Cinquenta Anos Depois

Versão para cópia
Capítulo V

O caminho expiatório

2 • 2


Temas Relacionados:

Enquanto Célia cumpre a sua missão de caridade à luz do Evangelho, voltemos a Roma, onde vamos encontrar as nossas antigas personagens.

Dez anos haviam corrido na esteira infinita do Tempo, desde que Helvídio Lúcius e família haviam experimentado as mais singulares viravoltas do destino.

Apesar de dissimularem as amarguras no meio social em que se agitavam, Fábio Cornélio e família sentiam o coração inquieto e angustiado, desde o dia infausto em que a filha mais moça de Alba Lucínia se ausentara para sempre, pelas injunções dolorosas do seu desditoso destino. Na intimidade comentava-se, às vezes, o que teria sido feito daquela que Roma relembrava tão somente como se fora uma querida morta da família. A esposa de Helvídio, essa remoia os mais tristes padecimentos morais, desde a manhã fatal em que fora cientificada dos fatos ocorridos com a filhinha.

 

Nos seus traços fisionômicos, Alba Lucínia não apresentava mais a jovialidade franca e a espontaneidade de sentimentos que sempre deixara transparecer nos dias felizes, em que o seu semblante parecia prolongar, indefinidamente, as linhas graciosas da primeira mocidade. Os tormentos íntimos vincavam-lhe as faces numa expressão de angústia recalcada. Nos olhos tristes parecia vagar um fantasma de desconfiança, que a perseguia por toda parte. Os primeiros cabelos brancos, filhos do seu espírito atormentado, figuravam-lhe na fronte como dolorosa moldura da sua virtude sofredora e desolada. Nunca pudera esquecer a filha idolatrada; que surgia no quadro de sua imaginação afetuosa, errante e aflita sob os signos tenebrosos da maldição doméstica. Por muito que a encorajasse a palavra amiga e carinhosa do esposo, que tudo fazia por manter inflexível a sua fibra corajosa e resoluta, moldada nos princípios rígidos da família romana, a pobre senhora parecia sofrer indefinidamente, como se uma enfermidade misteriosa a conduzisse traiçoeiramente para as sombras do túmulo. De nada, valiam as festas da Corte, os espetáculos, os lugares de honra nos teatros ou nos divertimentos públicos.

 

Helvídio Lúcius, se bem fizesse o possível por ocultar as próprias mágoas, buscava levantar, em vão, o ânimo abatido da companheira. Como pai, sentia, muitas vezes, o coração torturado e aflito, mas procurava fugir ao seu próprio íntimo, tentando distrair-se no turbilhão das suas atividades políticas e nas festas sociais, onde comparecia habitualmente, levado pela necessidade de escapar às meditações solitárias, nas quais o coração paterno mantinha os mais acerbos diálogos com a razão preconceituosa do mundo. Assim, sofria intensamente, entre a indecisão e a saudade, a energia e o arrependimento.

Muitas mudanças se haviam operado em Roma, desde o evento doloroso que lhe mergulhara a família em sombras espessas.

Élio Adriano,  após muitos atos de injustiça e crueldade, desde que transferira a Corte para Tibur,  havia partido para o Além, deixando o Império nas mãos generosas de Antonino,  cujo governo se caracterizava pelos feitos de concórdia e de paz, na melhor distribuição de justiça e de tolerância. O novo Imperador, contudo, conservava Fábio Cornélio como um dos melhores auxiliares da sua administração liberal e sábia. Ao antigo censor agradava, sobremaneira, essa prova da confiança imperial, salientando-se que, na sua velhice decidida e experimentada, mantinha-se em posição de franca ascendência perante os próprios senadores e outros homens de Estado, obrigados a lhe ouvirem as opiniões e pareceres.

 

Um homem havia que crescera muito na confiança do antigo censor, tornando-se o seu agente ideal em todos os serviços. Era Silano. Satisfeito por cumprir do seu velho amigo de outros tempos, Fábio Cornélio fizera do antigo combatente das Gálias  um oficial inteligente e culto, a quem prestavam o máximo de honrarias. Silano representava, de algum modo, a sua força de outra época, quando a senectude não se aproximava, obrigando o organismo ao mínimo de aventuras. Para o velho censor, o antigo recomendado de Cneio Lúcius era quase um filho, em cuja virilidade poderosa sentia ele o prolongamento das suas energias. Em todas as empresas, ambos se encontravam sempre juntos, para a execução de todas as ordens privadas de César, criando-se entre os seus espíritos a mais elevada atmosfera de afinidade e confiança.

 

Ao lado das nossas personagens, uma havia que se fechara em profundo enigma. Era Cláudia Sabina. Desde a morte de Adriano, fora relegada ao ostracismo social, recolhendo-se de novo ao anonimato da plebe, de onde emergira para as mais altas camadas do Império. De suas aventuras, ficara-lhe a fortuna monetária, que lhe permitia residir onde lhe aprouvesse, com todas as comodidades do tempo. Desgostosa, porém, com o retraimento absoluto das amizades espetaculosas dos bons tempos de prestígio social, adquirira pequena chácara nos arredores de Roma, num modesto subúrbio entre as Vias Salária  e Nomentana,  onde passou a viver entregue às suas dolorosas recordações.

Não faltavam boatos acerca de suas atividades novas e algumas de suas mais antigas relações chegavam afiançar que a viúva de Lólio Úrbico começava a entregar-se às práticas cristãs, nas catacumbas, esquecendo o passado de loucuras e desvios.

 

Na verdade, Cláudia Sabina tivera os primeiros contatos com a religião do Crucificado, mas sentia o coração assaz intoxicado de ódio para identificar-se com os postulados de amor e singeleza. Decorridos dez anos, não conseguira saber o resultado real da tragédia que armara na esteira do seu destino. Vivera com a terrível preocupação de reconquistar o homem amado, ainda que para isso tivesse de movimentar todos os bastidores do crime. Seus planos haviam fracassado. Sem o apoio de outros tempos, quando o prestígio do marido lhe propiciava uma turba de aduladores e de servos, nada conseguira, nem mesmo a palavra de Hatéria, que, amparada por Helvídio, retirara-se para o seu sítio de Benevento,  onde passou a viver na companhia dos filhos, com a máxima prudência, necessária à própria segurança.

Cláudia Sabina encontrara algum conforto para o remorso que lhe mordia a alma, mas não poderia nunca, a seu ver, conciliar o seu ódio e o seu orgulho inflexíveis com a exemplificação daquele Jesus crucificado e humilde, que prescrevera a humildade e o amor como fulcro de todas as venturas terrenas.

 

Debalde ouvira os pregadores cristãos das assembleias a que comparecera com a sua curiosidade sôfrega. As teorias de tolerância e penitência não encontraram eco no seu espírito intoxicado. E, sentindo-se desamparada no íntimo, com as penosas recordações do passado criminoso, a antiga plebeia julgava-se folha solta ao sabor dos ventos impetuosos. De quando a quando, entretanto assaltava-a o pavor da morte e do Além desconhecido. Desejava uma fé para o coração exausto das paixões do mundo; mas, se de um lado estavam os antigos deuses, que lhe não satisfaziam ao raciocínio, do outro estava aquele Jesus imaculado e santo, inacessível aos seus anseios tristes e odiosos. Por vezes, lágrimas amargas aljofravam-lhe os olhos escuros e, contudo, bem percebia que aquelas lágrimas não eram de purificação mas de desespero irremediável e profundo. Carregando no íntimo o esquife pesado dos sonhos mortos, Cláudia Sabina penetrava no crepúsculo da vida, qual náufrago cansado de lutar com as ondas de um mar tormentoso, sem a esperança de um porto, na desesperação do seu orgulho e do seu ódio nefandos.

 

O ano de 145 corria calmo, com as mesmas recordações amargas dos nossos amigos, quando alguém, nas primeiras horas da manhã de um soberbo dia de primavera, batia à porta de Helvídio com singular insistência.

Era Hatéria, que, em singulares condições de magreza e abatimento, foi levada ao interior e recebida por Alba Lucínia com simpatia e agrado.

A antiga serva parecia extremamente aflita e perturbada, mas expunha com clareza os seus pensamentos. Solicitou à antiga patroa a presença de seu pai e do esposo, afim de explanar um assunto grave.

A consorte de Helvídio conjeturou que a mulher desejava falar particularmente de algum assunto de ordem material, que a interessasse em Benevento.

Diante de tanta insistência, chamou o velho censor que, desde a morte de Júlia, passara a residir em sua companhia, convidando igualmente o esposo a atender à solicitação de Hatéria, que lhes granjeara, desde o drama de Célia, singular consideração e especial estima.

Com espanto dos dos três, a serva pedia um compartimento reservado, de modo a tratar livremente do assunto.

Fábio e Helvídio julgaram-na demente, mas a dona da casa os obrigou a acompanhá-la, afim de satisfazer o que julgavam mero capricho.

 

Reunidos num gracioso cubículo junto do tablino [escritório], Hatéria falou nervosamente, com intensa palidez no semblante:

— Venho aqui fazer uma confissão dolorosa e terrível e não sei como deva expor meus crimes de outrora!… Hoje, sou cristã, e perante Jesus preciso esclarecer aos que me dispensaram, no passado, uma estima dedicada e sincera….

— Então — perguntou Helvídio, julgando-a sob a influência de uma perturbação mental — és hoje cristã?

— Sim, meu senhor — respondeu de olhos brilhantes, enigmáticos, como que tomada de resolução extrema — sou cristã pela graça do Cordeiro de Deus, que veio a este mundo remir todos os pecadores… Até há pouco, preferiria morrer a vos revelar meus dolorosos segredos. Tencionava baixar ao túmulo com o mistério terrível do meu criminoso passado, mas, de um ano a esta parte, assisto às pregações de um homem justo, que, nos confins de Benevento, anuncia o reino dos Céus, com Jesus-Cristo, induzindo os pecadores à reparação de suas faltas. Desde a primeira vez que ouvi a promessa do Evangelho do Senhor, sinto o coração ingrato sob o peso de um grande remorso. Além disso, ensina Jesus que ninguém poderá ir a Ele sem carregar a própria cruz, de modo a segui-lo… Minha cruz é o meu pecado… Hesitei em vir, receosa das consequências desta minha revelação, mas preferi arrostar com todos os efeitos do meu crime, pois, somente assim, pressinto que terei a paz de consciência indispensável ao trabalho do sofrimento que há de regenerar minhalma? Depois da minha confissão, matai-me se quiserdes! Submetei-me ao sacrifício? Ordenai a minha morte?… Isso aliviará, de algum modo, a minha consciência denegrida!… No Alto, aquele Jesus amado, que prometeu auxílio sacrossanto a todos os cultivadores da verdade, levará em conta o meu arrependimento e dará consolo às minhas mágoas, concedendo-me os meios para redimir-me com a sua misericórdia!…

 

Então, ante a perplexidade dos três, Hatéria começou a desdobrar o drama sinistro da sua vida. Narrou os primeiros encontros com Cláudia Sabina, suas combinações, a vida particular de Lólio Úrbico, o plano sinistro para inutilizar Alba Lucínia no conceito da família e da sociedade romana; a ação de Plotina e o epílogo do trágico projeto, que terminou com o sacrifício de Célia, cuja lembrança embargava-lhe a voz numa torrente de lágrimas, em recordando a sua bondade, a sua candura, o seu sacrifício… Narrativa longa, dolorosa… Por mais de duas horas, prendeu a atenção de Fábio Cornélio e dos seus, que a escutavam estupefatos.

Ouvindo-a e considerando os pormenores da confissão, Alba Lucínia sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias, tomada de singular angústia. Helvídio tinha o peito opresso, sufocado, tentando em vão dizer uma palavra. Somente o censor, na sua inflexibilidade terrível e orgulhosa, mantinha-se firme, embora evidenciando o pavor íntimo, com uma expressão desesperada a dominar-lhe o rosto.

— Desgraçada! — murmurou Fábio Cornélio com grande esforço — até onde nos conduziste com a tua ambição desprezível e mesquinha?… Criminosa! Bruxa maldita, como não temeste o peso de nossas mãos?

 

Sua voz, porém, parecia igualmente asfixiada pela mesma emoção que empolgara os filhos.

— Vingar-me-ei de todos!… — Gritou o velho censor com a voz estrangulada.

Nesse instante, Hatéria ajoelhou-se a seus pés e murmurou:

— Fazei de mim o que quiserdes! Depois de me haver confessado, a morte me será um doce alívio?…

— Pois morrerás, infame criatura. — Disse o censor desembainhando um punhal, que reluziu à claridade do Sol, através de uma janela alta e estreita.

Mas, quando a destra parecia prestes a descer, Alba Lucínia, como que impelida por misteriosa força, deteve o braço paterno, exclamando:

— Para trás, meu pai! Cesse para sempre a tragédia dos nossos destinos!… Que adianta mais um crime?…

Mas, ao passo que Fábio Cornélio cedia, atônito, marmórea palidez se estendia ao rosto da desventurada senhora, que tombou redondamente no tapete, sob o olhar angustiado do marido, pressuroso no acudi-la.

 

Lançando, então, um olhar de fundo desprezo a Hatéria, que auxiliava o tribuno a acomodar a senhora num largo divã, o velho censor acentuou:

— Coragem, Helvídio?… Vou chamar um médico imediatamente. Deixemos esta maldita bruxa entregue à sua sorte; mas, hoje mesmo, mandarei eliminar a infame que nos envenenou a vida para sempre!…

Helvídio Lúcius desejava falar, mas não sabia se deveria aconselhar ponderação ao sogro impulsivo; ou socorrer a esposa, cujos membros estavam frios e rijos, em consequência do traumatismo moral.

Amparando Alba Lucínia, no divã, enquanto Hatéria dirigia-se ao interior para tomar as providências primeiras. Helvídio Lúcius viu o sogro ausentar-se, pisando forte.

Por mais que fizesse, o tribuno não conseguiu coordenar ideias para resolver a angustiosa situação. Levada ao leito, Alba Lucínia parecia sob o império de uma força destruidora e absoluta, que não lhe permitia recobrar os sentidos. Debalde o médico administrava poções e preconizava unguentos preciosos. Fricções medicamentosas não deram o menor resultado. Apenas os movimentos convulsos do pesadelo acusavam a pletora de energias orgânicas. As pálpebras continuavam cerradas e a respiração opressa, como a dos enfermos prestes a entrar em agonia.

 

Enquanto Helvídio Lúcius se desdobrava em cuidados e procurava tranquilizar-se, Fábio Cornélio dirigiu-se ao gabinete e, chamando Silano em particular, falou-lhe austero:

— Mais que nunca, preciso hoje da tua dedicação e dos teus serviços!

— Determinai! — Exclamou o oficial, pressuroso.

— Necessito hoje de uma diligência punitiva, para eliminar uma antiga conspiradora do Império. Há mais de dez anos, observo-lhe as manobras, porém, só agora consegui positivar os seus crimes políticos e resolvi confiar-te mais essa tarefa de singular relevância para minha administração.

— Pois bem — exclamou o rapaz serenamente — dizei do que se trata e cumprirei vossas ordens com o zelo de sempre.

— Levarás contigo Lídio e Marcos, porquanto necessito auxiliar-te com dois homens de inteira confiança.

 

E, em voz discreta, indicou ao preposto o nome da vítima, sua residência, condições sociais e tudo quanto pudesse facilitar a execução do sinistro mandado.

Por fim, acentuou com voz cavernosa:

— Mandarei que alguns soldados cerquem a chácara, de modo a prevenir qualquer tentativa de resistência dos fâmulos; e, depois de ordenares a abertura das veias dessa mulher infame, dirás que a sentença parte de minha autoridade, em nome das novas forças do Império.

— Assim o farei — retrucou o emissário resoluto.

— Trata de agir com a maior prudência. Quanto a mim, volto agora a casa, onde reclamam a minha presença. À tarde, aqui estarei para saber do ocorrido.

 

Enquanto Silano arrebanhava os auxiliares destinados à empresa, Fábio Cornélio regressava ao lar, onde baldos se faziam todos os recursos médicos para despertar Alba Lucínia do seu torpor estranho. Movimentando todos os servos, Helvídio Lúcius tudo fazia para despertar a companheira. Como louco, seu coração diluía-se amargamente em torrentes de lágrimas, e era improficuamente que recorria às promessas silenciosas aos deuses familiares. Enquanto Hatéria sentava-se humildemente à cabeceira da antiga patroa, o tribuno desdobrava-se em esforços inauditos e Fábio Cornélio passeava de um lado para outro, agitado, no interior de um gabinete próximo, ora esperando as melhoras da enferma, ora contando as horas, a fim de conhecer o resultado da comissão sinistra.

Com efeito, de tarde, o emissário do censor, rodeado de soldados e dos dois companheiros de confiança que deveriam penetrar na residência de Cláudia chegara ao aprazível sítio, arborizado e florido, onde a antiga plebeia se entregava às suas meditações, no doloroso outono de sua vida.

 

A viúva de Lólio Úrbico passara o dia entregue a reflexões amargas e angustiosas. Como se uma força misteriosa a dominasse, experimentara as sensações mais tristes e incompreensíveis. Em vão, passeara pelos deliciosos jardins da principesca residência, onde as avenidas graciosas e bem cuidadas se saturavam dos fortes perfumes da Primavera. Sentimentos estranhos e intraduzíveis sufocavam-lhe o íntimo, como se o espírito estivesse mergulhado em amaríssimos presságios. Buscou fixar o pensamento em algum ponto de referência sentimental e, todavia, o coração estava indigente de fé, qual deserto adusto.

Foi com a alma imersa em penosos cismares que viu aproximar-se, com grande surpresa, o destacamento de pretorianos.

 

Tomada de emoção, lembrando-se do que representavam aquelas pequenas expedições de terror; noutros tempos, recebeu no seu gabinete o oficial que a procurava acompanhado de dois homens espadaúdos e atléticos, com os quais trocara significativos olhares:

— Ao que devo a honra de vossa visita? — Perguntou depois de sentar-se, dirigindo a Silano um olhar de curiosidade intensa.

— Sois, de fato, a viúva do antigo prefeito Lólio Úrbico? 

— Sim… — Replicou a interpelada com displicência.

— Pois bem, eu sou Silano Pláutius e aqui estou por ordem do censor Fábio Cornélio, que, depois de longo processo, expediu a última sentença contra a vossa pessoa, esperando eu que saibais morrer dignamente, dada a vossa condição de conspiradora do Império!…

 

Cláudia ouviu aquelas palavras sentindo que o sangue se lhe gelava no coração. Uma palidez de alabastro lhe cobriu a fronte, enquanto as têmporas batiam aceleradamente. Estendeu precipitadamente as mãos a um móvel próximo, tentando utilizar uma grande campainha, mas Silano deteve-lhe o gesto exclamando com serenidade:

— É inútil qualquer resistência! A casa está cercada. Encomendai aos deuses os vossos últimos pensamentos!…

A esse tempo, obedecendo aos sinais convencionais, Lídio e Marcos, dois gigantes, avançavam para Cláudia Sabina, que mal se levantara, cambaleante… Enquanto o primeiro a amordaça impiedosamente, o segundo avançou, cortando-lhe os pulsos com uma lâmina acerada…

Cláudia, todavia, sentindo o horror da situação irremediável, entregava-se aos verdugos sem resistência, endereçando, porém, a Silano um olhar inesquecível.

Fosse, contudo, pelo pavor daquele minuto inolvidável, ou em vista de qualquer emoção irresistível e profunda, o sangue da desventurada não vazava das veias abertas. Dir-se-ia que abrasadora emoção sacudia todas as suas forças psíquicas, contrariando as leis comuns das energias orgânicas.

 

Ante o fato insólito e raramente observado nas sentenças daquela natureza, e observando o olhar angustioso e insistente que a vítima lhe dirigia, como a suplicar-lhe que a ouvisse, o oficial ordenou que Lídio sustasse o amordaçamento, afim de que a condenada pudesse fazer as suas recomendações e morresse tranquila.

Aliviada do arrocho, Cláudia Sabina exclamou em voz soturna:

— Silano Pláutius meu sangue se recusa a vazar, antes que te confesse todas as peripécias da minha vida! Afasta os teus homens deste gabinete e nada temas de uma mulher indefesa e moribunda!…

Altamente impressionado, o filho adotivo de Cneio Lúcius ordenou aos companheiros se retirassem para uma sala próxima, enquanto Cláudia, a sós com ele, atirou-se-lhe aos pés, com as veias gotejantes dizendo amargamente:

— Silano, perdoa o coração miserável que te deu a vida!… Sou tua mãe, desgraçada e criminosa, e não quero morrer sem te pedir que me vingues! Fábio Cornélio é um monstro. Odeio-o! Meu passado está cheio de sombras espessas!… Mas, quem te fez hoje um matricida é mandatário de muitos crimes!

 

O pobre rapaz contemplava a vítima, tomado de doloroso espanto. Uma brancura de neve subira-lhe ao rosto, denunciando comoções íntimas; todavia, se os olhos refletiam ansiedade angustiosa, os lábios continuavam mudos, enquanto a viúva de Lólio Úrbico lhe beijava os pés, desfeita em pranto.

Então, era ali que estava o mistério do seu nascimento e da sua vida? Dolorosa emoção dominou-o e Silano prorrompeu em soluços, que lhe rebentavam do peito saturado de angústias. Desde a morte de Cneio vinha alimentando o desejo de esclarecer o mistério do seu nascimento. Muitas vezes projetou constituir família e sentia-se desarmado perante os preconceitos sociais, pensando no futuro da prole. Em determinadas ocasiões, experimentava o desejo de abrir o pequeno medalhão que o venerando protetor lhe confiara nas vascas da morte e, contudo, um receio atroz da verdade paralisava-lhe os propósitos.

 

Enquanto as mais penosas reflexões lhe obumbravam o raciocínio, Cláudia, de joelhos, contava-lhe, detalhe por detalhe, a história dolorosa da sua vida. Estarrecido ante aquelas verdades pronunciadas por uma voz que se abeirava do túmulo, Silano inteirava-se das suas primeiras aventuras amorosas; do seu encontro com Helvídio Lúcius, nos tumultos aventurosos da vida mundana; da sua incerteza quanto à paternidade legítima e da resolução de confiá-lo a Cneio, onde sabia existir a mais carinhosa dedicação pelo nome de Helvídio, circunstância que garantiria ao enjeitado um ditoso porvir; dos golpes da sorte posterior desposando um homem de Estado; de suas combinações com Fábio Cornélio, em tempos idos, para a execução de sentenças iníquas no seio da sociedade romana, omitindo, porém, o drama terrível da sua vida em relação a Alba Lucínia. Sentindo que a iminência da morte agravava o ódio pelo censor, que a determinara, e por sua família, Cláudia Sabina dando curso aos derradeiros desvios de sua alma, deixou transparecer que a morte de Lólio Úrbico, misteriosa e inesperada, fora obra de Fábio Cornélio e seus sequazes, ávidos de sangue, afim de acarretarem a sua ruína.

 

Nos últimos instantes, levada pelo negrume do seu ódio tigrino, não vacilara em arquitetar o derradeiro castelo de calúnias e mentiras, para levar a desolação à família detestada.

Aquelas terríveis confidências soavam aos ouvidos do oficial como um clamor de vinganças que reivindicassem desforços supremos. Todavia, em consciência; não lhe bastavam apenas as emoções para identificar a verdade. Necessitava de alguma coisa que lhe falasse à razão.

Mas, como se Cláudia Sabina lhe adivinhasse os pensamentos, foi logo ao encontro das suas vacilações silenciosas:

— Silano, meu filho, Cneio Lúcius não te confiou um pequeno medalhão, que envolvi nas tuas roupinhas de enjeitado?

— Sim — disse o rapaz extremamente perturbado — trago comigo essa lembrança…

— Nunca o abriste?

— Nunca…

 

Nesse instante, porém, o emissário de Fábio revolveu uma bolsa que trazia sempre consigo, retirando o pequeno medalhão que a condenada contemplou ansiosamente.

— Aí dentro, meu filho — disse ela — escrevi um dia as seguintes palavras: Filhinho, eu te confio à generosidade alheia com a bênção dos deuses. — Cláudia Sabina.

Silano Pláutius abriu o medalhão, nervosamente, conferindo uma por uma, todas as palavras.

Foi aí que uma emoção violenta lhe abalou as faculdades. Acentuou-se a brancura de mármore que se lhe estampara na fronte. O olhar inquieto e triste tomou uma expressão vítrea, de pavor e assombro. As lágrimas secaram como se um sentimento lhe aflorasse n’alma. Cláudia Sabina, sentindo-se nos derradeiros instantes, contemplava, ansiosa; aquelas transformações súbitas.

 

Como se houvera sentido a mais radical de todas as metamorfoses, o rapaz inclinou-se para a vítima e gritou aterrado:

— Mãe!… minha mãe!…

Nas suas expressões havia um misto de sentimentos indefiníveis e profundos; elas se lhe escapavam do peito como um grito de saciedade afetuosa, depois de muitos anos de inquietação e de angústia.

Recebendo aquela suprema e doce manifestação de carinho na hora extrema, a condenada com a voz a extinguir-se, falou:

— Meu filho, perdoa-me o passado vil e tenebroso!… Os deuses me castigam fazendo-me perecer às mãos daquele a quem dei a vida!… Meu filho, meu filho, apesar de tudo, amo essas mãos que me trazem a morte!…

 

O pupilo de Cneio Lúcius inclinara-se sobre o tapete manchado de sangue. Num gesto supremo, que evidenciava sua angústia e o esquecimento do abandono materno, para considerar somente o destino doloroso que o conduzira ao matricídio, tomou nas mãos a cabeça exânime da condenada, cujo olhar, parecia, agora, rejubilar-se com os pensamentos enigmáticos e criminosos de sua alma.

Verificou-se, então, um fenômeno interessante. Como se houvera satisfeito cabalmente o último desejo, o organismo espiritual de Cláudia Sabina abandonava o corpo terrestre. Satisfeita a sua vontade psíquica; o sangue começou a jorrar em borbotões intensos e rubros, dos pulsos abertos…

Sentindo-se nos braços do oficial, que a encarava alucinado, voltou a dizer em voz entrecortada:

— Assim… meu filho… sinto… que me… perdoas!… Vinga-me!… Fábio… Cornélio… deve morrer…

 

Os singultos da agonia não lhe permitiram continuar, mas os olhos enviavam a Silano as mais singulares mensagens, que o rapaz interpretava com apelos supremos de desforra e vingança.

Quando um palor de cera lhe cobriu a fronte contraída num ricto de pavor angustiado, o mensageiro do censor abriu as portas, apresentando-se aos companheiros com a fisionomia transtornada.

Seu olhar fixo e terrível parecia de um louco. No íntimo, as mais fortes perturbações mentais premiam-lhe o espírito desolado. Sentia-se o mais ínfimo e o mais desgraçado dos seres. Apenas com uma palavra de ordem, colocou-se a caminho de volta ao centro urbano, enquanto os servos dedicados de Cláudia lhe amortalhavam o cadáver, entre lágrimas.

 

Embalde Lídio e Marcos, bem como outros pretorianos amigos lhe chamavam a atenção para esse ou aquele detalhe da empreitada, porquanto Silano Pláutius mantinha um silêncio inflexível e sombrio.

A ideia de que Fábio Cornélio lhe conhecia o passado doloroso, não vacilando em faze-lo assassino de sua mãe, bem como as histórias caluniosas de Cláudia Sabina, à extrema hora, a respeito do censor e do seu procedimento no passado, provocaram-lhe uma perturbação cerebral intraduzível.

O pensamento de que para o resto dos seus dias devia considerar-se um matricida, atormentava-o, sugerindo-lhe os mais horríveis projetos de vingança. Dominado por sentimentos inferiores, acariciava um punhal que descansava nas armaduras, antegozando o instante em que se sentisse vingado de todos os ultrajes experimentados na vida.

 

Era noitinha quando penetrou no imponente edifício onde Fábio Cornélio o esperava, num gabinete soberbo e amplamente iluminado.

O velho censor recebeu-o com visível interesse e buscando isolar-se dos presentes, inquiriu-o num canto da sala:

— Então, que novas me trazes? Tudo bem?

Silano fitava-o de olhos gáseos, como presa das mais atrozes perturbações.

— Mas, que é isso? — insistia o censor extremamente conturbado — estás enfermo?!… Que teria acontecido?…

Fábio Cornélio não pôde prosseguir, porque, sem dizer palavra, qual um alucinado em crise extrema, o oficial desembainhou o punhal, celeremente, cravando-o no peito do censor, que caiu redondamente, gritando por socorro.

 

Silano Pláutius contemplava a sua vítima com a fácies terrível dos dementes, sem dar o mínimo sinal de responsabilidade… Na sua indiferença, via o sangue do velho político escapar-se a jorros pela ferida entre a garganta e o omoplata, enquanto o ferido, nos estertores da morte, dirigia-lhe um olhar terrível… Foi nesse instante que os numerosos guardas rodearam o antigo protegido de Cneio Lúcius, eliminando-lhe igualmente a vida em rápidos segundos. Debalde, o oficial tentou resistir aos pretorianos e outros amigos do assassinado, porque, em poucos minutos, estava reduzido a frangalhos pelos golpes de espada, com que pagava a afronta ao Estado, com a perpetração do seu crime.

 

A notícia correu a cidade celeremente.

Assistido pelos amigos mais dedicados, Helvídio Lúcius precisou invocar todas as forças para não fraquejar sob golpes tão rudes.

Dada a situação delicada em que se encontrava a esposa, providenciou para que os despojos sangrentos fossem levados à residência, com especial cuidado, afim de que o quadro sinistro e doloroso não agravasse a moléstia de Alba Lucínia, na hipótese de suas melhoras, após a síncope prolongada.

Um correio célere foi despachado para Cápua, chamando Caio Fabrícius e sua mulher a Roma, imediatamente.

Entre as preocupações mais acerbas e impossibilitado de comunicar o peso que lhe oprimia o coração a qualquer amigo, dadas as penosas circunstâncias familiares em jogo, o filho de Cneio vertia lágrimas dolorosas ao lado da esposa entre a vida e a morte, enquanto Márcia assumia a direção de todos os protocolos sociais, em sua residência, para atender a quantos visitavam os despojos dos dois desaparecidos.

 

Alba Lucínia despertara e, contudo, vagava-lhe no olhar uma expressão de alheamento do mundo. Pronunciava palavras ininteligíveis, que Helvídio Lúcius daria a vida para compreender. Percebia-se que ela perdera a razão para sempre. Além disso, as síncopes renovavam-se periodicamente; como se as células cerebrais, à pressão de uma força incoercível, rebentassem, vagarosamente, uma por uma…

Obedecendo aos imperativos da situação, o tribuno expediu ordens para que os funerais do sogro e do irmão adotivo se efetuassem com a celeridade possível, tanto assim, que, antes de uma semana, chegavam, da Campânia,  Helvídia e o esposo, sem alcançarem as cerimônias fúnebres, e penetrando no lar paterno tão somente para se ajoelharem à cabeceira de Alba Lucínia, que, desde a véspera, entrara em dolorosa agonia…

 

A presença dos filhos constituiu para o tribuno um suave consolo, mas, ao seu espírito dilacerado figurava-se não haver consolação bastante, no mundo, para o coração humilhado e ferido.

Tocado nas fibras mais sensíveis, via agonizar a esposa, lentamente, como se um sicário invisível lhe houvesse cravado no coração acerado punhal. Diante da morte, cessavam todos os seus poderes, todas as suas dedicações carinhosas. Submerso num oceano de lágrimas, guardando entre as suas as mãos frias da companheira, Helvídio Lúcius não abandonou o aposento, nem mesmo para atender ao apelo dos filhos recém-chegados. Pressentindo que a morte lhe arrebataria em breve a esposa idolatrada, conservava-se à sua cabeceira, dominado pelas meditações mais atrozes.

 

De quando, em quando, emergia do abismo de suas reflexões, exclamando amargamente como se guardasse a convicção de que era ouvido pela moribunda:

— Lucínia, pois também tu me abandonas? Desperta, ilumina de novo a minha soledade!… Se te ofendi alguma vez perdoa-me. Mais não fiz que te amar muito… Vamos. Atende. Eu vencerei a morte para te guardar em meus braços! Lutarei contra todos! Junto de ti, terei forças para viver reparando os erros do passado; mas que farei sozinho e abandonado se partires para o mistério? Deuses do céu! não bastariam as ruínas do meu lar, os destroços de minha felicidade doméstica para me redimir aos vossos olhos? Tende compaixão do meu ser desventurado! Que fiz para pagar tão pesado tributo?…

 

E contemplando o céu, como se estivesse vislumbrando os numes que presidem aos destinos humanos, apontava a esposa agonizante, redizendo em voz abafada e dolorida:

— Deuses do bem, conservai-lhe a vida!…

Entretanto como se as suas rogativas morressem apagadas diante de uma esfinge, Alba Lucínia desprendia-se do mundo com uma lágrima silenciosa, ao amanhecer, enquanto os clarões rubros do sol tingiam as primeiras nuvens do céu romano, ao caricioso despontar da aurora.

Percebendo-lhe o derradeiro suspiro, Helvídio Lúcius ensimesmou-se numa tristeza indizível. Nos olhos agora secos e esquisitos, perpassava uma expressão de revolta contra todas as divindades a seu ver insensíveis aos seus padecimentos e apelos desesperados. A residência do tribuno cobriu-se, então, de crepes negros, enquanto a sua silhueta agoniada permanecia junto à urna magnífica que encerrava os despojos da companheira, qual sentinela que se houvera petrificado em desespero.

Enérgico e impassível, respondia aos apelos afetuosos dos amigos com monossílabos amargos, enquanto Caio, Helvídia e a bondosa Márcia, faziam as honras da casa.

Após uma semana de homenagens da sociedade romana, efetuou-se o funeral da inditosa senhora, que tombara, qual ave ferida, no seu profundo amor materno, enquanto o marido, curtindo a mais angustiosa soledade, sentia-se desamparado e ferido para sempre.

 

Amargurada e silenciosa, Hatéria permanecera na casa, até o instante em que os carros mortuários acompanharam Alba Lucínia às sombras do sepulcro.

Empolgada pelas tragédias que a sua revelação havia desfechado dentro daquele lar outrora tão feliz sentiu-se humilhada no mais íntimo do coração. Muitas vezes, nas horas terríveis da agonia da ex-patroa, dirigira o olhar súplice ao tribuno, afim de verificar se lhe perdoara, de modo a tranquilizar a consciência abatida. Helvídio Lúcius parecia não vê-la, indiferente à sua presença, e à sua vida…

Experimentando sinistro remorso, Hatéria abandonou a casa de Helvídio, onde se sentia como verme asqueroso, tal a angústia dos seus tristes pensamentos na dolorosa noite caída sobre a casa do tribuno, após o funeral.

Fazia frio. As sombras noturnas eram espessas, impenetráveis como as angústias que lhe gelavam o coração… A permanência ali, porém, depois do enterro, não mais era possível, em vista das amarguradas emoções que lhe vibravam nalma.

 

A velha criada saiu, então, demandando o Trastevere,  onde possuía antigas relações de amizade. Interessante é que, no percurso pelas ruas estreitas, seguira , quando compelida a abandonar o lar paterno… Depois de muito caminhar, deteve-se perto da Ponte Fabrícius,  temendo prosseguir. Era quase meia-noite e as proximidades da ilha do Tibre  estavam desertas. Quis retroceder, premida por uma força inexplicável, como se pressentisse algum perigo iminente, quando dois homens mascarados se aproximaram, quais massas escuras que se movessem rápidas entre as pesadas sombras da noite. Tentou gritar, mas era tarde. Um deles atirava-se rápido a ela, amordaçando-a fortemente.

— Lucano — dizia baixinho o desconhecido a envolver-lhe o rosto com uma toalha grossa — apalpa-a depressa! Urge terminar o serviço!…

— Ora essa — dizia o companheiro decepcionado — trata-se de uma velha desprezível!

— Não desanimes! — prosseguiu o outro — palpita-me que é boa presa. Vamos! Essas velhas costumam trazer o dinheiro oculto no seio, quando são perigosas e avarentas!…

 

O bandido que tinha as mãos livres levou-as ao tórax da velha criada de Helvídio Lúcius, sentindo que o seu coração batia acelerado. De fato, era ali que Hatéria guardava, numa bolsa reforçada, todo o cabedal sonante das suas economias. Encontrando-lhe o pequeno tesouro, ambos os malfeitores esboçaram um sorriso de satisfação e, obedecendo a um sinal do companheiro; Lucano bateu fortemente na cabeça da vítima amordaçada, com uma pequena bengala de ferro, exclamando com voz sumida, quando percebeu que ela desmaiara:

— Assim, sempre é melhor! Amanhã não poderás relatar a proeza aos vizinhos, para que as autoridades nos venham incomodar.

Em seguida, arrastaram a vítima atordoada pelos golpes rijos, atirando-a sem piedade nas águas pesadas do rio que rolava silenciosamente. Hatéria teve assim os seus últimos instantes, como a expiar o torpe delito do passado culposo.

 

Todavia, após examinarmos as derradeiras provação da velha cúmplice de Cláudia Sabina voltemos a seguir Helvídio Lúcius na sua pesada noite de sofrimentos íntimos.

Somente no dia imediato ao funeral da mulher, conseguiu o tribuno reunir os filhos num gabinete privado, confidenciando-lhes as tristes revelações que desfecharam nos terríveis acontecimentos, aniquiladores da sua ventura para todo o sempre.

Terminada a impressionante narrativa, Caio Fabrícius contou à esposa e ao sogro o encontro com Célia, dez anos antes, quando se dirigia à Campânia,  chamado por interesses urgentes. Jamais aludira ao fato, considerando o voto formal de se lembrarem da jovem tão somente como de uma morta sempre querida. Nunca esquecera aquele quadro triste, da cunhada abandonada na solidão da noite, junto à montanha de Terracina  e, muita vez, recriminou-se pelo se haver mantido indiferente e surdo aos seus apelos.

 

Helvídia e seu pai ouviam-no tomados de mágoa e assombro.

Somente aí, no exame de todos os sacrifícios da filhinha, ponderando os seus tormentos morais para isentar a família dos golpes da desventura e da calúnia, o filho de Cneio Lúcius conseguiu despertar o resquício da sua sensibilidade, para apegar-se de novo à vida. A narrativa do genro vinha indiciar que Célia vivia em qualquer parte. Lembrou-se da esposa e pôs-se a pensar que, se Alba Lucínia ainda estivesse na Terra, sentiria imenso júbilo se pudesse abraçar de novo a filha desprezada. Certamente, do Céu, a companheira querida haveria de lhe orientar os passos, abençoaria o seu esforço. E um dia, quando a providência dos deuses permitisse, a alma da esposa lhe guiaria o coração ulcerado até à filha, para que pudesse morrer beijando-lhe as mãos.

 

Mergulhado nessas cogitações angustiosas, com uma serenidade triste a clarear seus planos, Helvídio Lúcius conseguiu chorar de maneira a aliviar a íntima angústia. Suas lágrimas, agora que Helvídia as enxugava com carinho, eram como essas chuvas benéficas que lavam o céu, após o fragor da tempestade.

Então, como se o animasse uma esperança nova, o tribuno converteu as dores na  preocupação de reencontrar a filhinha expulsa do lar, fosse onde fosse, para alívio da consciência. Desejava morrer para reunir-se à companheira bem-amada, mas quisera levar-lhe também a certeza de que Célia reaparecera, e que, de joelhos, havia suplicado o perdão da filha, a quem não pudera compreender. Com esse propósito, encaminhou-se à Campânia com os filhos, de regresso a Cápua,  e, depois de alguns dias de repouso, dispensando a companhia de qualquer servo, afim de entregar-se sozinho às investigações necessárias, partiu para o Lácio,  apesar de todas as súplicas de Helvídia para que aceitasse, ao menos, a companhia do genro.

 

Triste e só, o velho tribuno perambulou inutilmente por todas as cidades próximas de Terracina, estacionando longo tempo junto à gruta de Tibério,  a evocar as penosas recordações do genro. A despeito de todos os esforços, foi em vão que viajou a Itália inteira.

Assim que, decorrido um ano da morte de Lucínia, regressou a Roma, abatido e desolado como nunca.

Sentindo-se profundamente desamparado, era qual árvore frondosa, singularmente insulada na planície extensa da vida. Enquanto mantinha a seu lado as outras companheiras, podia suportar os furacões violentos que desciam dos montes, mas, destruídos os troncos próximos, cuja presença a fortalecia, era, agora incapaz de resistir aos ventos mais leves dos vales obscuros da dor e do destino.

Recolhido ao gabinete recebia tão somente a visita dos amigos mais íntimos, cuja palavra não trouxesse ao seu espírito atormentado qualquer lembrança do passado infortunoso.

 

Um dia, porém, um escravo veio anunciar antigo camarada de infância, Rúfio Propércio, cuja história amarga dos últimos tempos ele bem conhecia. Apesar das suas próprias lutas, conhecera-lhe todas as desgraças e infortúnios.

Helvídio Lúcius mandou-o entrar, sofregamente, como irmão de dores e martírios íntimos.

Trocadas as primeiras impressões, Rúfio Propércio advertiu:

— Caro Helvídio, depois de tão longa separação, surpreende-te a minha fortaleza moral ante as hecatombes dolorosas da existência. Devo explicar-te o porquê da minha resignação e serenidade. É que hoje, abandonei nossas crenças inexpressivas para apegar-me a Jesus-Cristo, o Filho de Deus Vivo!…

— Será possível? — Exclamou o tribuno interessado.

— Sim, hoje compreendo melhor a vida e os sofrimentos neste mundo. Somente nos tesouros do ensino cristão encontrei a força indispensável à compreensão da dor e do destino. Só Jesus, com a sua lição de piedade e misericórdia, pode salvar-nos do abismo de nossas angústias profundas para uma vida melhor, que não comporta os enganos e desilusões amargas da Terra…

 

E enquanto Helvídio Lúcius o ouvia, assombrado por encontrar um amigo íntimo estabilizado na fé ardente e pura, entre os escombros da época, Propércio acrescentava:

— Já que te sentes igualmente ferido pelo destino, porque não frequentar conosco as reuniões cristãs, onde eu te poderia acompanhar? É bem possível que encontres no Evangelho a paz almejada e a energia imprescindível para triunfar de todos os tormentos da vida.

Ouvindo o carinhoso convite do amigo de infância, o tribuno lembrou-se instintivamente da filha, das suas convicções. Sim, fora, o Cristianismo que lhe dera tamanhas forças para o sofrimento e para o sacrifício. Além disso, recordou as figuras de Nestório e Ciro, que haviam caminhado para a morte sem um gemido, sem uma queixa.

Como que cedendo a uma súbita resolução, exclamou resoluto:

— Aceito o convite. Onde é a reunião?

— Numa casa humilde, junto à Porta Ápia [início da Via Ápia]. 

— Pois bem, irei mesmo, contigo.

 

Rúfio despediu-se, prometendo buscá-lo à noitinha, enquanto ele passava o resto do dia em cogitações graves e profundas.

À hora convencionada, demandaram o local das assembleias humildes, onde, pela primeira vez, Helvídio Lúcius ouviu a leitura do Evangelho e os comentários singelos dos cristãos. A princípio, estranhou aquele Jesus que perdoava e amava a todos, com o mesmo carinho e a mesma dedicação. Mas, no curso de numerosas reuniões, entendeu melhor o Evangelho e, apesar de lhe não sentir as lições inteiramente, admirava o profeta simples e amoroso que abençoava os pobres e os aflitos do mundo, prometendo um reino de luz e de amor, para além das ingratas competições da Terra.

 

Seu esforço na aquisição da fé seguia o curso comum, quando um pregador famoso surgiu um dia, naquele núcleo de gente simples e bondosa. Tratava-se de um homem ainda novo, inteligente e culto; de nome Sáulo Antônio, que fizera da existência um sacrossanto apostolado no trabalho da evangelização.

Sua palavra inflamada e vibrante sobre os Atos dos Apóstolos, logo após a partida do Cordeiro para as regiões da luz, impressionara o tribuno profundamente. Pela primeira vez, escutava um intelectual, quase sábio, a exaltar as virtudes dos seguidores do Cristo, fazendo comparações extraordinárias entre o Evangelho e as teorias do tempo, que ele se habituara a considerar como notas de evolução, inexcedíveis.

 

Terminada a preleção inspirada e brilhante, Helvídio acercou-se do orador, exclamando com sinceridade:

— Meu amigo, trago-lhe meus votos para que a sua palavra iluminada continue a clarear os caminhos da Terra. Desejava porém, ouvi-lo sobre uma dúvida que me nasceu a tempos no coração.

E enquanto o pregador lhe acolhia as palavras com profunda simpatia, continuou:

— Não duvido dos atos dos Apóstolos de Jesus, mas estranho que, de há muito tempo para cá, não haja mais, na Terra, organizações privilegiadas como a dos antigos seguidores do Cristo, que possam aliviar nossas dores e esclarecer-nos o coração nos sofrimentos!…

— Meu irmão — replicou o orador sem se perturbar — antes de recorrermos aos intermediários, urge prepararmos o coração para sentir a inspiração direta do Cordeiro. A sua objeção, porém, é muito justificável. Contudo, cumpre-me esclarecer que as vocações apostólicas não morreram para o mundo. Em toda parte elas florescem sob as bênçãos de Deus, que nunca se cansou de enviar até nós os mensageiros de sua misericórdia infinita.

 

E depois de ligeira pausa, como se desejasse transmitir uma impressão fiel de suas reminiscências mais íntimas, Sáulo Antônio acrescentou convictamente:

— Há alguns anos, era eu inimigo acérrimo do Cristianismo e dos seus divinos postulados; todavia, bastou a contribuição de um verdadeiro discípulo de Jesus, para que meus olhos se aclarassem buscando o verdadeiro caminho… Ainda hoje, lá está ele, franzino e humilde como uma flor do Céu, inaclimatável entre as urzes da Terra… Trata-se do Irmão Marinho, que, nos arredores de Alexandria, constitui uma bênção de Jesus, permanente e divina, para todas as criaturas… Imagem do bem, personificação da perfeita caridade evangélica, vi-o curar leprosos e paralíticos, restituir esperança e fé aos mais tristes e mais empedernidos! Ao seu tugúrio miserável acorrem multidões de aflitos e desamparados, que o venerável apóstolo do Cordeiro reanima e consola com as lições profundas de amor e de humildade! Depois de peregrinar pelas sendas mais escuras, tive a dita de encontrar a sua palavra carinhosa e benevolente, que me despertou para Jesus, dos negrores do meu destino!…

 

Sentindo-lhe a profunda sinceridade, Helvídio Lúcius interrogou ansioso:

— E esse homem extraordinário recebe a todos indistintamente?…

— Todas as criaturas lhe merecem atenção e amor.

— Pois meu amigo — revidou o tribuno no seu íntimo desconsolo — não obstante minha posição financeira e a consideração pública que desfruto em Roma, trago o coração acabrunhado e doente, como nunca… As lições do Evangelho têm sustentado, de algum modo, meu espírito abatido. Contudo, sinto necessidade de um remédio espiritual que, suavizando-me as dores íntimas, me leve a compreender melhor os divinos exemplos do Cordeiro… Suas referências chegam a propósito, pois irei a Alexandria buscar a consolação desse apóstolo, mesmo porque, uma viagem ao Egito, nas atuais circunstâncias da minha vida, far-me-á grande bem ao coração…

No dia seguinte, o filho de Cneio Lúcius deu os primeiros passos para efetuar a excursão com a presteza possível.

E antes que a galera largasse de Óstia,  começou a concentrar todas as suas esperanças naquele Irmão Marinho, cujas virtudes famosas eram veneradas em todas as comunidades cristãs e havido por emissário de Jesus, destinado e sustentar no mundo as tradições divinas dos tempos apostólicos.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

A Pregação do Evangelho

1 • 1

Saudado pelo olhar ansioso e confiante de todos, Nestório começou a falar, com a sua sinceridade comovida:

– Irmãos, sinto que a minha indigência espiritual não pode substituir o coração de Policarpo nesta tribuna, mas o fogo sagrado da fé precisa manter-se nas almas!

Assumindo a responsabilidade da palavra, esta noite, recordo a minha infância para vos dizer que vi João, o apóstolo do Senhor, que, por longos anos, iluminou a igreja de Éfeso!

O grande evangelista, nos seus arroubos de fé, falava-nos do céu e de suas visões consoladoras... Seu coração estava em permanente contacto com o do Mestre, de quem recebia a inspiração divina, como derradeiro discípulo na Terra, santificando-se as suas lições e as suas palavras com o sopro sublimado das verdades celestes!...

Invoco estas reminiscências longínquas, para recordar que o Senhor é a misericórdia infinita. Na minha pobreza material e moral, não tenho vivido senão pela sua bondade inesgotável e quero invocar a sua assistência caridosa para o meu coração, neste momento.

Desde criança, tenho os olhos voltados para os sublimes ensinamentos do seu amor e parece-me, também, havê-lo visto no seu apostolado de luz, pela nossa redenção, na face escura da Terra. Às vezes, como que impulsionado por um mecanismo de emoções maravilhosas, tenho a doce impressão de ainda o estar vendo junto ao Tiberíades, a ensinar a verdade e o amor, a humildade e a salvação!... Figura-se-me, freqüentemente, que aquelas águas claras e sagradas cantam-me no coração um hino de eterna esperança e, apesar dos véus espessos da minha cegueira, sinto que o contemplo em Nazaré ou em Cafarnaum, em Cesaréia ou em Betsaida, arrebanhando as ovelhas desgarradas do seu aprisco.

Sim, irmãos, o Mestre nunca nos abandonou, no seu apostolado divino. Seu olhar percuciente vai buscar o pecador no mais recôndito socavão da iniqüidade, e é pela sua ternura infinita que conseguimos caminhar indenes nos desfiladeiros do crime e do infortúnio!...

Por muito tempo, falou Nestório das suas lembranças mais gratas ao coração.

Sua infância na Grécia, as descrições suaves de João Evangelista aos discípulos queridos; as pregações e exemplos do Senhor, suas visões nos planos celestiais, as reminiscências do Presbítero Johanes, a quem o inesquecível

apóstolo havia confiado os textos manuscritos do seu evangelho, era tudo exposto à assembléia pelo liberto, com as cores mais vivas e impressionantes.

Ouvia-lhe o auditório a palavra, comovido, como se os Espíritos, transportados ao pretérito nas asas da imaginação, estivessem contemplando todos os acontecimentos relacionados com a narrativa.

A própria Túlia Cevina, que não conhecia o Cristianismo senão pela rama, mostrava-se profundamente sensibilizada. Quanto a Célia, acolhia-o alegremente, admirando-lhe a coragem e a fé, em face da sua futurosa posição material junto de seu pai, e meditando, ao mesmo tempo, na circunstância de ele nunca haver revelado suas crenças, nem mesmo nas aulas que lhe ministrara, evidenciando assim o respeito que lhe mereciam as crenças alheias.

Depois de relatadas as reminiscências de Éfeso com os seus vultos mais eminentes, falou para comentar a leitura da noite:

– Para tanger o ponto evangélico desta noite, lembremos que Jesus não podia condenar os laços humanos e sacrossantos da família, mas suas palavras, proferidas para a Eternidade, abrangem e abrangerão todas as situações e todos os séculos vindouros, de modo a demonstrar que a fraternidade é o seu alvo e que todos nós, homens e grupos, coletividades e povos, somos membros de uma comunidade universal, fraternidade, essa, que um dia nos integrará a todos como irmãos bem-amados, e para sempre.

Seus ensinamentos referiam-se àqueles que, cumprindo a vontade soberana e justa do Pai que está nos céus, marcham na vanguarda dos caminhos humanos, em demanda do seu reino de amor, cheio de belezas imperecíveis!

Os que sabem acatar, neste mundo, os desígnios de Deus, com humildade e tolerância, com resignação e com amor, chegarão mais depressa junto daquele que se nos revelou há cem anos como Caminho, Verdade e Vida! Esses Espíritos amorosos e justos, que se iluminaram interiormente pela compreensão e aplicação dos ensinos em toda a vida, estarão mais perto do seu coração misericordioso, cujas pulsações sagradas repercutem em nosso próprio ser, pela magnanimidade infinita que sentimos em torno de nossa alma, em todos os passos desta vida!... Tais criaturas são desde já seus irmãos mais próximos, pela iluminação evangélica no cumprimento das leis do amor e do perdão.

Dentro, pois, dessas luzes prodigiosas da Verdade, sentimo-nos compelidos a dilatar o conceito de família no plano universalista, alijando o criminoso egoísmo que, por vezes, nos toma de assalto o coração, criando os germes da discórdia e do sofrimento no próprio lar.

Se um homem é a partícula divina da coletividade, o lar é a célula sagrada de todo o edifício da civilização. Um homem divorciado do bem e um lar

envenenado pelos desvios do sentimento, operam os desequilíbrios singulares que atormentam os povos!...

Jesus conhecia todas as nossas necessidades e ajuizou de nossa situação, não apenas em vista da época que passa, mas de todos os séculos do futuro.

Acredito que o Evangelho não poderá ser integralmente compreendido em nossos tempos amargos, de devassidão e decadência; todavia, enquanto as forças mais poderosas do mundo se concentram neste Império cheio de orgulho e impiedade, outras energias profundas trabalham o seu organismo atormentado, preparando o advento das civilizações do porvir.

Até agora, as águias romanas dominam todas as regiões e todos os mares; mas dia virá em que esses símbolos de ambição e tirania hão de rolar dos seus pedestais, numa tempestade de cinzas e de sombras!... Outros povos serão chamados a dirigir os movimentos do mundo. Mas, enquanto o espírito agressivo da guerra permanecer entre os homens, qual monstro de ruína e de sangue, é sinal de que as criaturas não se realizaram interiormente para serem os irmãos do Mestre, puros e pacíficos.

A Terra viverá as suas fases evolutivas de dor e de experiências dolorosas, até que a compreensão perfeita do Messias floresça em todo o mundo, para as almas.

Até agora, o Cristianismo tem medrado com as lágrimas e o sangue de seus mártires; mas os Espíritos do Senhor, cujas vozes ouvi na mocidade, nas sagradas reuniões da igreja de Éfeso, asseveravam aos discípulos de João que, não levará muito tempo, o proselitismo do Cristo será chamado a colaborar nas esferas políticas do mundo, para dissipar a treva e a confusão da sua rede de enganos...

Nessa época, meus irmãos, talvez que a doutrina do Mestre venha a sofrer o insulto daqueles que navegam no vasto oceano dos poderes terrestres, cheios de vaidade e despotismo. É possível que espíritos turbulentos e endurecidos tentem subverter os valores da nossa fé, desvirtuando-a com as exterioridades do politeísmo, mas, ai dos que operarem semelhante atentado, em face das verdades que nos orientam e consolam!...

Nos esforços da fé, jamais esqueçamos a exortação do Senhor às mulheres de Jerusalém, que pranteavam ao vê-Lo avergado sob o madeiro infamante: – “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos, porque dias virão em que se dirá: – Ditosas as estéreis, ditosos os ventres que nunca geraram e os seios que nunca amamentaram! Pôr-se-ão todos os homens a dizer aos montes: Caí sobre nós! e às colinas: Cobri-nos! Porque, se assim procedem com o lenho verde, que se fará, então, com o lenho seco?!”

Ai de quantos abusarem em nome dAquele que nos assiste do Céu e conhece nossos mais recônditos pensamentos, pois, mais tarde, conforme o prometeu, a luz do Alto se derramará sobre toda a carne e a voz dos céus será ouvida na Terra, através dos mais doces ensinamentos e das mais elevadas profecias! Se falharem os homens, hão de vir até nós os exércitos de seus anjos, atestando a sua misericórdia...

É que, meus irmãos, o reino de Jesus deve ser fundado sobre os corações, sobre as almas, e não poderá conciliar-se nunca, neste mundo, com qualquer expressão política de egoísmo humano ou de doutrinas de violência, que estruturam os Estados da Terra!

O reino do Senhor sofrerá, por muito tempo, “a abominação do lugar santo”, pela falsa interpretação dos homens, mas chegará a época em que a Humanidade, hoje decadente e corrompida, se sentirá a caminho de uma Jerusalém gloriosa e libertada!...

Guardemos na mente a convicção de que o reino de Jesus não está nos templos ou nos manuscritos materiais que o Tempo se incumbirá de aniquilar em sua passagem incessante e, sim, que os alicerces divinos têm de ser construídos no íntimo do homem, de modo que cada alma possa edificá-lo por si mesma, à custa de esforços e lágrimas, a caminho das moradas gloriosas do Infinito, onde nos aguardarão, depois da jornada, as bênçãos do Cordeiro de Deus, que se imolou na cruz, para nos redimir do infortúnio e do pecado!...

Depois de uma prece, Nestório terminava sob o olhar carinhoso e comovido de quantos lhe acompanharam a palavra fluente, através das considerações de ordem evangélica.

Alguns assistentes choravam, sensibilizados, casando as impressões do orador com as suas próprias.

Nessas assembléias primitivas, quando o messianismo doutrinário estava saturado de ensinamentos puros e simples, o expositor da Boa Nova era obrigado a elucidar os pontos evangélicos em relação com a vida prática de alguém que estivesse em dúvida.

Assim foi que, após a elocução, numerosos confrades se acercaram do prolator, solicitando-lhe a opinião fraterna e simples.

– Meu amigo – perguntava um dos estudiosos presentes –, como explicar a diferença sensível entre os evangelhos de Mateus e de João, ou entre as narrações de Lucas e as epístolas de Paulo? Não foram todos apóstolos do ensinamento cristão e inspirados do Espírito Santo?

– Sim – esclareceu o interpelado –, mas convenhamos que a cada trabalhador concedeu Jesus uma tarefa. Se Lucas e Mateus nos mostraram o

pastor de Israel encaminhando as ovelhas tresmalhadas ao aprisco da verdade e da vida, Paulo e João nos revelaram o Cristo Divino, Filho do Deus Vivo, na sua sublimada missão universalista, a redimir o mundo.

– Nestório – obtemperava outro, pouco zeloso da paz interior pela meditação e pelo estudo –, que será de mim, vitimado pelas intrigas e calúnias dos vizinhos?... Quero aprender e progredir na fé, mas a provocação da maledicência não mo permite.

– E, acaso poderás ir a Jesus, deixando-te encarcerar pelas opiniões do mundo?! – explicava solícito o liberto de Helvídio. – A ciência do bem-viver não está somente em nos não incomodarmos com os pensamentos e atos de quem quer que seja, mas em deixar, também, que os outros se importem constantemente com a nossa própria vida.

– Mestre – exclamava ainda uma senhora de semblante idoso e triste, dirigindo-se ao ex-escravo –, meus sofrimentos extravasam do cálice!... Rogai por mim para que Jesus me atenda às rogativas!...

– Irmã – respondia Nestório algo veemente –, esquecestes que Jesus recomendou jamais nos chamássemos “mestres” uns aos outros? Não sou senão servo humilde dos seus servos, indigno de sacudir o pó das sandálias do único e divino Mestre. Não vos entregueis a tristezas e lamentações, porque, no problema da fé, somente vós mesma podereis dar a Jesus o testemunho do vosso amor e da vossa confiança. Ao demais, importa lembrar que a Terra não é o Paraíso, atentos à recomendação do Messias de que, para atingir a ventura celestial, é preciso tomar com humildade a nossa cruz, e segui-Lo.

Nesse instante, rompendo a multidão de crentes em redor, Nestório reconheceu Célia e Túlia, que se acercavam atenciosamente. O liberto saudou-as tomado de surpresa, enquanto a jovem lhe dirigia palavras de júbilo e simpatia.

– Nestório – exclamou Célia, radiante –, porque nunca me falaste das tuas convicções, da tua fé?

– Filha, nada obstante o meu fervor cristão, não podia menosprezar os princípios da família que me concedeu a liberdade.

Ambos estavam alegres e felizes, experimentando o contentamento da mútua comunhão na mesma fé, quando uma surpresa maior lhes abalou o espírito.

Enquanto a maioria dos companheiros se punha a caminho, de regresso à cidade, pois que a madrugada se avizinhava, destacou-se de todos os grupos um jovem forte e simpático, que se aproximou da tribuna com os olhos fulgurantes de ansiedade e alegria. Acercou-se de Nestório e de Célia, com os braços estendidos, ao mesmo tempo que o liberto e a jovem patrícia exclamavam, com a mesma voz, tocada de emoção e profundo júbilo:

– Ciro!... Ciro!...
– Meu pai! Célia!
E o mancebo quase os reuniu no mesmo amplexo de amor e felicidade.
Túlia Cevina contemplava a cena comovedora, com o coração em

sobressalto. Alba Lucínia já lhe falara do drama íntimo da filha e a mulher de Máximo custava a conformar-se com a circunstância de haver conduzido a jovem àquele encontro de conseqüências imprevisíveis.

A ausência de Policarpo, que a inibia de solicitar a prece pela ventura doméstica da amiga, segundo a sua fé; o fato de se haverem avistado com Nestório, quando preferia o segredo de sua presença ali e o encontro inesperado de Ciro, eram acontecimentos que a contrariavam profundamente, mas Célia, radiante, sem poder traduzir o seu júbilo com o saber que Nestório era pai do seu noivo espiritual, apresentou-lhe o jovem que a patrícia foi obrigada a saudar atenciosamente, em virtude das circunstâncias.

O ex-cativo abraçava o filho com os olhos úmidos de pranto, enviando a Jesus o seu íntimo reconhecimento e manifestando a sua real surpresa ao saber que o filho era também um liberto de Helvídio Lucius, aumentando, assim, o seu reconhecimento pelos seus libertadores.

E, enquanto todos se retiravam, o grupo palestrava com crescente interesse.

A uma pergunta de Célia, o jovem explicou que no porto de Cesaréia fora entregue ao comandante Quinto Vetus, que, amigo pessoal de Helvídio, fizera absoluta questão de lhe conservar a liberdade, conduzindo-o às costas da Campânia, com excepcional gentileza. Dali, uma embarcação o trouxera até Óstia, entre o pessoal da equipagem, deliberando ele então permanecer em Roma, na vaga esperança de obter notícias do pai ou daquela que lhe enchia o coração de lembranças carinhosas e perenes.

Célia sorria, satisfeita, sentindo-se, naquele cemitério ermo e triste, a mais ditosa das criaturas.

O luar, porém, já havia desaparecido. Apenas as estrelas, no manto escuro do firmamento, brilhavam com cintilações mais intensas, preludiando o dealbar da aurora.

Túlia Cevina lembrou, então, a conveniência de regressarem quanto antes.

Nestório sentia-se possuído do imenso desejo de ouvir o filho a respeito de todos os fatos do passado, de modo a conhecer os mais íntimos pormenores da sua separação dolorosa e longa, mas, observando a sua intimidade com a jovem patrícia, abstinha-se de muitas palavras, guardando atitude expectante e calma, embora adivinhasse o romance de amor daquelas duas criaturas mal-saídas da adolescência. O ex-escravo mantinha a sua atitude reservada e, enquanto Túlia

Cevina se mostrava apreensiva, os dois jovens falavam, em todo o trajeto, de suas reminiscências ou de suas esperanças em Jesus, à claridade amiga das estrelas que empalideciam no firmamento.

De mistura com os regressantes, vinham, agora, campônios descuidados e felizes, que se dirigiam ao pequeno perímetro urbano nas primeiras horas da madrugada, levando os produtos do seu campo para as feiras. Todavia, no grupo das nossas personagens, ninguém observou que dois vultos as seguiam de perto com insistente atenção, embora irreconhecíveis, em razão dos capuzes que lhes cobriam o rosto.

Nestório e Ciro acompanharam as duas patrícias até as proximidades da residência de Helvídio Lucius, onde Túlia Cevina se recolheu, em identidade de circunstâncias, obedecendo ao plano preestabelecido, voltando pai e filho pelos mesmos caminhos, até próximo da Porta Salária, onde se acomodaram no apartamento do primeiro.

Foi aí que Nestório, absolutamente insone, em virtude das emoções daquela noite, ouviu a narrativa do filho até ao amanhecer, capacitando-se de que uma nova fase de sacrifícios lhe seria imposta pelas circunstâncias em jogo.

O Sol já havia espalhado seus raios de ouro por toda parte, quando o liberto de Helvídio, algo acabrunhado, apesar do júbilo de rever o filho estremecido, falou-lhe, abraçando-o com ternura:

– Meu filho, regozijo-me no Senhor pela alegria de te encontrar livre e salvo, com o pensamento iluminado pelas nossas profundas esperanças em Jesus-Cristo, mas temo por ti, doravante, como pai extremoso e desvelado.

Acredito que, apesar da fé que me testemunhas, não soubeste dominar o coração moço e idealista, no momento oportuno, pois, já que entendias a vida qual a compreendes agora, estavas apto a reconhecer a inutilidade de qualquer fantasia no que se refere às venturas transitórias do mundo!... Mas, por outro lado, louvo-te a conduta honesta e me rejubilo com o teu esforço na santificação do teu afeto.

Sou de opinião que seremos agora chamados aos mais penosos testemunhos de coragem moral, porquanto a família de Célia não toleraria, jamais, uma pretensão tua...

Mas, descansa, filho! Precisas de energia e de repouso! Quanto a mim, o sono agora ser-me-ia impossível... Aproveitarei o tempo para ir ao Velabro, onde me guiarei por tuas informações, a fim de transportar para aqui os objetos que te pertencem e, ao mesmo tempo, avisarei o censor Fábio Cornélio da impossibilidade de trabalhar hoje.

E, acentuando as palavras com um sorriso de satisfação, rematava:

– Doravante, estaremos sempre juntos para a mesma tarefa e aqui permaneceremos até quando Jesus no-lo permita.

Ciro, em resposta, beijou-lhe as mãos comovidamente.

Antes de se dirigir ao Velabro, que era um dos bairros mais pobres e mais populares de Roma, o liberto procurou a Prefeitura dos pretorianos, ali se avistando com o lictor Domítio Fulvius, pessoa de confiança dos seus chefes, solicitando-lhe cientificasse o censor do seu impedimento naquele dia e providenciando, em seguida, para que a mudança do filho para sua casa se efetuasse com a possível presteza.

Sentia o coração apreensivo e amargurado em face dos acontecimentos e, todavia, colocava a fé acima de tudo, rogando a Jesus lhe concedesse a inspiração devida, para o aclaramento de todos os problemas.

Quanto a Túlia Cevina, algo desapontada, informou a amiga, pela manhã, dos fatos singulares que haviam ocorrido. Alba Lucínia ouvia-a, assaz surpreendida, experimentando o coração pejado de amargas expectativas. Chamou a filha ao seu gabinete de repouso, mas, notando-lhe a serenidade e recebendo-lhe a promessa de guardar inteira observância às recomendações paternas, buscou tranqüilizar-se a si mesma, de modo a minorar as próprias mágoas.

Chegando ao seu gabinete, manhã alta, Fábio Cornélio foi procurado com insistência por Pausanias, que, ainda em Roma, guardava a chefia dos servos da casa de seu genro, e que lhe falou, depois de respeitosa reverência:

– Ilustre Censor, aqui venho obedecendo a um desígnio sagrado dos deuses, a fim de vos informar de graves acontecimentos ocorridos esta noite.

– Mas, como? Graves acontecimentos? – perguntou o sogro de Helvídio, visivelmente impressionado.

E Pausanias relatou-lhe, então, todo o ocorrido, asseverando haver seguido as duas senhoras, dado o seu zelo carinhoso por todos os assuntos atinentes ao nome e à posição de seu amo, saturando as suas afirmativas de expressões bajuladoras ou exageradas, para melhor impressionar a sua autoridade e o seu prestígio.

– Mas Nestório é cristão? – interrogou o censor, admirado. – Custa-me a acreditá-lo.

– Senhor, pelas graças de Júpiter, estou afirmando a verdade! – respondeu Pausanias com a sua atitude humilde à frente do mais poderoso.

– Helvídio agiu muito precipitadamente – falou o orgulhoso patrício como se estivesse falando para si mesmo – conferindo a tal homem tamanha

responsabilidade em nossa esfera de trabalho; todavia, tomarei ainda hoje todas as providências que o caso requer e agradeço os teus bons serviços.

Pausanias retirou-se, enquanto Fábio Cornélio, que também não ignorava o romance de Ciro e da neta, tomava-se de cólera contra os dois ex-escravos, que lhe vinham perturbar a tranqüilidade doméstica.

Considerando a ausência do genro que ainda se conservava em Tibur, deu todas as providências julgadas indispensáveis, sem vacilar no cumprimento de suas íntimas decisões, em relação ao assunto.

Nas primeiras horas da tarde, um destacamento de pretorianos chegava à habitação coletiva, onde se alojavam pai e filho, em cumprimento das ordens emanadas da justiça imperial.

Chamados, os dois libertos compreenderam a gravidade da situação, concluindo que alguém os houvera denunciado e traído. Abraçaram-se em prece mútua, como se desejassem renovar os protestos de confiança e de fé na Providência Divina, prometendo-se um ao outro o máximo de coragem e resignação nos transes angustiosos que entreviam à frente.

Junto dos soldados, perguntou Nestório, com serenidade, ao lictor que os chefiava:

– Que me queres, Pompônio?

– Nestório – retrucou o chefe do destacamento, seu conhecido pessoal e seu amigo –, venho da parte do censor Fábio Cornélio, que ordenou tua prisão, bem como a de teu filho, recomendando-nos o máximo cuidado para que não fugissem.

Em seguida, mostrou-lhes a ordem manuscrita, desenrolando o pergaminho, ao que o liberto retrucou:

– Porventura chegaste a supor que te resistiríamos? Guarda a ordem e não te preocupes com a espada, pois a melhor arma não é a de quem ordena, mas de quem sabe obedecer.

Isso posto, os prisioneiros se colocaram à frente dos soldados, em direção à Prefeitura, onde o censor fazia questão de interrogar, a sós, o ex-auxiliar do seu cargo.

Separado de Ciro, recolhido a uma ante-sala sob a vigilância dos pretorianos, foi Nestório conduzido a um compartimento amplo, onde, minutos após, chegava o velho romano, evidenciando no olhar a cólera dos seus brios ofendidos.

– Nestório – exclamou rudemente –, fui informado de graves ocorrências verificadas esta noite. Não posso compreender a situação sem te ouvir de perto, de maneira a inutilizares, negativamente, as denúncias trazidas à minha autoridade.

– Interrogai, senhor – disse o ex-cativo com respeitosa tranqüilidade –, e vos responderei com a sinceridade do meu caráter.

– És cristão? – perguntou o censor com profundo interesse.
– Sim, pela graça de Deus.
– Que absurdo! – revidou Fábio Cornélio escandalizado. – E porque nos

enganaste dessa forma? Consideras razoável zombar da consideração que nos é dispensada? É assim que retribuis a estima e confiança a ti dispensadas?

– Senhor – retrucou o ex-cativo, penalizado –, sempre pautei minhas atitudes no maior respeito às posições e crenças alheias; quanto a vos haver iludido, peço vênia para esclarecer melhor as vossas afirmativas, pois ninguém, até hoje, me exigiu, aqui, qualquer declaração concernente às minhas convicções religiosas.

Fábio Cornélio compreendeu a serenidade do homem que tinha à sua frente, considerando inútil apelar para essa ou aquela circunstância, a fim de lhe arranjar uma negativa, como remédio à situação delicada entre ambos, e, mirando-o de alto a baixo com profunda altivez, acentuou com energia:

– Considero as tuas afirmações afrontosas à minha autoridade, além de estar recebendo, simultaneamente, de tua parte o máximo de ingratidão para com quem te ofereceu a mão de benfeitor e amigo.

– Mas, senhor, será insulto, porventura, o dizer-se a verdade? – perguntou Nestório ansioso por se fazer compreendido.

– E sabes a punição que te espera? – revidou o velho censor mal-humorado.

– Não posso temer os castigos do corpo, tendo a consciência tranqüila e edificada.

– Isso é demais! Tua palavra será sempre a de um escravo intratável e odioso!... Basta! Cientificarei Helvídio do teu detestável procedimento.

E chamando Pompônio Gratus para ouvir-lhe as declarações, o orgulhoso patrício retirou-se do recinto, pisando forte, enquanto Nestório era obrigado a relatar a sua condição de adepto e propagandista do Cristianismo, reafirmando ser pai de Ciro e fornecendo outros informes, de maneira a satisfazer a autoridade com a exposição dos seus antecedentes.

– Nestório – exclamou Pompônio Gratus, assumindo ares de importância, na qualidade de inquiridor para o caso no momento –, não ignoras que as tuas afirmativas constituirão a base de um processo, cujo resultado será a tua condenação. Sabes que o Imperador tem sido justo e magnânimo para todos os que se arrependem a tempo de atitudes como a tua, desarrazoadas e infelizes. Por que não renuncias, agora, a semelhantes bruxedos?

– Negar a fé cristã seria trair a própria consciência – replicou o liberto calmamente. – Além disso, nada fiz que me pudesse induzir ao arrependimento.

– Mas não eras um escravo? Se vieste de condição penosa e miseranda, porque não transigir com as tuas idéias pessoais em sinal de gratidão para com aqueles que te deram a independência?

– No cativeiro nunca deixei de cultivar a verdade, como a melhor maneira de honrar os meus senhores; mas, ainda assim, sempre tive um outro jugo, suave e leve – o de Jesus. E agora, acredito que o Divino Senhor me convoca ao testemunho!...

– Cavas o abismo de teus males com as próprias mãos – disse o lictor com indiferença.

E acentuando as palavras, com o mais fundo interesse, acrescentou:

– Agora, faz-se mister digas onde se reúnem essas assembléias, para que as autoridades se orientem na campanha de expurgar a cidade dos elementos mais perigosos.

– Pompônio Gratus – replicou Nestório altivamente –, não posso esclarecer- te neste particular, pois o sincero adepto de Jesus não conhece a delação nem sabe fugir à responsabilidade da sua fé, acusando seus irmãos.

O lictor irritou-se, revidando com acrimônia:
– E não temes os castigos que te forçarão a fazê-lo em tempo oportuno?
– De modo algum. Chamados ao testemunho de Jesus-Cristo, não podemos

temer conveniências mundanas.
Pompônio, contudo, esboçou um gesto expressivo, como quem se havia

lembrado de uma providência nova, e acentuou:
– Aliás, temos outros recursos para encontrar esses conspiradores idiotas.

Ouviremos, ainda hoje, nesta chefia, os que prestaram as devidas informações a teu respeito.

– Sim – replicou o liberto sem se perturbar –, esses poderão esclarecer melhor a justiça do Império.

Em seguida, um grupo de soldados armados a caráter saía da Prefeitura, escoltando os dois acusados até à Prisão Mamertina, onde foram alojados num dos mais úmidos calabouços.

Não bastaram somente os novos informes de Pausanias, que o lictor Pompônio Gratus, conforme autorização do censor Fábio Cornélio, fizera questão de convocar para lhe facilitar as investigações.

Nesse mesmo dia um vulto penetrava na residência de Lólio Úrbico, ao cair das sombras do crepúsculo, para dar idêntica denúncia.

Era Hatéria, que, independentemente de Pausanias, também fora às catacumbas, em descargo das suas atividades odiosas, pondo em jogo a sua habilidade e astúcia para trazer Cláudia Sabina inteirada de quanto ocorria.

Assim que, antes de regressar a Tibur, após uma semana de repouso no lar, a antiga plebéia notificou a Quinto Bíbulo os ajuntamentos do Cristianismo além da Porta Nomentana, pintando-lhe quadros terroristas, de feição a exacerbar o receio das conjuras, que caracterizava os administradores políticos da época.

Numerosos destacamentos de pretorianos compareceram ao cemitério abandonado, na reunião subseqüente.

Centenas de prisões foram efetuadas.

Os calabouços escuros do Capitólio e os cárceres do Esquilino ficaram repletos e a circunstância mais grave é que, entre os prisioneiros, figuravam pessoas de todas as classes sociais.

Irritado, o Imperador mandou que se instaurassem processos individuais, a fim de apurar todas as responsabilidades isoladas, designando numerosos dignitários da Corte para a devassa imprescindível.

Élio Adriano nunca procedeu como Nero, que ordenava o extermínio dos cristãos sem cogitar da culpa de cada indivíduo, de conformidade com os dispositivos legais, conforme a evolução jurídica do Estado Romano; mas também não perdoou, jamais, aos adeptos do Cristo que tivessem a coragem moral de não trair a sua fé, perante a sua autoridade, ou de seus prepostos.

O inquérito começou terrível e sombrio.

Famílias desesperadas de dor acorriam às prisões, implorando piedade aos algozes.

Quantos abjurassem da crença em Jesus, diante da imagem de Júpiter Capitolino, jurando-lhe eterna fidelidade, podiam regressar livremente ao lar, retomando os bens da liberdade e da vida; os que se não prosternassem ante o ídolo romano, mantendo inabalável a fé cristã, podiam contar com o flagício e, quiçá, com a morte.

Entre mais de três centenas de criaturas, apenas trinta e cinco reafirmaram a sua fé em Jesus-Cristo, com sinceridade e fervor irredutíveis.

Para essas, as portas do cárcere se fecharam, sem piedade e sem esperança. Entre os condenados, estavam Nestório e seu filho, que, fiéis a Jesus, repousavam nos seus desígnios misericordiosos, convictos de que qualquer sacrifício, em favor da sua causa, era uma porta aberta para a luz e para a liberdade.


Este texto está incorreto?

Veja mais em...

João 14:6

Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim.

jo 14:6
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Lucas 23:27

E seguia-o grande multidão de povo e de mulheres, as quais batiam nos peitos, e o lamentavam.

lc 23:27
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Atos 2:17

E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos mancebos terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos;

at 2:17
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Mateus 24:15

Quando pois virdes que a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel, está no lugar santo; quem lê, atenda;

mt 24:15
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Apocalipse 21:1

E VI um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.

ap 21:1
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Mateus 16:24

Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me;

mt 16:24
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa