu encheram-me o coração… Parece que somente nas grandes dores pode a alma humana sentir a grandeza das teorias do amor e da bondade… Voltei a casa sem cumprir os malsinados propósitos, e, considerando a inocência de minha filha, cujos carinhos infantis me concitavam a viver, fui à assembleia cristã onde tive a felicidade de ouvir pregadores valorosos das verdades divinas.

Lá se congregavam homens sofredores e humilhados, entre os quais alguns conhecidos meus, que as fúrias políticas haviam atirado ao sofrimento e ao ostracismo… Criaturas humildes ouviam a Boa-Nova, de mistura com elementos do patriciado, que as circunstâncias da sorte haviam conduzido à adversidade… Para todos a palavra de Jesus constituía um consolo suave e uma energia misteriosa… Em todos, os semblantes, à claridade triste das tochas, surgia uma expressão de vida nova, que se comunicou ao meu espírito cansado e dolorido… Naquela noite regressei a casa como se houvera renascido para enfrentar a vida!

 

No dia seguinte, porém, quando menos o esperava na quietação de minha alma, eis que um pelotão de soldados me cercava a residência e conduzia-me ao cárcere, sob a mais injusta acusação… É que naquela noite o inditoso Flávio Hílas fora apunhalado em misteriosas circunstâncias. Diante do seu cadáver, minha própria mulher jurou fora eu o assassino. Arguida a calúnia, busquei interpor minhas relações de amizade para recuperar a liberdade e poder cuidar da pobre filha recolhida, então, por mãos generosas e humildes do Esquilino,  mas os amigos responderam-me que só o dinheiro poderia movimentar, a meu favor, os aparelhos judiciários do Império, e eu já não o possuía…

Abandonado no cárcere, impossibilitado de justificar-me, visto haver comparecido à assembleia cristã naquela noite, preferi silenciar a comprometer os que me haviam proporcionado consolação ao espírito abatido… Espezinhado nos meus sentimentos mais sagrados, esperei as decisões da justiça imperial, tomado de indefinível angústia. Afinal, dois centuriões foram notificar-me a sentença iníqua. As autoridades, considerando a extensão do crime, cassavam-me todos os títulos e prerrogativas do patriciado, condenando-me à morte, visto o questor assassinado ter sido homem da confiança de César… Recebi a sentença quase sem surpresa, embora desejasse viver para servir àquele Jesus, cujos ensinos grandiosos haviam sido a minha luz nas sombras espessas do cárcere e cumprir, igualmente, os deveres paternais para com a filhinha abandonada pela ternura materna…

 

Esperei a morte com o pensamento em prece, mas, a esse tempo, existia em Roma um homem justo, pouco mais moço que eu, cujo pai fora camarada de infância do meu genitor. Esse homem conhecia o meu caráter defeituoso, mas leal. Chamava-se Cneio Lúcius e foi pessoalmente a Trajano  advogar a causa da minha liberdade. Afrontando as iras de Augusto, não trepidou em lhe solicitar clemência para o meu caso e conseguiu que o Imperador comutasse a pena para o banimento da Corte, com a supressão de todas as regalias que o nome me outorgava…

Enquanto o ancião fazia uma pausa, a jovem começou a chorar, comovidamente, em face da alusão ao avô, cuja lembrança lhe enchia o íntimo de vivas saudades.

— Uma vez livre — prosseguiu o velho de Minturnes — aproximei-me de antigos companheiros que comigo haviam provado do mesmo cálice com as perseguições de ordem política e que já partilhassem da mesma fé em Jesus-Cristo… Banidos de Roma e humilhados, dirigimo-nos à África, onde fundamos um pouso solitário, não longe de Alexandria, a fim de cultivarmos o estudo dos textos sagrados e conservar, simultaneamente, os tesouros espirituais dos apóstolos.

 

Deixando a Capital do Império, confiei minha única filha a um casal amigo, cuja pobreza material não lhe deslustrava os sentimentos nobres. Provendo o futuro da filhinha com todos os recursos ao meu alcance, parti para o Egito cheio de novos ideais, à luz da nova crença! Nas severas meditações e austeros exercícios espirituais a que me submeti, cheguei a olvidar as grandes lutas e penosas amarguras do meu  destino!…

O descanso da mente em Jesus aliviou-me de todos os pesares. O único elo que ainda me prendia à Península era justamente a filha, então já moça, e cuja afetividade desejava transportar para junto de mim, na África longínqua… Depois de vinte anos no seio da nossa comunidade; em preces e meditações proveitosas, solicitei do nosso diretor espiritual a necessária permissão para recolher um familiar ao nosso retiro. Referi-me a um familiar, pois desejava convencer minha pobre Lésia de que deveria partir em minha companhia, em trajes masculinos, considerando o ensino de Jesus de que existem no mundo os que se fazem eunucos por amor a Deus…

 

Os estatutos da comunidade não permitem mulheres junto de nós outros, por decisão de Aufídio Prisco, ali venerado como chefe, sob o nome de Epifânio… Não era meu propósito menosprezar as leis da nossa ordem e sim arrebatar a filha ao ambiente de seduções desta época de decadência em que as intenções mais sagradas são colhidas pelos lobos da vaidade e da ambição, que ululam no caminho… Desejaria conservá-la, junto de mim, no mais santo dos anonimatos, até que conseguisse modificar as disposições de Epifânio, acerca dos regulamentos da nossa ordem, atentas as circunstâncias especiais da minha vida!…

Obtendo a necessária permissão para vir à Península, aqui aportei há quase dois anos, experimentando a angústia de reencontrar minha Lésia nos derradeiros instantes de vida… Descrever-te meu sofrimento com a separação da filha querida, depois de ausente tantos anos e de haver acariciado tão grandes esperanças, é tarefa superior às minhas forças… Acompanhei-lhe os despojos ao sepulcro, para onde mandei transportar, pouco depois, os dos carinhosos amigos que lhe haviam servido de pais, também vitimados pela peste, que, há tempos, flagelou toda a população de Minturnes!…

 

Ai de mim, que não mereci senão angústias e tormentos, nas estradas ásperas da existência, em vista dos meus crimes inomináveis na juventude!…

Resta-me, contudo, a esperança no amor do Cordeiro de Deus, cuja misericórdia veio a este mundo nos arrebatar da humilhação e do pecado…

Avizinhando-me do túmulo, rogo ao Senhor que me não desampare… Além do sepulcro, sinto que esplende a luz dos seus ensinamentos, num Reino de paz misericordiosa e compassiva! Certamente, lá me esperam a filha idolatrada e os amigos inesquecíveis. A terra florescente da Campânia, pressinto-o, guardará em breve o meu corpo combalido; mas, além das forças exaustas da vida material, espero encontrar a verdade consoladora da nossa sobrevivência! Receberei de boa vontade o julgamento mais severo, do meu passado delituoso, e, renunciando a todos os sentimentos pessoais, hei de aceitar plenamente os desígnios de Jesus na sua Justiça equânime e misericordiosa!…

O ancião de Minturnes falava comovido, com o olhar lúcido, fixo no Alto, como se estivesse diante de um plenário celeste, com a serenidade da sua fé robusta e ardente.

 

Mas, chegando ao termo das confidências dolorosas, observou que Célia tinha os olhos rasos de lágrimas, a ponto de não poder falar de pronto, tal a comoção que lhe estrangulava a voz no imo do peito dolorido.

— Porque choras minha filha — ajuntou com brandura — se a minha pobre história de velho não te pode interessar diretamente o coração?

A filha de Helvídio não respondeu, dominada pela emoção do momento, mas o ancião continuava, surpreso e melancólico:

— Acaso terás também uma história amargurada quanto à minha? Apesar da fé ardente que pressinto em teu espírito, não se justifica tamanha sensibilidade espiritual na tua idade. Dize, filha, se tens o coração igualmente tocado por uma úlcera dolorosa… Se as dores te pesam na alma desiludida, recorda a palavra do Mestre quando exortava em Cafarnaum: — “Vinde a mim todos vós que trazeis no íntimo os tormentos do mundo e eu vos aliviarei!…” (Mt 11:28) É verdade que não estás à frente do Messias de Deus, mas, ainda aqui, deveremos lembrar a lição de Jesus, aceitando o carinho do Cireneu que o ajudou a carregar a cruz!… Ele que era a personificação de toda a energia do amor, não hesitou em aceitar o amparo de um filho humilde do infortúnio… Também eu sou um mísero pecador, filho das provações mais ásperas e espinhosas; mas, se puderes, lê em meu coração e verás que no meu íntimo palpita, por ti, a afetividade de um pai. Tua presença desperta-me inexplicável e misteriosa simpatia… Confiei ao teu espírito o que daria somente à filhinha adorada, que me precedeu nas sombras do túmulo. Se te sentes sobrecarregada dos pesares do mundo, dize-me algo de tuas dores. Repartirás comigo os teus sofrimentos e a cruz das provas te parecerá mais leve!…

 

Ouvindo aquelas exortações carinhosas e espontâneas, que não mais ouvira desde a morte do avô, cujo nome fora ali pronunciado pelo ancião de Minturnes, como um ponto de referência à sua confiança, Célia, depois de acomodar o pequenino adormecido, sentou-se ao lado do seu benfeitor, com a intimidade de quem o conhecesse de muito tempo, e, com a voz entrecortada de reticências da sua emoção profunda, começou a falar:

— Se me tendes chamado filha, permitireis vos beije as mãos generosas, chamando-vos pai, pelas afinidades mais santas do coração.

Acabastes de invocar um nome que me obriga a chorar de emoção, no tumulto de recordações também amargas e dolorosas… Confiarei em vós, qual o fiz sempre ao carinhoso avô, que relembrastes agradecido. Também eu venho de Roma, pelos mesmos caminhos ásperos de amargor e sacrifício. Reconhecida à vossa confiança, revelarei igualmente o meu romance infortunado, quando a mocidade parecia sorrir-me em plena floração primaveril.

 

Abandonada e só, receberei, por certo, da vossa experiência nas estradas da vida o bom conselho que me habilite a fixar-me em qualquer parte, afim de cumprir a missão de mãe, junto deste pobre inocentinho! Desde Roma, venho experimentando a mais atroz necessidade de me comunicar com um coração afetuoso e amigo, que me possa orientar e esclarecer. Nas minhas caminhadas encontrei por toda parte homens impiedosos, que me envolviam com olhares de corrupção e voluptuosidade… Alguns chegaram a insultar minha castidade, mas roguei insistentemente a Jesus a oportunidade de encontrar um espírito benfazejo e cristão, que me fortalecesse!…

Sentindo-se tomada de inexplicável confiança, enquanto o velhinho de Minturnes a ouvia surpreso embora a imensa serenidade que lhe transparecia do olhar, a filha de Helvídio Lúcius começou a desfiar o seu romance, cheio de lances intensos e comovedores. Confessando-se neta do magnânimo Cneio, o que sensibilizou profundamente o interlocutor, narrou-lhe todos os episódios da sua vida, desde as primeiras contrariedades de menina e moça, na Palestina,  e terminando a longa narrativa com a visão do avô na noite precedente, quando forçada a pernoitar na gruta de Tibério. 

Ao concluir, tinha os olhos inchados de chorar, como alguém que muito se demorara em alijar do coração o peso da amargura.

 

O ancião alisava-lhe os cabelos comovidamente, como se o fizesse a uma filha, após longa ausência repleta de saudades angustiosas, exclamando por fim:

— Minha filha, propondo-me confortar-te, é teu próprio coração de menina, nos mais belos exemplos de sacrifício e coragem que me consola!… Para mim, que, muitas vezes, agasalhei o mal e extraviei-me no crime, os sofrimentos da Terra significam a justiça dos destinos humanos; mas, para o teu espírito carinhoso e bom, as provações terrestres constituem um heroísmo do Céu… Deus te abençoe o coração fustigado pelas tempestades do mundo, antes das florações da primavera. Das alegrias do Reino de Jesus, Cneio Lúcius deverá regozijar-se no Senhor pelos teus heroicos feitos… Sinto que a sua alma, enobrecida na prática do bem e da virtude, segue-te os passos como sentinela fidelíssima!…

 

Depois de longa pausa, em que Marinho pareceu meditar no futuro da graciosa companheira, disse paternalmente:

— Enquanto narravas teus padecimentos íntimos, considerava eu a melhor maneira de ajudar-te neste meu ocaso da vida! Compreendo a tua situação de jovem abandonada e só, no mundo, com o pesado encargo de cuidar de uma criancinha acolhida em tão estranhas circunstâncias. Aconselhar que voltes ao lar, não o posso fazer, conhecendo a rigidez dos costumes em determinadas famílias do patriciado. Além disso, a casa paterna considera-te morta para sempre, e a palavra carinhosa de Cneio Lúcius só poderia ter valor inestimável para nós, que lhe compreendemos o alcance e a sublime revelação. Ante os seus conceitos, temos de admitir a plena inocência de tua mãe, mas, se regressares a Roma, a aparição desta noite não bastaria para elucidar todos os problemas da situação, mantendo-se as mesmas características de suspeição a teu respeito. E tu sabes que entre a dúvida e a verdade é sempre melhor o sacrifício, pois a verdade é de Jesus e vencerá tão logo a sua misericórdia julgue a vitória oportuna.

 

Velho conhecedor dos nossos tempos de decadência e desmantelos morais, sei que, ante a tua juventude, quase todos os homens moços, cheios de materialidade, se curvarão com ignominiosas propostas. A destruição do meu lar será sempre um atestado vivo da misérias morais da nossa época.

Ponderando as tuas dificuldades, desejo salvar-te o coração de todos os perigos, evitando-te as ciladas dos caminhos insidiosos; entretanto, a enfermidade e a decrepitude não me possibilitam mais a tua defesa… Em Minturnes, quase todos me odeiam gratuitamente, em virtude das ideias que professo. Um cristão sincero, por muito tempo ainda, terá de sofrer a incompreensão e a tortura dos algozes do mundo, e somente não me levam ao sacrifício, nas festas regionais que aqui se efetuam, atenta a minha velhice avançada e dolorosa, de rugas e cicatrizes… Apresentar um velho mísero às feras potentes ou ao exercício dos atletas da devassidão e da impiedade, poderia parecer entranhada covardia, razão pela qual me julgo poupado.

Não possuo, pois, nenhuma relação de amizade que te possa valer neste transe.

 

Lembra-te que, ainda agora, falei-te do meu antigo projeto de levar a filha ao Egito, em trajes masculinos, de modo a arrebatá-la deste antro de corrupção e impenitência. Esse gesto de um pai é bem de um coração amoroso, em franco desespero, quanto ao porvir espiritual desta região da iniquidade.

Contemplando a tua inerme juventude carregada de tão nobres sacrifícios, receio pelos teus dias futuros, mas rogo a Jesus que nos esclareça o pensamento!

Após alguns minutos de recolhimento, a jovem retrucou:

— Mas, meu desvelado amigo, não me considerais como vossa própria filha?…

 

O ancião de Minturnes, no clarão sereno dos grandes olhos, deixou transparecer que entendera a alusão e revidou bondosamente:

— Compreendo, filha, o alcance de tuas palavras, mas, estarás sinceramente decidida a mais esse nobre sacrifício?

— Como não, se em torno de mim surgem as mais temerosas perseguições?

— Sim, tuas ações nobilíssimas dão-me a entender que devo confiar nas tuas resoluções. Pois bem; se teu espírito se sente disposto à luta pelo Evangelho, não vacilemos em preparar-te as estradas porvindouras! Ficarás nesta casa pelo tempo que desejares, se bem esteja convicto de que não tardará muito a minha viagem para o Além. Amanhã mesmo entrarás nos teus novos trajes, afim de facilitar a tua ida para a África no momento oportuno. Serás meu filho aos olhos do mundo, para todos os efeitos. Chamarei amanhã a esta casa o pretor de Minturnes, afim de que ele cuide da tua situação legal, caso eu venha a falecer. Tenho o dinheiro necessário para que te transportes a Alexandria e, antes de morrer, deixar-te-ei uma carta apresentando-te a Epifânio, como meu sucessor legítimo na sede da nossa comunidade. Lá tendo empregadas todas as derradeiras economias que consegui retirar de Roma nos tempos idos, é possível que não te criem embaraços para que te entregues a uma vida de repouso espiritual na prece e na meditação, durante os anos que quiseres.

 

Epifânio é um espírito enérgico e algo dogmático em suas concepções religiosas, mas tem sido meu amigo e meu irmão por largos anos, durante os quais as mesmas aspirações nos uniram nesta vida. Às vezes, costuma ser ríspido nas suas decisões, caracterizando tendências para o sacerdócio organizado, que o Cristianismo deve evitar com todas as suas forças, para não prejudicar o messianismo dos apóstolos do Senhor; mas, se algum dia fores ferida por suas austeras resoluções de chefe, lembra-te que a humildade é o maior tesouro da alma, como chave-mestra de todas as virtudes e recorda a suprema lição de Jesus nos braços do madeiro!… Em todas as situações, a humildade pode entrar como elemento básico de solução para todos os problemas!…

Sim, meu amigo, sinto-me abandonada e só no mundo e temo o assédio dos homens pervertidos! Jesus me perdoará a decisão de adotar outros trajes aos olhos dos nossos irmãos da Terra, mas, na sua bondade infinita, sabe ele das necessidades prementes que me compelem a tomar essa insólita atitude. Além do mais, prometo, em nome de Deus, honrar a túnica que vestirei, possivelmente, em Alexandria, a serviço do Evangelho… Levarei comigo o filhinho que o Céu me concedeu, e suplicarei a Epifânio me permita velar por ele sob o céu africano, com as bênçãos de Jesus!

— Que o Mestre te abençoe os bons propósitos, filha!… Respondeu o ancião com uma expressão de júbilo sereno.

 

Ambos se sentiam dominados por intensa alegria íntima, como se fossem duas almas profundamente irmanadas de outros tempos, num reencontro feliz, depois de prolongada ausência.

Já os galos de Minturnes saudavam os primeiros clarões da madrugada. Beijando as mãos do velho benfeitor, com os olhos rasos de lágrimas, a jovem patrícia buscou, desta vez, o repouso noturno com a alma satisfeita, sem as angustiosas preocupações do dia seguinte, agradecendo a Jesus com a oração do seu amor e do seu reconhecimento.

No outro dia, a gente pobre daquele arrabalde de Minturnes ficou sabendo que um filho do ancião chegara de Roma para assistir-lhe os dias derradeiros.

Aproveitando os trajes antigos, que o seu benfeitor lhe apresentava para resolver a situação, Célia não hesitou em tomar o novo indumento, por fugir à perseguição irreverente de quantos poderiam abusar da sua fragilidade feminina.

 

O velho Marinho apresentava-a aos raros vizinhos que se interessavam pela sua saúde, como sendo um filho muito caro, e explicando que enviuvara recentemente, trazendo o netinho para iluminar as sombras da sua desolada velhice.

A filha dos patrícios, travestida agora pela força das circunstâncias num garboso rapaz imberbe, ocupava-se carinhosamente de todos os serviços domésticos, buscando servir ao ancião generoso com a mais desvelada solicitude.

Um fato, porém, veio impressionar amargamente o coração sensível de Célia. Fosse pelo trato deficiente que recebera até ali, ou pelas provações suportadas em tantas milhas de caminho, o pequenito começou a definhar, apresentando em breve todos os sintomas de morte inevitável.

Debalde o ancião empregou todos os recursos ao seu alcance, para assegurar a vida bruxuleante do inocentinho.

Tocada nas fibras mais sensíveis do seu coração, em virtude das revelações do avô, quanto à personalidade de Ciro, a jovem sentiu no íntimo dorido a repercussão dilatada de todos os padecimentos físicos do pequenino. Desejava amparar-lhe a existência com todas as energias do seu espírito dilacerado, operar um milagre com todas as suas forças afetuosas para arrebatá-lo às garras da morte, mas, em vão misturou lágrimas e preces nos seus arrebatamentos emotivos.

 

Contemplando-lhe a agonia, a criança parecia falar-lhe à alma carinhosa e sensível, com o olhar cintilante e profundo, no qual predominavam as expressões de uma dor estranha e indefinível.

Por fim, após uma noite de insônia dolorosa, Célia rogou a Jesus fizesse cessar, na sua misericórdia aquele quadro de intensa amargura. Cheia de fé, rogava ao Cordeiro de Deus que reconduzisse o seu bem-amado ao Plano espiritual, se esses eram os seus desígnios inescrutáveis. Ela que tanto o amava e tanto se havia sacrificado para conservar-lhe a luz da vida, estaria conformada com as decisões do Alto, como no dia em que o vira marchar para o sacrifício, exposto à perversidade dos homens impiedosos.

Como se fora ouvida a sua rogativa dolorosa, cheia de lágrimas de fé e esperança na bondade do Senhor, o inocentinho fechou os olhos da carne, para sempre, ao desabrochar da alvorada, como se o seu coração fosse uma andorinha celeste que, receosa das invernias do mundo, remontasse célere ao Paraíso.

 

Sobre o corpinho enrijecido, a filha de Helvídio carpiu a sua dor intraduzível, com lágrimas ardentes, experimentando a amargura das suas esperanças desfeitas e dos seus sonhos maternos desmoronados…

Todavia, a palavra sábia e evangélica do ancião de Minturnes ali estava para reergue-la de todos os abatimentos e, depois da hora angustiada da separação, ela buscou entronizar a saudade no santuário de suas preces humildes e fervorosas.

Sim, seu coração carinhoso sabia que Jesus não desampara, nunca, o espírito das ovelhas tresmalhadas nos abismos do mundo e, refugiando-se na oração, esperou que viessem do Alto todos os recursos espirituais necessários ao seu reconforto. Os vizinhos humildes impressionavam-se, sobremaneira, com aquele rapaz, de cujo semblante delicado irradiava-se uma terna simpatia, de mistura à tristeza inalterável, que tocava a sua personalidade de singulares encantos.

 

Uma noite serena, quando a alma cariciosa da Natureza se havia plenamente aquietado, Célia recolheu-se depois do serão habitual com o generoso velhinho, que lhe era como um pai devotado pelo coração, sentindo que força estranha lhe adormentava o cérebro exausto e dolorido.

Dentro em pouco, sem se dar conta da surpresa e aturdimento, viu-se diante de Ciro, que lhe estendia as mãos carinhosas, com um olhar de súplica e reconhecimento intraduzível.

— Célia — começou por dizer suavemente, enquanto ela se concentrava em doce emoção para ouvi-lo — não renegues o cálice das provações redentoras, quando as mais puras verdades nos felicitam o coração!… Depois de algum tempo na tua companhia, eis-me de novo aqui, onde devo haurir forças novas para recomeçar a luta!… Não entristeças com as circunstâncias penosas da nossa separação pelas sendas escuras do destino. És minha âncora de redenção, através de todos os caminhos! Jesus, na infinita extensão de sua misericórdia, permitiu que a tua alma, qual estrela do meu espírito, descesse das amplidões sublimes e radiosas para clarificar meus passos no mundo. Luz da abnegação e do martírio moral, que salva e regenera para sempre!…

 

Se as mãos sábias e justas de Deus me fizeram regressar aos Planos invisíveis, regozijemo-nos no Senhor, pois todos os sofrimentos são premissas de uma ventura excelsa e imortal! Não te entregues ao desalento, porque, antigamente, Célia, meu espírito se tingiu de luto quase perene, no fausto de um tirano! Enquanto brilhavas no Alto como um astro de amor para o meu coração cruel, decretava eu a miséria e o assassínio! Abusando da autoridade e do poder, da cultura e da confiança alheias, não trepidei em destruir esperanças cariciosas, espalhando o crime, a ruína e a desolação em lares indefesos! Fui quase um réprobo, se não contasse com o teu espírito de renúncia e dedicação ilimitadas! Ao passo que eu descia, degrau a degrau, a escada abominável do crime, no pretérito longínquo e doloroso, teu coração amoroso e leal rogava ao Senhor do Universo a possibilidade do sacrifício!…

 

E, sem medir as trevas agressivas e pavorosas que me cercavam, desceste ao cárcere de minhas impenitências!… Espalhaste em torno da minha miséria o aroma sublime da renúncia santificante e eu acordei para os caminhos da regeneração e da piedade! Tomaste-me das mãos, como o fizesses a uma criança desventurada e ensinaste-me a ergue-las para o Alto, implorando a proteção e misericórdia divinas! Já de alguns séculos teu espírito me acompanha com as dedicações santificadas e supremas! É que as almas gêmeas preferem chegar juntas às regiões sublimes da Paz e da Sabedoria, e, dentro do teu amor desvelado e compassivo, não hesitaste em me estender as mãos dedicadas e generosas, como estrela que renunciasse às belezas do céu para salvar um verme atolado num pântano, em noite de trevas perenes. E acordei, Célia, para as belezas do amor e da luz, e, não contente ainda, por me despertares, me vens auxiliando a resgatar todos os débitos onerosos… Teu espírito carinhoso e impoluto, não vacilou em sustentar-me, através das estradas pedregosas e tristes que eu havia traçado com a minha ambição terrível e desvairada! Tens sido o ponto de referência para minha alma em todos os seus esforços de paz e regeneração, na reconquista das glórias espirituais. Ao teu influxo pude testemunhar minha fé, no circo do martírio, selando, pela primeira vez, minha convicção em prol da fraternidade e do amor universal! Por ti, desterro de mim o egoísmo e o orgulho, sustentando todas as batalhas íntimas, na certeza da vitória!

 

Voltando ao mundo, fui novamente arrebatado aos teus braços materiais, em obediência às provas ríspidas que ainda terei que sustentar por largo tempo! Jesus, porém, que nos abençoa do seu trono de luz e misericórdia, de perdão e bondade infinita, permitirá que esteja contigo nos teus testemunhos de fé e humildade, destinados à exaltação espiritual de todos os seres bem-amados, que gravitam na órbita dos nossos destinos! E se Deus abençoar minhas esperanças e minhas preces sinceras, voltarei de novo para junto do teu coração, nas lutas ásperas!… Espera e confia sempre!… Na sua magnanimidade indefinível, permite o Senhor possamos voltar dos caminhos almos do túmulo, para consolar os corações ligados ao nosso e ainda retidos nos tormentos da carne… Somente lá, nas moradas do Senhor, onde a ventura e a concórdia se confundem, poderemos repousar no amor grande e santo, marchando de mãos dadas para os triunfos supremos, sem as inquietações e provas rudes do mundo!…

 

Por muito tempo a voz cariciosa de Ciro falou-lhe ao coração, propinando-lhe ao espírito sensível as mais santas consolações e as mais doces esperanças! No auge do seu deslumbramento espiritual, a jovem cristã experimentou as mais comovedoras alegrias, desejando que aquele minuto glorioso se prolongasse ao Infinito…

Quando a palavra do bem-amado parecia finalizar com um brando estacato, em vibrações silenciosas e profundas, Célia rogou-lhe que a acompanhasse em todos os seus lances terrestres, implorando-lhe assistência e proteção em todas as circunstâncias da vida; confiou-lhe seus pesares mais secretos e angustiosas expectativas, quanto à nova situação, mas Ciro parecia sorrir-lhe bondosamente, prometendo-lhe carinho incessante, através de todos os percalços e reafirmando a sua confiança no amparo do Senhor, que não haveria de abandoná-los…

 

No dia seguinte, ei-la reanimada, deixando transparecer no semblante a serenidade íntima do seu espírito.

O velhinho notou, com alegria, aquela mudança e, como se estivesse em preparativos constantes para a jornada do túmulo, não perdeu o ensejo para esclarecer a jovem todos os problemas que a esperavam na vida solitária de Alexandria. Com solicitude extrema, dava-lhe notícia de todos os pormenores; da vida nova a encetar, fornecendo-lhe o nome de antigos companheiros de fé e dando conta de todos os costumes da comunidade.

Célia, em trajes masculinos, ouvia-lhe a palavra carinhosa e benevolente, com o desejo íntimo de prolongar indefinidamente aquela vida bruxuleante, de modo a nunca mais separar-se daquele coração bondoso e amigo; mas, ao revés de suas mais caras esperanças, o estado do ancião agravou-se repentinamente. Todos os esforços foram baldados para lhe restituir o “tônus vital” do Plano físico e, assistido pela jovem, que tudo fazia por vê-lo restabelecido, o velho Marinho recebeu a visita do pretor da cidade, que, cedendo a instantes pedidos, vinha receber-lhe as derradeiras recomendações.

 

Apresentando a jovem como filho, o moribundo ordenou que lhe fossem entregues todas as suas parcas economias, antecipando que ele deveria partir para a África, tão logo se verificasse o seu óbito.

— Marinho — interpelou a autoridade, depois das necessárias anotações — será possível que este jovem participe das tuas superstições?

O generoso velhinho compreendeu o alcance da pergunta e respondeu com desassombro:

— De mim e por mim, não precisaremos cogitar das convicções religiosas, aqui de todos conhecidas, desde que entrei nesta casa! Sou cristão e saberei morrer, íntegro na minha fé!… Quanto a meu filho, que deverá partir para Alexandria, afim de amparar nossos interesses particulares, tem o espírito livre para escolher a ideia religiosa que mais lhe aprouver.

O pretor olhou com simpatia para o jovem triste e abatido, e exclamou:

— Ainda bem!….

 

Despedindo-se do moribundo, cujos instantes de vida pareciam prestes a extinguir-se, a autoridade deixava-os ambos com a precisa liberdade para trocarem as derradeiras impressões.

Marinho fez ver, então, à sua pupila, que aquela resposta hábil destinava-se a fazer com que o pretor de Minturnes lhe cumprisse a vontade, sem relutância, dentro dos dispositivos legais, recomendando-lhe todas as providências que a sua morte exigiria da sua inexperiência. Célia ouvia-lhe as exortações roucas e entrecortadas, extremamente acabrunhada, mas, como em todas as penosas circunstâncias da sua vida, confiava, em Jesus.

Após uma agonia excruciante de longas horas, em que a filha de Helvídio viveu momentos de indescritível emoção, o generoso Marinho abandonava o mundo, depois de longa existência, povoada de pesadelos terríveis e dolorosos. Seus olhos se fecharam para sempre, com uma lágrima, ao tombar do dia. Piedosamente, diante de alguns raros assistentes, Célia fechou-lhe as pálpebras, num gesto carinhoso e, ajoelhando-se, como se quisesse transformar as brisas da tarde em mensageiras dos seus apelos ao Céu, deixou que o coração se diluísse em lágrimas de saudade, suplicando a Jesus recebesse o benfeitor no seu reino de maravilhas, concedendo-lhe um recanto de paz, onde a alma exausta lograsse esquecer as tormentas dolorosas da existência material.

 

Dada a sua qualidade de cristão confesso, o velho de Minturnes teve uma sepultura mais que singela, que a filha do patrício encheu com as flores do seu afeto e mergulhando na sombra de uma soledade quase absoluta.

Dentro de poucos dias, o pretor entregou-lhe a pequena soma que Marinho lhe deixava, um pouco mais que o suficiente para a viagem em demanda da África distante. E, numa radiosa manhã de primavera, carregando no íntimo a sua serenidade triste e inalterável, a moça cristã, depois de uma prece longa e angustiosa sobre os túmulos humildes do pequenino e do ancião, na qual lhes rogava proteção e assistência, tomou o lugar que lhe competia numa galera napolitana que periodicamente recebia passageiros para o Oriente.

Sua figura triste, metida em roupas masculinas, atraia a atenção de quantos lhe faziam companhia eventual no grande cruzeiro pelo Mediterrâneo, mas, profundamente desencantada do mundo, a jovem se mantinha em silêncio quase absoluto.

 

O desembarque em Alexandria verificou-se sem incidentes dignos de menção. Todavia, seguindo as recomendações do benfeitor, junto dos seus conhecidos da cidade, viera a saber que o monastério demorava a algumas milhas de distância, pelo que houve de tomar um guia até o local do seu recolhimento.

O mosteiro, isolado, distava da cidade dez léguas mais ou menos, em marcha de quase um dia, apesar dos bons cavalos atrelados ao veículo.

A filha de Helvídio defrontou o grande e silencioso edifício na hora crepuscular, empolgada pela visão do casario amplo, entre a vegetação agreste. Sentiu, porém, um singular descanso mental, naquela soledade imponente que parecia acolher todos os corações desolados.

Puxando o cordel que ligava o portão de entrada, ouviu, ao longe os sons de pesada sineta, cujo ruído estranho parecia despertar um gigante adormecido.

 

Daí a instante, os velhos gonzos rangiam pesadamente, deixando entrever um homem trajado com uma túnica cinzento-escura, semblante grave e triste, que interpelava a jovem transformada num rapaz de fisionomia tristonha, nestes termos:

— Irmão, que desejais do nosso retiro de meditação e oração?

— Venho de Minturnes e trago uma carta de meu pai, destinada ao Senhor Aufídio Prisco.

— Aufídio Prisco? — Perguntou o porteiro admirado.

— Não é ele, aqui, o vosso superior?

— Referi-vos ao pai Epifânio?

— Isso mesmo.

— Escutai-me — ponderou o irmão porteiro, complacente — sois, porventura, o filho de Marinho, o companheiro que daqui partiu há cerca de dois anos, afim de vos trazer ao nosso recolhimento?

— É verdade. Meu pai chegou, há muito tempo aos portos da Itália, onde nos encontramos; todavia, sempre doente, não logrou a ventura de acompanhar-me à soledade das vossas orações.

— Morreu? — Revidou o interlocutor extremamente admirado.

— Sim, entregou a alma ao Senhor, há muitos dias.

— Que Deus o tenha em sua santa guarda!

 

Dito isso, pôs-se a meditar um instante, como se tivesse o pensamento mergulhado em preces fervorosas.

Em seguida, contemplou com muita ternura o jovem humilde e triste, exclamando significativamente:

— Agora que já sei donde vindes e quem sois, eu vos saúdo em nome de Nosso Senhor Jesus-Cristo.

— Que o Mestre seja louvado respondeu a filha de Helvídio Lúcius, com os seus modos singelos.

— Não haveis de reparar vos tenha recebido com prudência, à primeira vista… Atravessamos uma fase de intensas e amarguradas perseguições, e os servos do Senhor, no estudo do Evangelho, devem ser os primeiros a observar se os lobos chegam ao redil com vestes de cordeiro.

— Compreendo…

— Não desejo aborrecer-vos com indagações descabidas, mas, pretendeis adotar a vida monástica?

— Sim — respondeu a jovem timidamente — e, assim procedendo, não só obedeço a uma vocação inata, como satisfaço a uma das maiores aspirações paternas.

— Estais informado das exigências desta casa?

— Sim, meu pai m’as revelou antes de morrer.

 

O irmão porteiro deitou o olhar para todos os lados e, observando que se encontravam a sós, exclamou em voz discreta:

— Se trazeis a esta casa uma vocação pura e sincera, acredito que não tereis dificuldade em observar as nossas disciplinas mais rígidas; contudo, devo esclarecer-vos que pai Epifânio, como diretor desta instituição, é o espírito mais ríspido e arbitrário que já conheci na minha vida. Este retiro de oração é o fruto de uma experiência que ele começou com o vosso digno pai, há mais de vinte anos. A princípio, tudo ia bem mas, nos últimos anos o velho Aufídio Prisco vem abusando largamente da sua autoridade, máxime, depois da partida do Irmão Marinho para a Itália. Daí para cá, pai Epifânio tornou-se despótico e quase cruel. Aos poucos vai transformando este pouso do Senhor em caserna de disciplina militar, onde ele recebeu a educação dos primeiros anos.

A neta de Cneio Lúcius ouvia-o profundamente admirada.

 

Pela amostra da portaria, seu espírito observador compreendeu, de pronto, que o retiro dos filhos da oração estava igualmente assomado das intrigas mais penosas.

Todavia, enquanto coordenava as suas considerações íntimas, o Irmão Filipe continuava:

— Imaginai que o nosso superior vem transformando a ordem de todos os ensinamentos, criando as mais incríveis extravagâncias religiosas. Em contraposição aos ensinamentos do Evangelho, obriga-nos chamar-lhe “pai” ou “mestre”, nomes que o próprio Jesus negou-se a aceitar na sua missão divina. Além de inventar toda a sorte de trabalhos para os quarenta e dois homens desencantados do mundo, que estacionam aqui, vem aplicando as lições de Jesus à sua maneira. Se bem nada possamos revelar lá fora, a bem do caráter cristão da nossa comunidade, é lastimável observar que todo o recinto está cheio de símbolos que nos recordam as festividades materiais dos deuses cruéis. E nada poderemos dizer em tom de crítica ou de censura, porquanto o pai Epifânio manda em nós como um rei.

 

A jovem ainda não conseguira manifestar a sua opinião, dada a fluência com que o porteiro discorria, quando lhes chegou o ruído de uns passos fortes que se aproximavam. Filipe calava-se, como quem já estivesse habituado a cenas como aquelas, e, modificando a expressão fisionômica, exclamou com voz abafada:

— É ele!…

Célia, metida nos seus trajes estranhos e pobres, não conseguiu dissimular o espanto.

No limiar de uma porta ampla, surgia a figura de um velho septuagenário, cujos caracteres fisionômicos apresentavam a mais profunda expressão de convencionalismo e orgulhosa severidade. Vestia-se como um sacerdote romano nos grandes dias dos templos politeístas e, apoiado a uma bengala expressiva, passeava por toda parte o olhar fulgurante, como a procurar motivos de irritação e desagrado.

— Filipe — exclamou ele em tom intempestivo.

— Mestre — exclamou o irmão da portaria, com a mais fingida humildade — apresento-vos o filho de Marinho, que o seu coração de pai não pôde acompanhar até aqui, dada a surpresa da morte, em Minturnes.

 

Ouvindo aquele esclarecimento inesperado, Epifânio caminhou para o jovem que lhe era inteiramente desconhecido, pronunciando quase secamente a saudação evangélica, como se fora um leão utilizando a legenda de um cordeiro:

— Paz em nome do Senhor!

Célia respondeu, conforme o seu venerando amigo lhe havia ensinado antes da morte, entregando ao superior da comunidade a carta paternal.

Depois de passar rapidamente os olhos pelo pergaminho, Epifânio acentuou com austeridade:

— Marinho deve ter morrido com todo o seu idealismo de cigarra.

E como se houvera pronunciado aquele conceito tão somente para si mesmo, acrescentou com a sua expressão severa, dirigindo-se à jovem:

— Desejas, de fato, permanecer aqui?

— Sim, meu pai — respondeu o suposto rapaz, entre tímido e respeitoso — continuar as tradições de meu pai foi sempre o meu desejo, desde a infância.

 

Aquele tom humilde agradou a Epifânio, que lhe obtemperou menos agressivo:

— Sabes, porém, que a nossa organização é constituída de cristãos convertidos, que possam cooperar em nossos esforços não somente com o valor espiritual, mas também com os recursos financeiros imprescindíveis às nossas realizações? Teu pai não te deixou pecúlio algum, após haver baixado ao sepulcro em Minturnes?

— Minha herança cifrou-se, apenas, ao capital indispensável à viagem até Alexandria. Entretanto — acentuou inocentemente — meu pai revelou-me, há tempos, que a sua pequena fortuna foi empregada aqui, asseverando-me que a administração da casa saberia acolher-me, recordando os seus serviços.

— Ora — revidou Epifânio, evidenciando contrariedade — fortuna por fortuna, todos os que descansam neste retiro, tiveram-na no mundo, trazendo os seus melhores valores para esta casa.

— Mas meu pai — implorou Célia com sincera humildade — se existem aqui os que descasam, devem existir igualmente os que trabalham. Se não tenho dinheiro, tenho forças para servir a instituição nalguma coisa. Não me negueis a realização de um ideal tanto tempo acariciado.

 

O superior parecia comovido, revidando com ênfase:

— Está bem. Farei por ti quanto estiver ao meu alcance.

E mandando Filipe ao interior, em busca de um grande livro de apontamentos, iniciou minucioso interrogatório:

— Seu nome?

— O mesmo de meu pai.

— Onde nasceu?

— Em Roma.

— Onde recebeu o batismo?

— Em Minturnes.

 

E após as detalhadas inquirições, Epifânio falou-lhe ríspido, investido na sua austera superioridade:

— Atendendo à tua vocação e à memória de um velho companheiro, ficarás conosco, laborando nos serviços da casa. Quero, contudo, esclarecer-te que, aqui dentro, faço cumprir rigorosamente o Evangelho do Senhor, de acordo com a minha vontade, inspirada do Alto. Depois de muitos anos de experiência, reconheci que o pensamento evangélico terá de organizar-se segundo as leis humanas, ou não poderá sobreviver para a mentalidade do futuro. Os cristãos de Roma, como os da Palestina, padecem de uma hipertrofia de liberdade que os leva, instintivamente, à disseminação de todos os absurdos. Aqui, todavia, a disciplina cristã haverá de caracterizar-se pela abdicação total da própria vontade.

A jovem escutou-o serenamente, guardando no íntimo as suas impressões particulares, de quanto lhe era dado observar, enquanto Epifânio a encaminhava ao interior, apresentando-a aos demais companheiros.

Transformada no Irmão Marinho, Célia passou e viver a sua vida nova, singular e desconhecida.

 

O mosteiro vasto onde se reuniam mais de quatro dezenas de cristãos ricos, desiludidos dos prazeres do mundo, era bem um dos pontos de partida do segundo século para o Catolicismo e para o sacerdócio organizado sobre bases econômicas, eliminatórias de todas as florações do messianismo.

Reparou que ali não mais havia a simplicidade das catacumbas. A simbologia pagã parecia invadir todos os departamentos da casa. Aqueles romanos convertidos não dispensavam as fórmulas de oração aos seus antigos deuses. Por toda parte pendiam cruzes grandes e pequenas, talhadas em mármore ou madeira, esculturadas em moldes diversos. Havia salas de preces em que repousavam imagens do Cristo, de marfim e de cera prateada, dormindo inertes entre verdadeiros tufos de rosas e violetas. O culto exterior do politeísmo parecia redivivo, indestrutível e inelutável. Para a sua manutenção, notava ela a mesma intriga dos padres flamíneos,  de Roma, figurando-se-lhe que o Evangelho, ali, constituía mero pretexto para galvanizar as crenças mortas.

 

O espírito formalista de Epifânio buscara dotar o estabelecimento de todas as convenções imprescindíveis.

Um sino anunciava a mudança das meditações, a hora do trabalho, das preces, das refeições, e o tempo destinado ao repouso do espírito.

O sentido da espontaneidade da lição do Senhor no Tiberíades,  por conciliar a possibilidade e a necessidade dos crentes, havia desaparecido. A convenção implacável de Epifânio regulamentava todos os serviços.

O mais interessante é que, naqueles monastérios remotos da África e da Ásia, onde se acolhiam os cristãos receosos das perseguições inflexíveis da Metrópole, já existiam as famosas “”, isto é, a reunião íntima de todos os membros da comunidade, para repasto das intrigas e dos pontos de vista individual.

 

Célia estranhou que, dentro de um instituto cristão por excelência, pudessem vigorar aberrações como essa que vinha diretamente dos colégios romanos, onde pontificavam sacerdotes flamíneos ou vestais;  mas era obrigada a aceitar as ordens superiores, sem deixar transparecer o seu desencanto. Condenando, embora, tais manifestações nocivas do culto exterior, a filha de Helvídio em breve conquistaria a admiração e confiança de todos, pela retidão do proceder, a evidenciar os mais elevados atos de humildade e compreensão do Evangelho. De trato ameníssimo, com o amavio das suas palavras carinhosas e amigas, o Irmão Marinho transformava-se no ímã de todas as atenções, edificando as afeições mais puras naquele convívio singular.

 

Contudo, alguém havia ali que guardava o mais venenoso despeito em face da sua vida pura. Esse alguém era Epifânio, cujo espírito despótico e original se habituara a mandar em todos os corações, com brutalidade e aspereza. A circunstância de nada encontrar no filho do antigo companheiro, que merecesse censura, irritava-lhe o espírito titânico. Nas horas do Capítulo observava que as opiniões do Irmão Marinho triunfavam sempre, pela sublime compreensão de fraternidade e de amor, de que davam pleno testemunho. A jovem, porém, não obstante estranhar-lhe as atitudes, não podia definir os gestos rudes do superior, dentro da sua candidez espiritual.

Certo dia na hora consagrada às intrigas e devassas, que antecederam, no Catolicismo, o instituto da , cheio de austeridade e artificialismo, Epifânio fez longa preleção sobre as tentações do mundo, dizendo dos seus caminhos abomináveis e das trevas que inundavam o coração de todos os pecadores, envolvendo todas as coisas da vida na sua condenação e na sua fúria religiosa.

 

Terminada a palestra fanática, solicitou, ao modo das primeiras assembleias cristãs, que todos os irmãos se pronunciassem sobre a preleção, mas, enquanto todos aprovavam os conceitos, irrestritamente; Célia, na sua inocente sinceridade, replicou:

— Mestre Epifânio, vossa palavra é extremamente respeitável para quantos laboram nesta casa, mas peço licença para ponderar que Jesus não deseja a morte do pecador… (Ez 18:23) Suponho justo que nos refugiemos neste retiro, até que passe a onda sanguinária das perseguições aos adeptos do Cordeiro; todavia, amainada a tempestade, acho imprescindível que regressemos ao mundo, mergulhando-nos em suas lutas dolorosas, porque, sem esses campos de sofrimento e trabalho, não poderemos dar o testemunho da nossa fé e da nossa compreensão do amor de Jesus.

O diretor espiritual lançou-lhe um olhar sombrio, enquanto toda a assembleia parecia satisfeita com a oportunidade daquele esclarecimento.

— No próximo Capítulo prosseguiremos, então, com os mesmos estudos, — disse Epifânio em tom quase rude, visivelmente contrariado com o argumento irretorquível, apresentado contra a sua inovação despótica, em detrimento dos ensinamentos evangélicos.

 

No dia seguinte, o Irmão Marinho foi chamado ao gabinete do superior, que lhe dirigiu a palavra nestes termos:

— Marinho, nosso Irmão Dioclécio, provedor desta casa há mais de dez anos, encontra-se alquebrado, doente, e eu preciso confiar esse encargo a alguém, cuja noção de responsabilidade me dispense de sindicâncias e cuidados especiais. Dessarte, de amanhã em diante, ficarás com o encargo de ir ao mercado mais próximo, duas vezes por semana, de modo a cuidares convenientemente das pequenas provisões do mosteiro.

A jovem acolheu a recomendação, agradecendo a confiança a ela deferida e, com semelhante providência, a palavra de Epifânio, nos dias do Capítulo, já não seria perturbada pelas suas observações simples e portadoras dos melhores esclarecimentos evangélicos.

 

O mercado distava três léguas do convento, porquanto estava situado numa grande povoação na estrada de Alexandria. Desse modo, em sua caminhada a pé, sobraçando dois cestos enormes, a filha de Helvídio era obrigada a pernoitar na única estalagem ali existente, visto ter de esperar a parte da manhã seguinte, quando o mercado exibia os seus produtos.

Aquelas jornadas semanais cansavam-na sobremaneira, a princípio; mas, pouco a pouco, foi-se habituando ao novo imperativo de suas obrigações. Aproveitando a solidão dos caminhos para os melhores exercícios espirituais, não só relia velhos pergaminhos contendo os princípios do Evangelho e as narrativas dos Apóstolos, como exercitava as mais sadias meditações, nas quais deixava o coração evolar-se em preces cariciosas ao Senhor.

No mosteiro todos os irmãos respeitavam-na. Por seus atos e palavras, ela centralizava os afetos gerais, que lhe cercavam o espírito de consideração e de amor desvelado…

 

Três anos passaram, sem que um só dia desse prova de desânimo ou de revolta, de indecisão ou de amargura, consolidando cada vez mais as suas tradições de virtude irrepreensível.

Na povoação mais próxima; igualmente, onde os serviços do mercado a convocavam no cumprimento do dever, todos lhe apreciavam os generosos dotes d’alma, mormente na hospedaria em que pernoitava duas vezes por semana.

Acontece, porém, que Menênio Túlio, o hospedeiro tinha uma filha de nome Brunehilda, que reparara os belos traços fisionômicos do Irmão Marinho, tomada de singulares impressões. Embalde se ataviava para lhe provocar a atenção sempre voltada para os assuntos espirituais, irritando-se, intimamente, com a sua afetuosa indiferença, sempre cordial e fraterna.

Longos meses transcorreram, sem que Brunehilda pudesse desvendar o mistério daquela alma esquiva, cheia de beleza e delicada masculinidade, aos seus olhos, enquanto o Irmão Marinho, dentro de suas elevadas disposições espirituais, nunca chegou a perceber a bastardia dos pensamentos e intenções da jovem, que, tantas vezes, o cumulava de gentilezas cariciosas.

 

Foi então que Brunehilda, desenganada nos seus propósitos inconfessáveis, passou a relacionar-se com um soldado romano, amigo de seu pai e da família, recém-chegado da Capital do Império e cheio de ousadias e atitudes insinuantes.

Em breve, a filha do estalajadeiro inclinava-se para o desfiladeiro da perdição, ao passo que o sedutor da sua alma inquieta e versátil ausentava-se propositalmente, regressando a Roma, depois de obter o consentimento dos superiores.

Abandonada à sua prova aspérrima, Brunehilda procurou disfarçar os seus angustiosos pensamentos íntimos. Com a alma tomada de inquietações em face da severidade dos princípios familiares, desejava morrer de modo a eliminar todos os resquícios da falta e desaparecendo para sempre. Faltava-lhe, porém, o ânimo para realizar tão odioso crime.

Dia chegou, contudo, em que não mais pôde ocultar, aos olhos paternos, a realidade.

 

Recolhendo-se ao leito na véspera de receber o fruto dos seus amores, foi obrigada a cientificar Menênio de quanto ocorria. Tomado de dor selvagem, o coração paterno obrigou a filha a confessar-se plenamente, afim de poder vingar-se. Brunehilda, contudo, no instante de revelar o nome de quem a infelicitara, sentiu o pavor da situação, dizendo caluniosamente:

— Meu pai, perdoai-me a falta que vos desonra o nome, respeitável e impoluto, mas quem me levou a transigir tão penosamente com os sagrados princípios familiares, que nos ensinastes, foi o Irmão Marinho com a sua delicadeza capciosa…

Menênio Túlio sentiu o coração abrir-se em chaga viva. Nunca poderia imaginar semelhante coisa. O Irmão Marinho consolidara no seu conceito as mais confortadoras esperanças, e ele confiava na sua conduta como confiaria no melhor dos amigos.

Mas, ante a evidência dos fatos, exclamou em voz ríspida:

— Pois bem, minha casa não ficará, com essa mancha indelével. Tua prevaricação não desonrará o nome de minha família, porque ninguém saberá que acedeste aos propósitos criminosos do infame! Eu mesmo levarei a criança a Epifânio, afim de que os seus sequazes considerem a enormidade desse crime! Se tanto for necessário, não desdenharei empunhar a espada em defesa do círculo sagrado da família, mas preferirei humilhá-los, devolvendo ao sedutor o fruto da sua covardia!…

 

Com efeito, dissimulando a dor imensa do seu coração e do seu lar, Menênio Túlio, no dia seguinte, ao alvorecer, marchou para o mosteiro levando consigo um pequeno cesto, de que um mísero pequenino era o singular conteúdo.

Chamado à portaria pelo Irmão Filipe, quando o sol ia alto, afim de atender à insistência do visitante, o superior da comunidade ouviu os impropérios de Menênio, com o coração gelado de rancor. Cientificado de todas as confissões de Brunehilda, em relação a Marinho, mestre Epifânio mandou chamá-lo à sua presença, com a brutalidade dos seus gestos selvagens.

— Irmão Marinho — exclamou o superior para filha de Helvídio que o escutava, amargurada e surpreendida — então é assim que demonstras gratidão a esta casa? Onde se encontram as tuas avançadas concepções do Evangelho, que não te impediram de praticar tão nefando delito? Recebendo-te no mosteiro e confiando-te uma missão de trabalho neste retiro do Senhor, depositei nos teus esforços uma sagrada confiança de pai. Entretanto, não hesitaste em lançar o nosso nome ao escândalo, enxovalhando uma instituição que nos é sumamente venerável ao espírito!

 

Observando a miserável criança, junto do estalajadeiro, que lhe não correspondera à saudação, a jovem interrogou, enquanto Epifânio fazia uma pausa:

— Mas, de que me acusam?

— Ainda o perguntas? — revidou Menênio Túlio, de faces congestas — Minha desventurada filha revelou-me a tua ação torpe, não vacilando em levar ao meu lar honesto a lama da tua concupiscência. Estás enganado se supões que minha casa vá acolher o fruto criminoso das tuas desregradas paixões, porque esta miserável criança ficará nesta casa, afim de que o pai, infame, resolva o seu destino.

Depois de pronunciar estas palavras acrescidas de impropérios ao suposto conquistador da filha, o estalajadeiro retirou-se, ante o pasmo de Célia e de Epifânio, deixando ali a criança mísera, em completo abandono.

 

A jovem compreendeu, num relance, que o mundo espiritual exigia um novo testemunho da sua fé e, enquanto caminhava, quase serenamente, para tomar nos braços o inocentinho, o superior da comunidade o advertia colérico:

— Irmão Marinho, esta casa de Deus não pode tolerar por mais tempo a tua escandalosa presença. Explica-te! Confessa as tuas faltas, afim de que a minha autoridade possa cuidar das providências oportunas e necessárias!…

Célia, em poucos instantes, mergulhou o pensamento dolorido nas meditações indispensáveis, e, valendo-se da mesma fé intangível e cristalina que lhe havia orientado todos os penosos sacrifícios do destino, exclamou com humildade:

— Pai Epifânio, quem comete um ato dessa natureza é indigno do hábito que nos deve aproximar do Cordeiro de Deus! Estou pronto, pois, a aceitar com resignação as penas que a vossa autoridade me impuser!….

— Pois bem — replicou o superior na sua orgulhosa severidade — deves sair imediatamente do mosteiro, levando contigo essa criança miserável!…

 

Nesse instante, porém, quase todos os religiosos se haviam aproximado, observando a relevância da cena. Custava-lhes crer na culpabilidade do Irmão Marinho, que ali se encontrava humilde, evidenciando a mais consoladora serenidade no brilho calmo dos olhos úmidos.

E, sentindo que todos os companheiros eram simpáticos à sua causa, a filha de Helvídio, com uma inflexão de voz inesquecível, ajoelhou-se diante de Epifânio e pediu:

— Meu pai, não me expulseis desta comunidade para sempre!… Não conheço as regiões que nos rodeiam! Sou ignorante e encontro-me doente! Não me desampareis; considerando a palavra do Divino Mestre, que se afirmava como o recurso de todos os enfermos e desvalidos deste mundo! Se tenho a alma indigna de permanecer neste retiro de Jesus, dai-me a permissão de habitar o casebre abandonado ao pé do horto. Eu vos prometo trabalhar de manhã à noite, no amanho da terra, afim de esquecer os meus desvios… Pai Epifânio, se não me concederdes essa graça, por mim, concedei-a por este pequenino abandonado, para quem viverei com todas as forças do meu coração!…

 

Chorava copiosamente ao fazer a dolorosa rogativa. No íntimo, o orgulhoso Aufídio Prisco, que desejava, aplicar o Evangelho à sua maneira, quis negar, mas, num relance, notou que todos os companheiros da comunidade estavam comovidos e apiedados.

— Não resolverei por mim — clamou exasperado — todos os membros do mosteiro deverão considerar estranha e descabida a tua solicitação.

Todavia, consultados os companheiros, para quem a jovem caluniada erguia os olhos súplices, houve um movimento geral favorável à filha de Helvídio. Epifânio não conseguiu a desejada recusa e, endereçando aos seus benfeitores um carinhoso olhar de agradecimento, o Irmão Marinho abandonou o recinto, erguendo corajosamente a criancinha nos braços e retirando-se para a choupana abandonada, ao pé do imenso horto do mosteiro.

 

Dessa vez, Célia não se entregou à peregrinação por caminhos ásperos, mas só Deus poderia testificar dos seus imensuráveis sacrifícios. Com inauditas dificuldades, buscou adaptar-se, com o pequenino, à sua nova vida, à custa dos mais ingentes trabalhos; na sua soledade dolorosa, a cujas angústias alguns irmãos do mosteiro estendiam mãos carinhosas.

Lembrando-se de Ciro, cercava o pequenito de todos os cuidados, esperando que Jesus lhe concedesse forças para o integral cumprimento de suas provações.

Durante o dia, trabalhava exaustivamente no cultivo das hortaliças, aproveitando os crepúsculos para as meditações e os estudos, que pareciam povoados de seres e de vozes carinhosas do Invisível.

 

Dia houve em que uma pobre mulher do povo passava pelo sítio, a pé, com um filhinho quase agonizante, buscando as estradas de Alexandria à cata de recursos. Era de tarde. Batendo à porta humilde do Irmão Marinho, este levantou-lhe as fibras d’alma abatida, convidando-a às preciosas meditações do Evangelho. Solicitado com insistência pela humilde criatura para impor as mãos, qual faziam os apóstolos de Jesus, sobre o doentinho, tal o ambiente de confiança e de amor que sabia criar com as suas palavras, Célia, entregando-se a esse ato de fé, pela primeira vez, teve a ventura de observar que o pequeno agonizante recuperava o alento e a saúde, num sorriso. Então, a mulher do povo prosternou-se ali mesmo, rendendo graças ao Senhor e misturando as suas lágrimas com as do Irmão Marinho, que também chorava de comoção e agradecimento.

Desde esse dia, nunca mais a casinhola do horto deixou de receber os pobres e aflitos de todas categorias sociais, que lá iam rogar as bênçãos de Jesus, através daquela alma pura e simples, santificada pelos mais acerbos sofrimentos.




de Emmanuel — Minturnes,  mais tarde passou a chamar-se Trajetta.

 


Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

Na Via Nomentana

1 • 1

Uma semana depois do que vimos de narrar, vamos encontrar Cláudia

Sabina, à noite, no terraço de sua casa, em Roma, palestrando com Hatéria na mais franca intimidade.

– Então, Hatéria – dizia à surdina, depois de longa exposição da cúmplice –, meu esposo, assim, parece querer facilitar a realização de meus projetos. Nunca o supus capaz de apaixonar-se por alguém, fora do ambiente de suas armas.

– Entretanto, senhora, em cada gesto seu, em cada palavra, inferem-se perfeitamente os sentimentos que lhe vão na alma.

– Está bem – exclamou a antiga plebéia como se o assunto a enfadasse –, meu marido não é o homem que me interessa. Tuas notícias de hoje significam que o acaso também coopera a meu favor.

– Além de tudo – lembrou Hatéria, acentuando o caráter secreto daquelas revelações –, Lucínia e Túlia combinaram solicitar uma bênção na reunião cristã, a fim de que Helvídio Lucius volte imediatamente de Tibur, a reintegrar-se na harmonia doméstica.

Cláudia deixou escapar um riso nervoso, mas interrogou com avidez:
– Sim? E como o soubeste?...
– Há uma semana elas trocaram confidências e ontem, à noite, assentaram o

plano, embora a patroa se encontre bastante abatida, acreditando eu que venham a realizá-lo nestes quatro dias.

– Convém estares vigilante para acompanhá-las, sem que o percebam, de modo a prosseguires ciente dos acontecimentos.

E, esboçando um gesto de malícia, sentenciou:

– Essas senhoras desconhecerão, porventura, os editos imperiais que visam à eliminação do Cristianismo? Que descaso das leis!... Enfim, contribuiremos também, de algum modo, para que as autoridades fixem esse novo foco doutrinário. Depois dos teus informes, falarei com Quinto Bíbulo a respeito.

Hatéria e Cláudia palestraram ainda algum tempo, examinando os detalhes de suas intenções criminosas e assentando os projetos nefandos e adequados ao caso.

Pela manhã do dia imediato, uma liteira modesta saía do palácio do prefeito, conduzindo alguém que se ausentava de casa com a máxima discrição.

Era Cláudia Sabina, que, em trajes muito simples, mandava seguir para a Suburra.

Após exaustivo trajeto, mandou que os escravos de confiança a esperassem em local convencionado e internou-se, sozinha, por vielas ermas e pobres.

Atingindo um quarteirão de casas humildes e pequeninas, parou subitamente como se desejasse certificar-se do local, fixou à pequena distância uma casa esverdeada, de feição característica, que a diferenciava de todas.

A esposa de Lólio Úrbico esboçou um sorriso de satisfação e, estugando o passo, bateu à porta com visível interesse.

Daí a momentos, uma mulher velhíssima e de má catadura, cabelos desgrenhados e largos vincos a lhe enrugarem o rosto, veio atendê-la com expressão de curiosidade nos olhos empapuçados e pequeninos.

Observando a visitante, que ostentava uma toga simples, mas rica, além da rede dourada a prender-lhe a cabeleira graciosa e abundante, a velha sorriu satisfeita, farejando a boa situação financeira da cliente que lhe buscava os serviços.

– É aqui – perguntou Cláudia com mal disfarçada modéstia – que reside Plotina, antiga pitonisa de Cumas?

– Sim, senhora, sou eu mesma, para vos servir. Entrai. Minha choupana honra-se com a vossa visita.

A esposa do prefeito sentiu-se bem com a recepção bajuladora e fingida.

– Necessitando de sua cooperação – disse a visitante, penetrando o interior com desembaraço –, vim procurá-la, em vista da recomendação de uma das minhas amigas de Tibur.

– Muito grata, minha senhora, espero corresponder à vossa confiança.

– Disseram-me que não precisaria expor o objeto de minha consulta. Será, de fato, assim?...

– Perfeitamente – esclareceu Plotina com a sua voz enigmática –, meus poderes ocultos dispensam qualquer explicação da vossa parte.

Sentando-se num velho divã, Sabina reparou que a feiticeira buscara uma trípode e colocara junto da mesma numerosos amuletos, nos quais se esbatia a mortiça claridade de pequena tocha, acesa para atender às necessidades do momento. Em seguida, depois de atitude contemplativa e descansada, Plotina deixou pender a cabeça entre as mãos, ostentando uma palidez cadavérica, como se a sua vidência misteriosa estivesse a devassar as mais sinistras miragens nos planos invisíveis.

Cláudia Sabina seguia-lhe os mínimos movimentos com singular interesse, entre o temor e a surpresa do desconhecido, mas, dentro em pouco, a fisionomia da intermediária entre o mundo e as forças do plano invisível normalizava-se,

atenuando-se-lhe as contrações nervosas do rosto e extinguindo-se as expressões de profundo cansaço, que lhe escapavam dos lábios intumescidos.

De semblante sereno e curioso, como se a alma houvera regressado de misteriosas paragens com as mais vastas revelações, tomou as mãos aristocráticas de Cláudia, exclamando em tom discreto:

– Disseram-me as vozes que amais a um homem, preso a outra mulher pelos laços mais santos desta vida. Porque não evitar a tempo uma tempestade de amarguras que recairá, mais tarde, sobre o vosso próprio destino? Viestes até aqui em busca de um conselho que vos oriente as pretensões, mas seria melhor abandonardes todos os projetos que tendes em mente!...

Cláudia Sabina ouvia-a, assustada, mas obtemperou com veemência:

– Plotina, conheço a elevação da tua ciência e venho recorrer aos teus conhecimentos com uma confiança absoluta! Se a tua visão pode devassar o passado, procura fixar no presente a única preocupação da minha vida... Ajuda- me! Recompensarei regiamente os teus serviços!

A consulente abriu a bolsa referta, deixando cair grande porção de moedas na trípode, como se despejasse ali uma catadupa de sestércios, enquanto a velha bruxa arregalava os olhos, na cupidez e na ambição dos seus baixos sentimentos.

– Senhora – disse ela desejosa de alcançar os proventos de tão grandes recursos financeiros –, já vos dei o primeiro conselho, que é o da sabedoria que me assiste; mas também sou humana e quero corresponder à vossa generosidade. Conheço os projetos que vos animam e procurarei auxiliar-vos, a fim de que possais levá-los a bom termo!... Cumpre-me, porém, esclarecer que a vossa rival está assistida por uma figura angélica, embora eu não possa saber se essa criatura vive na Terra ou no Céu. No meu poder oculto, vi a mulher que odiais nimbada pela aura intensa de um anjo, junto dela.

E, como se estivesse travando um duelo de consciência, em face da invejável situação financeira da consulente, acrescentou:

– Precisamos muito cuidado, senhora... Essa criatura celeste pode defender a vossa rival de todos os sofrimentos estranhos ao seu destino...

– Mas, como pode ser isso?! – perguntou Cláudia Sabina profundamente impressionada.

– Não terá filhos a vossa rival e, entre eles, não existirá algum de coração puro e piedoso?

– Sim – exclamou a interpelada algo contrafeita –, embora não saiba se alguma de suas filhas se encontra em tais condições. Entretanto, não venho aqui para cuidar desse assunto e sim do meu próprio interesse passional. Por que me falas, pois, dessa defesa angélica incompreensível para mim?

– Senhora, hei de ajudar-vos com todas as minhas forças, pois tenho necessidade de dinheiro para atender a necessidades numerosas e prementes, mas devo afiançar-vos que correremos o risco de perder nosso esforço, porque um anjo de Deus pode aparar os golpes do mal, visto não existir o sofrimento qual o entendemos, para os seus corações purificados. Enquanto a inquietação e a dor podem arrastar as almas vulgares ao torvelinho das paixões e padecimentos do mundo, o Espírito que se redimiu realizou em si a edificação da fé, que o liga a Deus Todo-Poderoso. Para esses corações imaculados, senhora, a Terra não pode engendrar o tormento ou o desespero!

Cláudia escutava-lhe as ponderações, eminentemente impressionada, mas, observou com o seu espírito expedito:

– Plotina, eu prefiro não acreditar nessa defesa, aceitando a cooperação dos teus poderes ocultos, plenamente confiada no êxito de minhas pretensões. Não me faças andar contigo em digressões filosóficas, pois quero viver a minha própria realidade. Dize-me! Que sugeres a favor da minha felicidade?

– Em face da vossa decisão, temos de recorrer aos fatos mais concretos.
– Acreditas que deva cogitar da eliminação da mulher que odeio?
– Na vossa situação e em vosso caso, não devereis pensar no aniquilamento

do seu corpo, mas na flagelação da alma, considerando que a única morte que se deve aplicar a um inimigo é a que se impõe a uma criatura fora do sepulcro e em plena vida.

– Tens razão – murmurou Sabina interessada. – Teus argumentos são mais inteligentes e mais práticos. Quais os teus conselhos a meu favor?

Plotina fez longa pausa, como se fora formular nova consulta íntima, ante a luz da tocha pequenina e bruxuleante, acrescentando em seguida:

– Senhora, já tivestes o poder de transportar provisoriamente para Tibur o homem amado... Devo informar-vos de que o Imperador Élio Adriano, antes de retirar-se para os seus palácios em construção, na cidade aludida, onde deverá aguardar o fim da existência, há de fazer uma última viagem pelas Províncias, obedecendo à sua conhecida vocação... Sereis compelida a acompanhar-lhe o séquito, entrevendo-se aí a oportunidade de seguir, igualmente, o homem da vossa dileção.

– Sim? – perguntou Cláudia visivelmente satisfeita. – E que me aconselhas?

Plotina inclinou-se, então, colando os lábios rente aos seus ouvidos, sugerindo-lhe um plano terrível e criminoso, que a consulente acolheu com um sorriso significativo.

Palestraram ainda, largo tempo, como se as suas mentes se casassem com absoluta sintonia de princípios, dentro das mesmas intenções e fins, notando-se

que, ao despedir-se, Cláudia averbou as necessidades da sua nova cúmplice, prometendo-lhe providências confortadoras, depois de lhe entregar todo o dinheiro que trazia.

Daí a algumas horas, a mesma liteira modesta regressava ao palácio de Lólio Úrbico, pela porta dos fundos.

Dois dias depois, vamos encontrar, em casa de Helvídio Lucius, Alba Lucínia e sua amiga fiel, em conversação discreta no apartamento mais recôndito da casa.

Túlia Cevina apresentava as melhores disposições físicas, apesar da preocupação que lhe vagava nos olhos, não acontecendo o mesmo à esposa de Helvídio que, reclinada no leito, dava mostras do mais fundo abatimento.

– Lucínia, minha querida – exclamou Túlia afetuosa –, já estou avisada de que a reunião se efetuará esta noite. Estou à tua disposição para irmos sem receio. Poderemos sair às primeiras horas da tarde.

– Impossível – replicou a pobre senhora, visivelmente enferma e acentuando as palavras com dolorosa melancolia –, sinto-me profundamente cansada e abatida!... Entretanto, decidi no coração que recorrerei a essas preces!... Necessito de algo sobrenatural que me devolva a paz do espírito. É impossível prosseguir nesta angústia moral que me inutiliza todas as forças.

Lágrimas amargas lhe cortaram a palavra entristecida.

– Irei de qualquer modo – disse Túlia abraçando-a –, tenho fé em que o novo deus nos valerá na situação de penosa incerteza em que te encontras!...

Observando-lhe a dedicação meiga e constante, Alba Lucínia advertiu:

– Querida, não me conformaria em saber que foste só. Pedirei a Célia que te acompanhe.

Túlia esboçou um sorriso de satisfação, enquanto a amiga ordenou a uma jovem escrava fosse chamar a filha.

Daí a instante, surgia a donzela com o seu perfil gracioso.

– Célia – disselhe a genitora, sensibilizada e melancólica –, poderás ir hoje à noite, em companhia de Túlia, a uma reunião cristã, a fim de fazeres uma prece pela tranqüilidade de tua mãe?...

A moça teve um gesto de surpresa, mas amplo sorriso de satisfação lhe aflorou aos lábios.

– Que não faria por ti, mãezinha? E beijou-a. Alba Lucínia sentiu o conforto imenso daquela ternura, acrescentando:

– Filhinha, sinto-me cansada, doente e deliberei recorrer a Jesus de Nazaré, com as tuas orações. Sabes, porém, da necessidade de não nos externarmos com pessoa alguma a esse respeito, compreendes?

A jovem fez um gesto expressivo, como quem se recordava das próprias mágoas, exclamando:

– Sim, minha mãe. Fica tranqüila. Irei com Túlia, seja aonde for, de modo a fazer as preces necessárias! Rogarei a Jesus que te faça ditosa e espero que a sua infinita bondade derramará em teu coração o bálsamo suave do seu amor, que nos enche de vida e de alegria. Então, verás como energias novas hão de felicitar o teu íntimo...

Túlia Cevina ouvia, muito interessada, aqueles conceitos, admirando os conhecimentos da jovem, o que Lucínia logo esclareceu, abraçando a filha ternamente:

– Célia conheceu intimamente, na Judéia, os assuntos atinentes ao Cristianismo. Minha filhinha, apesar de muito nova, tem sofrido bastante...

Célia, no entanto, percebendo que a palavra materna entraria em pormenores do seu doloroso romance de amor, exclamou com ternura:

– Ora, mãezinha, que poderia eu sofrer se tenho sempre o teu afeto comigo? E cortando o assunto relativo ao seu caso pessoal, obtemperou:
– A que horas deveremos sair?
– À tarde – informou Túlia –, porquanto a caminhada não será pequena; a

reunião é além da Porta Nomentana.
– Estarei preparada a tempo.
As três combinaram, então, todas as providências que lhes pareceram

indispensáveis e, ao cair da noite, envoltas em togas muito simples, Túlia e Célia tomaram uma liteira, que lhes evitou o cansaço em grande parte do caminho, através dos pontos mais freqüentados da cidade.

Descendo junto à Porta Viminal e dispensando os carregadores, empreenderam a caminhada corajosamente.

A noite desdobrava o seu leque de sombras ao longo da planície. Fazia frio, mas as duas amigas agasalharam-se nas capas de lã que levavam, ocultando a cabeça na peça grossa e escura.

Era noite fechada quando atingiram as ruínas da antiga muralha, que fortificara a região em outros tempos, mas avançavam sem desânimo, através das estradas extensas.

Franqueada a Porta Nomentana, viram-se à frente das colinas próximas, ao longo das quais se alinhavam cemitérios desertos e tristes, onde o luar se derramava em tons pálidos.

À medida que se aproximavam do local das pregações, observavam um número cada vez maior de viandantes, que se aventuravam pelas mesmas trilhas com idênticos fins. Eram vultos embuçados em longas túnicas escuras, que

passavam de flanco, a passo apressado ou vagaroso, uns silenciosos, outros mantendo diálogos quase imperceptíveis.

Muitos empunhavam lanternas pequeninas, auxiliando a visão dos companheiros, onde a claridade fraca do astro noturno não conseguia espancar as sombras espessas.

As duas patrícias, vestidas com simplicidade extrema e envergando os pesados mantos, não podiam ser identificadas na sua posição social, pelos companheiros que se dirigiam ao mesmo destino, os quais as consideravam cristãs como eles próprios, agermanados na fé e no mesmo idealismo.

Defrontando os muros lodosos que circundavam grandes monumentos em ruínas, Túlia certificou-se do local que dava acesso ao recinto, fazendo um sinal da cruz característico dos cristãos que, nos pórticos, recebiam a senha de todos os prosélitos, senha que se constituía desse mesmo sinal traçado com a mão aberta, de modo especialíssimo, mas de imitação muito fácil. Ambas passaram, então, ao interior da necrópole, sem pormenores dignos de menção.

No interior, toda uma multidão se acomodava em bancos improvisados, salientando-se que, de um modo geral, todos traziam os capuzes levantados, ocultando o rosto, alguns receando o frio intenso da noite, outros temendo os lobos da traição, que ali poderiam comparecer com a máscara de ovelhas.

A claridade lunar que banhava o recinto era auxiliada pela luz de tocheiros e lanternas, mormente em torno de um monte de ruínas fúnebres, de onde deveria falar o apóstolo daquele grupo de seguidores do Cristo.

Aqui e ali, alguém balbuciava uma prece, baixinho, como se estivesse falando ao Cordeiro do Céu, no altar do coração; mas, do centro da massa, elevavam-se hinos cheios de sublimada exaltação religiosa. Eram cânticos de esperança, tocados de singular desalento do mundo, exteriorizando o sonho cristão de um reino maravilhoso além das nuvens. Em cada verso e em cada tonalidade das vozes em conjunto, predominavam as notas de uma tristeza dolorosa, de quem havia abandonado todas as ilusões e fantasias terrestres, entregando-se à renúncia de todos os prazeres, de todos os bens da vida, para esperar as recompensas luminosas de Jesus, nas bem-aventuranças celestes...

Nos bancos improvisados, de madeira tosca ou de pedras esquecidas, acomodavam-se centenas de pessoas, concentradas em absoluto recolhimento.

Silêncio profundo reinava entre todos, quando um estrado carcomido foi transportado para o local onde se centralizavam quase todas as luzes.

Célia e Túlia tomaram o lugar que lhes pareceu mais conveniente, mas, daí a minutos, novo cântico se elevava ao Infinito, em vibrações de beleza indefinível... Era o hino de agradecimento ao Senhor pela sua misericórdia inesgotável; cada

estrofe falava dos exemplos e martírios de Jesus, com sentimento repassado da mais alta inspiração.

Qual não foi a admiração de Túlia Cevina, quando viu a companheira erguer também a voz, acompanhando o canto dos cristãos como se o soubera de cor com sua garganta cristalina. A mulher de Máximo Cunctator não sabia dissimular a emoção, contemplando Célia a cantar, qual se fosse uma ave exilada do Paraíso!... Seus olhos calmos estavam fixos no firmamento, onde parecia divisar o país da sua bem-aventurança, entre as estrelas que lucilavam no alto, como sorrisos carinhosos da noite, e aqueles versos, inspirados na música que lhes era peculiar, escapavam-se dos seus lábios com tal riqueza melódica, que a amiga se comoveu até às lágrimas, sentindo-se transportada a uma região divina...

Sim, Célia conhecia aquele cântico que lhe enchia o coração de brandas reminiscências. Ciro lho havia ensinado sob as árvores frondosas da Palestina, para que a sua alma soubesse interpretar o reconhecimento a Deus, nas horas de alegria. Naquele instante, em comunhão com todos aqueles espíritos que vibravam também a sua fé, ela sentia-se distante da Terra, como se a alma fosse tocada de um júbilo divino...

Fazendo-se silêncio novamente, um homem do povo, de nome Sérgio Hostílio, assomou à tribuna improvisada, exclamando, comovido, após abrir um rolo de pergaminhos:

– Meus irmãos, estudaremos ainda hoje os ensinamentos do Mestre, nos capítulos de Mateus, versando a lição desta noite: “aqueles que são os verdadeiros irmãos do Messias!...”

E, desenrolando a folha que o tempo desbotara, Sérgio Hostílio leu pausadamente:

“Estando Jesus a pregar ainda para a multidão, sua mãe e seus irmãos de fé, do lado de fora, procuravam falar-lhe. Então alguém lhe observou: – ‘tua mãe e teus irmãos encontram-se aí fora, procurando- te’. Respondendo a quem o advertira, disse o Mestre: ‘Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?’ E, estendendo a mão para todos os seus discípulos e seguidores, exclamou: – ‘Eis aqui minha mãe e meus irmãos, porquanto, quem quer que faça a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’.”

Terminada a leitura evangélica, o mesmo companheiro de crença, que ocupava a tribuna, falou sensibilizado:

– Meus amigos, falta-me o dom da eloqüência para ministrar o ensinamento; convido, pois, a algum dos nossos irmãos presentes para que desenvolva os precisos comentários desta noite...

Todos os olhares, inclusive o de Túlia Cevina, se alongaram, ansiosos, buscando a venerável figura de Policarpo, o abnegado apóstolo de todas as reuniões. Túlia Cevina verificava a sua ausência com grande desapontamento, em vista da fé nas suas orações e nas suas palavras sábias e benevolentes; mas Sérgio Hostílio explicou com a voz tocada de amargura:

– Irmãos, vossos olhos procuram Policarpo, ansiosamente, mas, antes de vos fornecer notícias dele, elevemos o coração até Aquele que não desdenhou o ultraje e o sacrifício...

O apóstolo da nossa fé, apesar da sua velhice santificada, por ordem do Subprefeito Quinto Bíbulo, foi recolhido na manhã de ontem aos cárceres do Esquilino!

Imploremos a misericórdia de Jesus para que possamos aceitar o cálice de nossas dores, com resignação e humildade.

Muitas mulheres começaram a chorar a ausência daquele grande varão, a quem amavam como pai, e, depois de alguns minutos, em que ninguém se abalançou a substituir-lhe o ensinamento sábio e amoroso, um homem da plebe caminhou até a tribuna e descobriu-se, fazendo o sinal da cruz, tomado de fervorosa religiosidade.

A claridade das tochas iluminou-lhe os traços fisionômicos, ao mesmo tempo que Célia e a companheira lhe identificaram o semblante humilde e decidido.

Aquele homem era Nestório, o liberto de Helvídio, que, embora auxiliando o censor Fábio Cornélio no próprio gabinete da Prefeitura dos pretorianos, não se envergonhava de dar o público testemunho da sua fé.


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Veja mais em...

Mateus 12:46

E, falando ele ainda à multidão, eis que estavam fora sua mãe e seus irmãos, pretendendo falar-lhe.

mt 12:46
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Atos 9:1

E SAULO, respirando ainda ameaças, e mortes contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote,

at 9:1
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Lucas 6:20

E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.

lc 6:20
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Mateus 11:28

Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.

mt 11:28
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Ezequiel 18:23

Desejaria eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? diz o Senhor Jeová: não desejo antes que se converta dos seus caminhos e viva?

ez 18:23
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa