Cinquenta Anos Depois

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Capítulo VII

Nas Esferas Espirituais

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Prestando as derradeiras homenagens ao Irmão Marinho, os religiosos do mosteiro conheceram a verdade dolorosa. Só então, certificaram-se de que o caluniado irmão dos pobres e da infância desvalida era uma virgem cristã, que exemplificava, entre eles, as mais elevadas virtudes evangélicas.

Diante do fato imprevisto e passada a comoção do espanto, todos os monges, inclusive Epifânio, se prosternavam humildes, banhados no pranto da compunção e do arrependimento.

Debalde procuraram investigar a origem e antecedentes da jovem mártir, para só conservarem da sua pessoa e dos seus feitos imorredoura lembrança, afim de poderem, mais tarde, justificar a sua exemplificação santificante.

 

Cheio de amargura, o velho superior da comunidade reclamou a presença de Menênio Túlio e da filha, para que se esclarecesse a pérfida calúnia, mas, ante o cadáver da virgem cristã e, recordando a sua humildade, Brunehilda perdeu a razão, para sempre.

Nunca mais, a figura de Célia foi olvidada pelos religiosos, pelos crentes, pelos desventurados e pelos aflitos. Convertida em símbolo de amor e piedade, sua memória centralizou, nos arredores de Alexandria, os votos e rogativas das almas fervorosas e sinceras.

 

Mas, acompanhando nossas principais personagens à vida do além-túmulo, antes de iniciarem novas lutas remissoras, vamos encontrá-las em grupos dispersos, conforme o seu estado consciencial, às vésperas de regressarem, convocadas ao esforço coletivo nos sagrados institutos da família.

À exceção de Célia, chamada a um mundo superior e onde lhe foi concedida a tarefa de velar pela evolução dos seus entes bem-amados, os demais permaneciam nas Esferas mais próximas da Terra, regiões de trabalho e de luta, buscando cada qual armazenar energias novas para subsequentes esforços no Plano material.

 

De todo o grupo, as personalidades de Cláudia Sabina, Lólio Úrbico,  Fábio Cornélio e Silano Pláutius eram as que se conservavam nas regiões mais rasas e mais sombrias, atento o doloroso estado de consciência que as caracterizava.

Em esferas mais elevadas, Helvídio Lúcius junto de quantos lhe foram familiares, inclusive Ciro, repousavam do trabalho, esforçando-se, em conjunto, por fixar as bases espirituais, asseguradoras de êxito futuro.

Algumas personagens, como Nestório e Policarpo,  faziam grandes excursões pelos arredores sombrios do planeta, cooperando com os mensageiros de Jesus, que pregavam a Boa-Nova aos Espíritos desalentados e sofredores, levando a efeito o mais sadio aprendizado evangélico para as lutas do futuro nos ambientes terrenos, onde prosseguiriam, mais tarde, no abençoado labor de redenção do passado culposo.

 

A vida cariciosa do Plano espiritual constituía, para todos, um conforto suave.

Continuamente, os grandes portadores das determinações divinas ensinavam aí as verdades do Mestre, enchendo os corações de paz e de esperança.

As almas afins, reunidas em grupos familiares, sabem apreciar, fora das vibrações pesadas do mundo físico, os bens supremos da verdade e da paz, sob os laços sublimes do amor e da sabedoria.

Examinadas as disposições felizes dessas Esferas, cuja intimidade encantadora não poderemos descrever aos leitores humanos, vamos encontrar o agrupamento de Cneio Lúcius na região de repouso em que todas as nossas personagens se encontravam, embaladas na carícia suave de numerosos afetos dos séculos longínquos.

Tudo era uma carinhosa esperança nos corações e um generoso propósito nas almas.

Os nobres projetos, com vistas ao porvir, sucediam-se uns aos outros.

 

No grupo em que a tranquilidade se estampava no espírito de todos os componentes, esperava-se Júlia Spínter que, em companhia de Nestório, descera aos ambientes inferiores do orbe terrestre, tentando acordar com o seu amor os sentimentos entorpecidos do companheiro, que se mantinha nas mesmas atitudes de ódio e vingança.

— É inútil — dizia Cneio Lúcius, bondosamente, dirigindo-se aos filhos e aos amigos — é inútil mantermos propósitos de vindita depois das lutas terrestres, pois a reencarnação, nesse caso, soluciona todos os problemas! Na minha última ida a Roma, tive ocasião de ver o Imperador Élio Adriano  no corpo miserável do filhinho de uma escrava. Desde essa hora, tenho ponderado bastante os nossos deveres e a necessidade de recebermos com o maior amor a vontade divina.

 

— Sim — exclamava Lésio Munácio, então presente — nas minhas excursões evangélicas pelas zonas inferiores, tenho encontrado antigos nobres de nossa época, que suplicam a Deus uma nova oportunidade na Terra, sem escolherem as condições do futuro aprendizado.

— O conhecimento no Espaço — aventava Helvídio Lúcius — parece que nos enche o coração de profunda dedicação pelo sofrimento. Em face da grandeza divina e reconhecendo, aqui, a nossa insignificância, sentimo-nos capazes de todas as tarefas de redenção, porquanto, agora, aos nosso olhos, os maiores feitos da Terra são ações humildes e pequeninas.

— Grande é a misericórdia de Jesus — dizia Cneio — que nos concedeu os patrimônios da vida eterna.

 

Enquanto a conversação ia animada com o concurso de Alba Lucínia e da sua antiga serva, regressaram Nestório e Júlia Spínter da sua excursão de amor e de fraternidade.

A velha matrona trazia o semblante desolado, fornecendo aos companheiros o testemunho de sua amargura e de suas lágrimas.

— Então, minha mãe — exclamou Lucínia abraçando-a, ao mesmo tempo que usava a linguagem amiga e carinhosa da Terra — conseguiste alguma coisa?

— Por enquanto, filhinha — retrucava Júlia Spínter enxugando as lágrimas — todos os meus esforços resultam inúteis. Infelizmente, Fábio não trabalha, intimamente, por adquirir a suprema compreensão das grandes leis da vida. Encarcerado nos seus pensamentos tristes não cede, absolutamente, às minhas súplicas!…

 

— Entretanto — elucidava Nestório aos companheiros, que lhe ouviam a palavra com interesse — Policarpo  já se prepara, junto de quantos o acompanham na luta, para a próxima reencarnação coletiva. A nossa não poderá tardar muito. O único obstáculo que parece retardar nossa marcha é a ausência de uma compreensão perfeita daquele inolvidável ensinamento de Jesus, quanto ao perdão de setenta vezes sete vezes. (Mt 18:21)

— Bastaria perdoarmos para que o Senhor nos permitisse voltar ao trabalho santificante? — Perguntou Cneio Lúcius, intencionalmente.

— Sim — esclarecia Nestório na sua fé — o perdão sincero é uma grande conquista da alma.

 

Nesse comenos, Cneio Lúcius preparava os filhos que se entreolhavam com alguma tristeza, pela dificuldade que tinham em esquecer os atos de Lólio Úrbico e de Cláudia Sabina.

— De minha parte — dizia Júlia Spínter resignada — não tenho coisa alguma a perdoar aos outros. Desde a minha desencarnação roguei insistentemente a Jesus que me fizesse esquecer todas as expressões de orgulho e amor-próprio.

— Muito bem, minha irmã — advertia Cneio com um sorriso sereno — um coração feminino é inacessível aos sentimentos de ódio e represália.

E como percebera que os presentes relembravam, no íntimo, os atos de Cláudia, em face de sua alusão generalizada, acrescentou com bondade:

— A mulher que odeia é uma dolorosa exceção no caminho da vida, pois Deus confiou às almas femininas o seu ministério mais santo, no seio da criação infinita!

 

Todos compreenderam os seus generosos pensamentos e louvavam as suas ideias fraternais, quando Hatéria murmurou:

— Tenho suplicado ao Senhor dos Mundos que me faça digna de viver junto de Cneio Lúcius nos meus próximo trabalhos.

— Ora, filha — retrucou o ancião com um sorriso — bem sei que nada valho, mas terei imenso júbilo se te puder ser útil alguma vez… Apenas te recomendo que, de futuro, deves temer o dinheiro como o pior inimigo da nossa tranquilidade.

Todos sorriram a essa alusão e a palestra continuou animada.

 

Algum tempo se passou, ainda, enquanto o coração das nossas personagens se retemperavam nas ideias do amor e do bem, da fraternidade e da luz, esperando as novas lutas.

Um dia, porém, um mensageiro das alturas veio convocar o grupo de Cneio Lúcius a comparecer perante os numes tutelares que lhe presidiam os destinos, de modo a efetuar-se a livre escolha das provações futuras.

Examinados os projetos de esforço, com a livre cooperação de todos os que se achavam em condições evolutivas, imprescindíveis ao ato de resolução e de escolha, na esfera da responsabilidade individual, o grupo de Cneio Lúcius continuava aguardando as determinações superiores para regressar à Terra.

 

De vez em quando, observavam-se, entre as nossas personagens, pequeninas impressões como estas:

— Uma das situações que mais receio — exclamava Helvídio Lúcius — é a vida em comum com Lólio Úrbico, pois temo que ele reincida nas tendências inferiores da sua personalidade.

— Convence-lo-emos pela dedicação e pelo amor — esclarecia Alba Lucínia. — Tenho suplicado a Jesus que nos conceda forças para tanto e estarei constantemente ao teu lado, a fim de podermos transfundir os seus sentimentos em fraternidade e afeição espiritual.

— Sim, meus filhos — ponderava o experiente e generoso Cneio Lúcius — precisamos amar muito! Somente com a renúncia sincera poderemos alcançar o reino de luz, prometido pelo Salvador. Entre todos os que ficarão sob a nossa responsabilidade, no porvir, uma alma existe, credora da nossa compaixão mais profunda!…

 

E como Helvídio e a companheira silenciassem, adivinhando-lhe os pensamentos, o ancião continuou:

— Refiro-me à Cláudia Sabina, que ainda tem o coração como um deserto árido. As últimas visitas que lhe fiz, na região das sombras, deixaram-me envolto num véu de amargura!… Remorsos terríveis transformaram-lhe o mundo psíquico num caos de angustiosas perturbações! Debalde lhe tenho falado de Deus e de sua inesgotável misericórdia, porquanto, na caligem de seus pensamentos, não consegue perceber as nossas advertências consoladoras.

Alba Lucínia e o companheiro ouviram-no comovidas e, todavia, abstiveram-se de comentar o doloroso assunto.

 

Hatéria, entretanto, que lhe bebia avidamente as palavras, objetou, deixando entrever os amargos receios que lhe povoavam a mente:

— Meu generoso protetor, já fui notificada de que o meu roteiro de lutas se verificará em linhas paralelas ao de Cláudia Sabina, em vista de meus erros imperdoáveis; contudo, suplico o vosso amparo, apesar das novas energias que me felicitam a alma. Cláudia é autoritária e insinuante e, se hoje se encontra acabrunhada e ensandecida, em virtude dos sofrimentos no Plano invisível, não duvido que, novamente na Terra, procure retomar a sua feição de orgulho e mandonismo.

— Filha — ponderava o ancião com um leve sorriso — Jesus velará por nós, concedendo-nos a força precisa para o desempenho dos nossos deveres mais sagrados.

 

Júlia Spínter acompanhava as impressões de todos com amoroso interesse e exclamava, por vezes:

— Eu tudo daria por cultivar em nosso meio, no porvir que se aproxima, a paz perpétua e a harmonia duradoura. Repararei minhas faltas do passado, buscando compreender a essência do Cristianismo, para cuja luz eterna hei de conduzir o coração de Fábio, com o amparo do Cordeiro de Deus, que há de ouvir minhas sinceras rogativas…

 

A vida do grupo do venerando Cneio Lúcius decorria, assim, em expectativas promissoras para o futuro. Cada qual, erguendo muito alto o coração, buscava aprender, cada vez mais e melhor, os ensinamentos de Jesus, de modo a recordar a sua claridade sublime entre as sombras espessas da Terra.

Os grupos afins de Policarpo e de Lésio Munácio já haviam regressado aos labores do mundo, quando as nossas personagens foram chamadas à determinação superior, afim de baixarem aos tormentos e lutas purificadoras do ambiente terrestre.

Tomados de veneração e de esperança, acomodaram-se perante os executores da justiça divina, enquanto ao seu lado estacionava quase uma centena de companheiros, incluindo escravos, serviçais e amigos de outrora.

 

No recinto espiritual, de beleza maravilhosa, intraduzível na pobre linguagem humana, havia a cariciosa vibração de uma prece coletiva, que se escapava de todos os peitos, plenos de receio e de esperança.

— Irmãos — começou de dizer um mentor divino, a cuja responsabilidade estava afeta a direção daquele amistoso conclave — breve estareis de novo na Terra, onde sereis convocados a praticar os divinos ensinamentos adquiridos no Plano espiritual!… Agradeçamos à misericórdia do Senhor, que nos concede as preciosas oportunidades do trabalho a favor de nossa própria redenção, em marcha incessante para o amor e para a sabedoria. Vós que partis, amai a luta redentora, como se deve amar uma alvorada divina! Aqui, sob a luz da bondade infinita do Cordeiro de Deus, a alma egressa do mundo pode descansar de suas profundas mágoas. Os corações ulcerados se retemperam junto à fonte inesgotável do consolo evangélico; mas, acima de nossas frontes, há um reino de amor perene e de paz inolvidável, que necessitamos conquistar com os mais altos valores da consciência! Adquiristes aqui os mais elevados conhecimentos, em matéria de sabedoria e amor; experimentastes o bafejo de sublimes consolações, como somente poderá senti-las o Espírito liberto das sombras e angústias materiais; observastes a beleza e a ventura que aguardam, no Infinito, as almas redimidas; todavia, é necessário regressardes à carne, afim de poderdes experimentar o valor do vosso aprendizado! É na Terra, escola dolorosa e bendita da alma, que se desdobra o campo imenso de nossas realizações. Os erros de outrora devem ser reparados lá mesmo, entre as suas sombras angustiosas e espessas!… Enquanto se reparam, na sua superfície, os desvios das épocas remotas, faz-se mister aplicar nas suas estradas sombrias os ensinamentos recebidos do Alto, em virtude do acréscimo de misericórdia de Jesus, que não nos desampara. Na Terra está o aprendizado melhor e a aqui vigora o exame elevado e justo. Lá é a sementeira, aqui a colheita. Voltai novamente aos carreiros terrestres e reparai o passado doloroso!… Abraçai os vossos inimigos de ontem, para vos aproximardes dos vossos benfeitores no porvir! Fechai as portas da exaltação no mundo e sede surdos às ambições! Edificai o reino de Jesus no imo, porque, um dia, a morte vos arrebatará de novo às angústias e mentiras humanas, para as análises proveitosas. A exemplificação de Jesus é o modelo de todos os corações. Não vos queixeis da orientação precisa, porque, em toda parte do mundo, como em todas as ideias religiosas e doutrinas filosóficas, há uma atalaia de Deus esclarecendo a consciência das criaturas! O mundo tem as suas lágrimas penosas e as suas lutas incruentas. Nas suas sendas de espinhos torturantes se congregam todos os fantasmas dos sofrimentos e das tentações, e sereis compelidos a positivar os vossos valores intrínsecos. Amai, porém, a luta como se os seus benefícios fossem os de um pão espiritual, imprescindível e precioso!… Depois de todas as conquistas que o Plano terrestre vos possa proporcionar, sereis, então, promovidos aos mundos de regeneração e de paz, onde preparareis o coração e a inteligência para os reinos da luz e da bem-aventurança supremas!…

 

A palavra sábia e inspirada do esclarecido mentor do Alto era ouvida com singular atenção.

Em dado instante, porém, sua voz esclareceu, depois de uma pausa:

— Agora, irmãos bem-amados, encontrareis aqui os adversários de ontem, para a conciliação e para os trabalhos futuros. Escolhestes e delineastes o mapa de vossas provas, porquanto já possuís a noção de responsabilidade e a precisa educação psíquica, para colaborar nesse esforço dos vossos guias!… Nossos irmãos infelizes, entretanto, ainda não possuem essas condições evolutivas e serão compelidos a aceitar as decisões daqueles gênios tutelares, que lhes acompanham a trajetória na trama dos destinos humanos… E esses gênios do bem deliberaram que eles vivam convosco, que aprendam nos vossos atos, que vibrem nas vossas experiências do futuro! Os executores dessas elevadas resoluções os trouxeram a todos, afim de se processar a decisão final com o vosso concurso, nesta assembleia de divinos ensinamentos. Tendes, pois, o direito de escolher, entre eles, os companheiros do porvir, sem vos esquecerdes de que, nestes momentos, pode o nosso coração dar as melhores provas de compreensão daquele “amai-vos uns aos outros”, (Jo 15:12) da lição do Evangelho, onde repousa a base da nossa suprema evolução para os Planos divinos!…

 

Nossas personagens entreolharam-se ansiosas.

A esse tempo, contudo, algumas entidades penetravam no recinto. Atrás dos vultos nobres de alguns Espíritos caridosos e amigos, vinham Cláudia Sabina, Fábio Cornélio, Silano Pláutius, Lólio Úrbico e, um pouco distantes, numerosos servos de outrora, comparsas dos mesmos erros e das mesmas ilusões dos nossos amigos, como, por exemplo, Pausânias, Plotina, Quinto Bíbulo, Pompônio Grátus, Lídio, Marcos e outros, enquanto o recinto se povoava de suas vibrações estranhas, saturadas de amargura indefinível.

A maior parte demonstrava surpresa amarga e dolorosa.

Quase todos se conservavam cabisbaixos e tristes, fazendo ouvir, de quando em quando, soluços dolorosos.

 

Observando a penosa impressão dos filhos e sentindo que ambos se encontravam sob as tenazes de indecisão angustiosa, Cneio Lúcius suplicava ao Senhor que o inspirasse quanto à melhor maneira de sacrificar-se pelos filhos bem-amados, conciliando o seu afeto com as próprias necessidades deles, em face do futuro.

Então, viu-se que o generoso velhinho levantava-se com desassombro e serenidade e, caminhando para a desolada Cláudia Sabina, que não ousara erguer os olhos saturados de lágrimas, falar-lhe com infinita brandura:

— Já que a misericórdia de Jesus-Cristo me faculta a escolha dos que viverão comigo, considerar-te-ei, minha irmã, desde já como filha, a quem devo consagrar uma afeição duradoura e divina!…

 

E, abraçando-a generosamente, concluía:

— De futuro permanecerás no meu lar, afim de transfundirmos o ódio e a vingança em fraternidade sublime e sacrossanta… Comerás do nosso pão, participarás das minhas alegrias e das minhas dores, serás irmã de meus filhos!…

Cláudia Sabina soluçava, sensibilizada pelo amor daquela alma devotada e generosa.

Hatéria, levantando-se, caminhou até Cneio Lúcius e lhe beijou as mãos, que, naquele instante, estavam luminosas e translúcidas.

A esse tempo, Júlia Spínter amparava o coração desolado do companheiro, abraçando Silano Pláutius e prometendo-lhe o seu auxílio devotado e amigo, no curso das lutas planetárias.

 

Foi aí que Helvídio Lúcius e Alba Lucínia se levantaram e dirigindo-se a Lólio Úrbico, que se ajoelhara como oprimido por um tormento implacável, estenderam-lhe os braços fraternos, prometendo-lhe amor e dedicação.

Continuando a mesma obra de solidariedade e devotamento, todos chamaram a si esse ou aquele antigo servo, bem como os comparsas de seus feitos passados, afim de associá-los aos seus esforços no futuro.

 

Terminada essa tarefa bendita, o mentor da reunião perguntou serenamente:

— Todos estais certos de haver suficientemente perdoado?

Amargurado silêncio… No íntimo, as nossas personagens experimentavam, ainda, certas dificuldades para esquecer o passado. Helvídio Lúcius não olvidara as perseguições de Lólio Úrbico; Alba Lucínia não esquecera as ações de Sabina, e Fábio Cornélio, por sua vez, apesar dos sofrimentos, não se sentia capaz de perdoar o crime de Silano.

 

A indecisão era geral, mas uma luz branda e misericordiosa começou a verter do alto, atingindo em cheio todos os corações. Sem exceção de um só, todos os membros do grupo de Cneio Lúcius começaram a chorar, possuídos de emoção indefinível.

A um só tempo, divisaram no Alto a figura sublime de Célia, que lhes acenava cheia de ternura e de carinho.

Movidos, então, por um doce mistério, deram guarida a um perdão sincero e puro, sentindo-se reciprocamente tocados de profunda piedade.

Como se as substâncias do ambiente fossem sensíveis ao estado íntimo dos presentes, uma claridade doce e branda começou a fazer-se em torno, enquanto a maioria das nossas personagens chorava enternecida.

 

Entremostrando um sorriso suave, o mentor exclamou:

— Graças à misericórdia do Altíssimo, sinto que todos regressais aos Planos terrestres com uma vibração nova, que vos edifica o coração e a consciência nas mais formosas expressões de espiritualidade! Que as bênçãos do Senhor encham de luz e de paz os vossos caminhos no porvir!… Sede felizes! Todos os segredos da ventura estão no amor e no trabalho da consciência redimida!… Esquecei o passado umbroso e dolorido e atirai-vos à luta remissora, com heroísmo e humildade… Sinto que estais irmanados pela mesma vibração de piedade e faço votos a Deus para que compreendais, em todas as circunstâncias, que somos irmãos pelas mesmas fraquezas e pelas mesmas quedas, a caminho da redenção suprema, nas luzes do Infinito!…

 

Em face da palavra carinhosa e sábia do mensageiro divino que os dirigia, os nossos amigos sentiam-se confortados por uma nova luz, que lhes esclarecia o imo com a mais bela compreensão da existência real.

A visão de Célia havia desaparecido, mas, como se a sua grande alma estivesse assistindo à cena comovedora através das luminosas cortinas do Ilimitado, ouviu-se em vibrações cariciosas, provindas do Alto, um hino maravilhoso, cantado por centenas de vozes infantis, derramando em todos os corações a coragem e o amor, a consolação e a esperança… As estrofes harmoniosas atravessavam o recinto e elevavam-se para as Alturas em notas melodiosas, subindo para o sólio de Jesus, qual incenso divino! Era um brado de fé e de incitamento, que fazia nascer nas almas dos presentes as mais piedosas lágrimas.

 

Em seguida, sob as preces dos carinhosos amigos e benfeitores espirituais, que ficavam no Plano invisível, todos os membros do grupo de Cneio Lúcius abandonavam o recinto, reunidos numa caravana fraterna, em direção às Esferas mais inferiores que envolvem o planeta terrestre.

Nessa hora, havia entre todos o bom desejo de consolidar uma paz íntima, antes de recomeçar a luta.

Foi então que Cláudia Sabina, num gesto espontâneo, aproximou-se de Alba Lucínia e exclamou com angustiada expressão:

— Não me atrevo a chamar-vos irmã, pois fui outrora o impiedoso verdugo de vosso coração sensível e bondoso!… Mas, por quem sois, pelos sentimentos generosos que vos exornam a alma, perdoai-me mais uma vez. Fui o algoz e vós a vítima; todavia, bem vedes aqui a minha ruína dolorosa. Dai-me o vosso perdão para que eu sinta a claridade do meu novo dia!…

 

Cneio Lúcius contemplou a nora, com evidente ansiedade, como a implorar-lhe clemência.

Alba Lucínia compreendeu a gravidade daquele instante e, vencendo as hesitações que lhe turbavam o espírito, murmurou comovida:

— Estais perdoada… Deus me auxiliará a esquecer o passado, para que a genuína fraternidade se faça entre nós, nas lutas do futuro!…

Júlia Spínter fitou a filha, deixando transparecer o júbilo que lhe ia no coração, em vista do seu gesto generoso, ao mesmo tempo que Cneio Lúcius envolvia a companheira de Helvídio num olhar caricioso de satisfação e de profundo reconhecimento.

 

Enquanto a maioria das personagens trocava ideias sobre o porvir, surgia, ao longe, a atmosfera do planeta terrestre, envolta num turbilhão de sombras espessas.

Alguém falou com voz melancólica e imponente, do seio da caravana:

— Eis a nossa escola milenária!…

Decididos na sua fé, olhos para o alto, implorando a misericórdia divina, guiados todos eles pelas forças esclarecidas do bem, que os envolviam, penetraram a atmosfera planetária, habilitados a uma compreensão cada vez mais elevada e mais nobre, dos valores eficientes do trabalho e da luta.

 

Apenas Nestório conservava-se em oração junto dos fluidos terrenos, notando-se-lhe os olhos mareados de lágrimas, na comoção daquela hora cheia de apreensões e de esperanças.

— Senhor — exclamava o antigo escravo, evocando amargurosas lembranças — novamente na Terra, escola abençoada de nossas almas, contamos com a vossa misericordiosa complacência, afim de cumprirmos todos os nossos deveres, a caminho do arrependimento e da reparação. Auxiliai-nos na luta! Somente os séculos de trabalho e dor poderão anular os séculos de egoísmo, orgulho e ambição, que nos conduziram à iniquidade!… Perdoai-nos, Jesus! dignai-vos abençoar nossas aspirações sinceras e humildes!… Ensinai-nos a amar o planeta com as suas paisagens procelosas, afim de podermos encontrar, nas sendas terrestres, a luz da nossa regeneração espiritual, a caminho do vosso reino de paz indestrutível!…

 

Entre as lágrimas de suas rogativas, Nestório foi o último a imergir na vastidão dos fluidos planetários.

Do Alto, porém, emanava uma claridade branda e compassiva. Toda a caravana sentiu o bafejo divino de uma esperança nova, atirando-se ao ambiente da Terra, tomada de uma coragem redentora. Reconfortados na meditação e na prece, os corações adivinhavam que a luz da Providência Divina seguiria as suas experiências na dor e no trabalho, como uma bênção.




Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

Nas Festas de Adriano

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Cneio Lucius notou que a visita da neta aos condenados produzira efeitos grandemente benéficos. Apesar do abatimento, Célia mostrava-se corajosa na fé, mais calma e bem disposta. Contudo, o velho avô, considerando a sensibilidade do seu afetuoso coração de menina, providenciou junto dos filhos para que ela ficasse em sua companhia até a passagem das festas do casamento de Helvídia.

Neste ínterim, não podemos esquecer que a esposa de Lólio Úrbico, novamente em Roma, ia freqüentes vezes à Suburra, onde mantinha os mais íntimos colóquios com a vendedora de sortilégios, já conhecida.

Horas a fio, Cláudia e Plotina trocavam idéias à surdina, assentando providências criminosas ou arquitetando planos sinistros, salientando-se que Hatéria, havendo conquistado o máximo da estima dos patrões, trazia a antiga plebéia informada de todos os fatos atinentes à vida íntima do casal.

Nas vésperas do enlace de Helvídia, vamos encontrar a Capital do Império na agitação característica das épocas festivas.

Preparando-se para a sua derradeira romagem a um dos centros mais antigos do mundo, Adriano desejava brindar o povo romano com espetáculos inesquecíveis.

Em tais ocasiões, as autoridades políticas aproximavam-se do sentimento popular, alimentando-lhe as vibrações de extravagância e de alegria. A inauguração de novos edifícios, os preparativos da viagem e a adesão do povo ao programa oficial justificavam os mais altos caprichos da magnanimidade imperial. Por toda parte verificava-se o frêmito dos trabalhos extraordinários, enchendo a cidade de improvisações transformadoras. Construções de novas arcadas, pontes ou aquedutos provisórios, distribuições de trigo e vinho, organização de préstitos religiosos, homenagens a templos especializados, loterias populares e, por fim, o circo com as suas novidades inexcedíveis.

O povo esperava sempre tais manifestações, com júbilo incontido.

Instalado no Palatino, Élio Adriano cogitava de distrair as massas romanas, organizando comemorações dessa natureza, movimentando as autoridades e induzindo a guardar, porém, intimamente, o objetivo principal de todas as atividades, que era o de sua viagem à Grécia, cujas graças já lhe haviam conquistado a mais ampla simpatia. O grande Imperador, classificado na História como o maior benfeitor das cidades antigas, onde se havia erguido o berço da cultura e da civilização, projetava as melhores construções para Atenas, bem

como o estudo especializado das ruínas de toda a Hélade, de modo a beneficiar o patrimônio grego na medida de todos os seus recursos.

No limiar dos acontecimentos, vamos encontrar o soberano na intimidade de Cláudia Sabina e de Flegon, seu secretário de confiança, analisando os pormenores do cruzeiro que as galeras imperiais haveriam de fazer pelas águas mediterrâneas.

A certa altura, Adriano interpela o secretário:

– Senécio, já cumpriste minhas ordens concernentes à expedição dos convites?

– Por Júpiter! – exclamou Flegon satisfeito – nunca me esqueceria de cumprir, a preceito, uma determinação de Augusto.

– Como vê – disse o Imperador, dirigindo-se a Cláudia –, tudo está pronto e em ordem de marcha. Entretanto, necessito de alguém que me acompanhe, não tanto com o senso de arte ou de crítica, mas com o propósito de trabalho, atento ao meu desejo de transportar para Tibur algumas colunas célebres e outras soberbas relíquias das ruínas de Fócida e Corinto. Tenciono ornar os nossos edifícios com os tesouros do mundo antigo. Não poderei dispensar, no meu retiro de Tibur, as visões do jardim dos deuses, com as suas sugestões preciosas ao meu espírito.

A mulher do prefeito ouviu-o com particular atenção e, aproveitando a oportunidade para realizar seus projetos, aventou, fingindo o maior desinteresse:

– Divino, o filho de Cneio figura na lista dos vossos convidados?

– Não. Helvídio Lucius seria um excelente companheiro, mas, abstive-me de incomodá-lo, atento as suas condições especialíssimas de homem casado e chefe de família.

– Ora – replicou displicentemente a antiga plebéia –, haveis de permitir discorde um tanto do vosso pensar, a respeito. Acaso não tenho também um lar a exigir dedicação e cuidados? Não vou separar-me do esposo, que aqui ficará retido pelos deveres do seu cargo? No entanto, considero-me honrada em vos acompanhar, obedecendo à circunstância de representardes, para nós outros, o soberano e o chefe magnânimo. Acredito que o genro de Fábio pensará comigo, sem discrepância. Daqui a dois dias, realizam-se os esponsais da sua filha mais velha, sob as vossas vistas magnânimas. Ele que recebeu tantos favores de vossas mãos generosas, poderia desdenhar o ensejo de vos ser útil em alguma coisa?

Depois de uma pausa em que seus olhos fixaram profundamente o Imperador, de modo a recolher o íntimo efeito de suas palavras, continuou:

– Conhecendo pessoalmente as obras de Tibur, que tanto seduzem o gosto artístico, penso que só um esteta como Helvídio poderia operar o milagre de

escolher o precioso material e superintender o seu transporte para Tibur. Além do mais, Divino, creio que essa viagem, ausentando-nos de Roma por mais de um ano, seria sobremaneira agradável ao seu ânimo de patrício!... Novas possibilidades, novas realizações e novas perspectivas, penso, lhe granjeariam vantagens para a própria família, visto que o Império, representado em vossa magnanimidade, saberia recompensar-lhe todos os méritos.

Élio Adriano meditou um instante, enquanto o secretário tomava alguns apontamentos.

A seguir, levando em conta as observações de Cláudia, que o fixava ansiosa, respondeu solícito:

– Tens razão. Helvídio Lucius é o homem que procuro. Sabina fez um gesto expressivo de satisfação, enquanto o Imperador incumbia Flegon de levar em seu nome o respectivo convite.

Colhido pelo mensageiro no meio das atividades festivas do lar, o tribuno surpreendeu-se grandemente. Não esperava um ato daquela natureza. Outrem poderia honrar-se com a gentileza; ele, porém, sentimental por índole, preferia a paz doméstica, longe do turbilhão de bagatelas frívolas da Corte. A viagem à Grécia, em tais condições, afigurava-se-lhe aborrecida e inoportuna. Além disso, deveria partir dentro de uma semana. E quem poderia pensar no regresso? O soberano estava habituado a fazer excursões longas e freqüentes, através do mundo antigo. Na viagem de 124, estivera ausente de Roma por mais de três anos consecutivos, e tanto se apaixonara por Atenas que chegara ao extremo de se iniciar, pessoalmente, nos mistérios de Elêusis.

Todavia, antes que as reflexões penosas lhe anulassem de todo o ânimo, chamou a esposa ao tablino, onde examinaram atentamente o assunto.

– Por mim – exclamou o tribuno com o seu espírito resoluto –, procurarei esquivar-me, desistir do convite. Essas ausências de Roma, com a separação da família, transtornam-me o pensamento. Sinto-me deslocado, aborrecido, insatisfeito.

Alba Lucínia ouvia-lhe as afirmativas com o coração alarmado. Para o seu espírito sensível, semelhantes perspectivas eram assaz amargas e perturbadoras. Certo, Cláudia Sabina iria também à Hélade distante, e por tempo que ninguém poderia precisar. Anuir à viagem do esposo era entregá-lo às seduções inferiores daquela mulher, cujos sentimentos inconfessáveis a sua intuição feminina pressentia. Mas não só isso a preocupava. A sua situação em Roma tornar-se-ia novamente penosa durante a ausência do companheiro. Lólio, sem dúvida, voltaria a assediá-la com mais veemência e teimosia.

Pensou em falar a Helvídio, cientificá-lo de todos os fatos ocorridos na sua ausência, expor-lhe com sinceridade os seus escrúpulos, mas, logo, à mente lhe veio a figura paterna. Fábio Cornélio dependia, absolutamente, do prestígio e do apoio do prefeito, e do seu velho genitor dependiam sua mãe e seus irmãozinhos inexperientes.

Num relance, a nobre senhora compreendeu a impossibilidade de manifestar suas queixas diretas, em tais circunstâncias da vida, e, recordando-se ainda da gentileza do Imperador para com a filha, assegurando-lhe generosamente o futuro, sentiu que a voz da gratidão deveria falar mais alto que as conveniências pessoais.

– Helvídio – murmurou ela depois de viver intensamente as suas lutas íntimas –, ninguém mais que eu poderá sentir a tua ausência. Sabes que a tua presença no lar constitui a minha proteção e a de nossa família, mas o dever, querido, onde fica o dever nas atuais circunstâncias de nossa vida? O convite do Imperador não deverá representar para nós uma prova de confiança? E a generosidade de Adriano para conosco? A dádiva de Cápua não se verificou de modo a cativar-nos para sempre?

– Tudo isso é verdade – confirmou o tribuno calmamente –, mas eu odeio esse totalitarismo do Império, que nos rouba a autonomia individual e nos anula a própria vontade.

– Contudo, precisamos refletir para nos adaptarmos às circunstâncias – obtemperou a esposa, de maneira a confortar o espírito abatido do companheiro.

– Não é somente a política que me impressiona desagradavelmente – disse Helvídio desabafando –, é também a perspectiva da nossa separação por tempo indefinido! Longe do teu coração ponderado e carinhoso, sinto-me passível de esmorecimento ante o assédio das tentações de toda espécie, que me dificultam as iniciativas necessárias. Além do mais, terei de partir em companhia de pessoas que me não são simpáticas, e cujas relações sociais detesto sem restrições.

Alba Lucínia compreendeu as alusões indiretas do companheiro exacerbado e, tomando-lhe as mãos afetuosamente, exclamou com meiguice:

– Helvídio, muita vez quem odeia é que não soube amar convenientemente. Façamos por manter a harmonia e a paz na esfera de nossas relações. Como a concepção do dever fala mais alto nas tradições do nosso nome, acredito que partirás sem te deixares perder nos sentimentos inferiores!... Sê calmo e justo, certo de que ficarei orando por ti, amando-te e esperando-te. Essa doce perspectiva não te será um consolo de todas as horas?

Depois de uma pausa meditativa das ponderações da companheira, o tribuno atraiu-a ao coração, beijando-a agradecido.

– Sim, querida, os deuses hão de ouvir-te as preces pela nossa ventura. Também sinto que o dote de Helvídia exige mais este sacrifício; contudo, ao regressar, tomaremos as providências indispensáveis à modificação de nossa vida.

Alba Lucínia experimentou um brando alívio ao reconhecer que suas palavras haviam tranqüilizado o companheiro, mas, voltando ao seu pequeno mundo doméstico, passou a refletir na sua amargurada situação pessoal, considerando as penosas provações que o destino lhe reservava no curso da vida. Debalde insulava-se no santuário do lar, nos intervalos de suas atividades intensas, implorando a proteção das divindades que lhe haviam presidido ao matrimônio. Apesar do fervor com que o fazia, os deuses de marfim pareciam-lhe frios, implacáveis, e, no torvelinho das alegrias domésticas, o sorriso ocultava muitas lágrimas silenciosas, que não lhe borbulhavam dos olhos, mas escaldavam o coração.

Entre as clarinadas do júbilo geral, surgiram as festas adrianinas e, com elas, a data auspiciosa dos esponsais da filha de Helvídio Lucius.

As cerimônias nupciais constituíram um dos acontecimentos mais notáveis para a sociedade de então, a elas concorrendo o que Roma possuía de mais distinto nas camadas do patriciado.

Fábio Cornélio, desejando comemorar a ventura da neta de sua predileção, fora fértil em inventar os mais belos jogos de iluminação, no parque da residência de seus filhos.

Por toda parte, aroma de flores maravilhosas, em todos os recantos cantigas e trovas apaixonadas a confundirem-se com os sons das cítaras e atabales, tangidos por mãos de mestres exímios... Enquanto os escravos se cruzavam apressados em satisfazer o capricho dos convivas, dançavam bailarinos famosos ao estribilho melodioso dos alaúdes. Pequenos lagos, improvisados à guisa de aquários naturais, ostentavam plantas soberbas do Oriente e peixes exóticos provocavam a admiração de quantos se deliciavam com as alegrias da noite.

Todo o cenário festivo fora preparado a caráter, com previsão e requintes de bom gosto, salientando-se a piscina, onde barcos graciosos e leves se pejavam de ninfas e trovadores, e a arena na qual, de remate à festa, dois escravos jovens e atléticos perderam a vida sob os gládios poderosos de lutadores mais fortes.

Nenhuma lacuna se observava, exceto a ausência de Cneio Lucius, que, segundo informavam os anfitriões, permanecia no Aventino, ao lado da outra neta enferma.

No dia seguinte, enquanto Helvídia e Caio partiam para Cápua sob uma chuva de flores e se bem estivessem no zênite as festividades do povo, Alba Lucínia não conseguia dissipar a onda de receios que lhe assaltara o coração. Sua

consciência sentia-se tranqüila em relação ao que alvitrara ao marido, considerando que a gratidão de ambos, ao Imperador, não admitia tergiversações quanto à viagem à Grécia. Mas Helvídio Lucius lhe falara dos próprios temores, com respeito às tentações... Suas mãos inda sentiam o calor das dele, ao terminar as confidências amargurosas. Estaria certa, incitando-o a aceitar os novos encargos impostos pelo Império? Não deveria, igualmente, defender o esposo de todas as situações difíceis, determinadas pela política com as suas inquietações perversoras?...

Nasceu-lhe, então, a idéia de procurar Cláudia Sabina e pedir, com humildade, a sua interferência. Semelhante atitude não se compadecia com as tradições de orgulho da sua estirpe, mas o desejo do bem, aliado à vibração da sinceridade pura, poderia, a seu ver, modificar as intenções bastardas que, porventura, vivessem no coração daquela criatura fatal.

Desde que percebera a indecisão de Helvídio, sentiu a necessidade de cooperar ativamente para a sua tranqüilidade moral, desviando dele todos os perigos, com a mobilização das forças poderosas do seu afeto, que chegava a vencer os imperativos do orgulho inato.

Assim foi que, depois de muito meditar, no dia imediato ao casamento de Helvídia deliberou procurar Cláudia Sabina, pela primeira vez, no seu palácio do Capitólio.

Sua liteira foi recebida no átrio com geral alegria, mas a mulher do prefeito, não obstante o esforço sobre-humano para dissimular a contrariedade que lhe causava a visita inesperada, recebeu-a com enfado e altivez.

A mulher de Helvídio, contudo, apesar do orgulho que a hierarquia do nascimento lhe avivara no coração, mantinha-se serena e digna na sua atitude de sincera humildade.

– Senhora – explicou a filha de Júlia Spinter após as saudações usuais –, venho até aqui solicitar seus bons ofícios para nossa tranqüilidade doméstica.

– Às suas ordens! – retrucou a antiga plebéia assumindo ares de superioridade e cortando a palavra da interlocutora. – Terei o máximo prazer em lhe ser útil.

Não lhe sendo possível devassar os sentimentos mais íntimos da esposa de Lólio Úrbico, a seu respeito, a nobre senhora prosseguiu com simplicidade:

– Acontece que o Imperador, com o cavalheirismo e a magnanimidade que lhe marcam as atitudes, convidou meu marido para acompanhá-lo à Grécia, onde talvez se demore mais de um ano. Helvídio, porém, tem numerosos trabalhos em perspectiva e que dizem com a nossa tranqüilidade futura. A referida excursão, com a honrosa incumbência que lhe foi confiada, representa para nós um motivo

de honra e alegria, e, contudo, resolvi apelar para o seu prestígio generoso junto do César, a fim de que dispense meu marido dessa comissão.

– Oh! Mas isso iria transtornar completamente os planos de Augusto – disse Cláudia Sabina com visível ironia. – Então a esposa de Helvídio não se alegrará de compartilhar com ele a sagrada confiança do Império? Não me consta que uma patrícia de nascimento fugisse, algum dia, de comungar com o marido nos esforços preciosos que elevam o homem às culminâncias do serviço oficial.

Alba Lucínia escutava-a, surpreendida, entendendo integralmente aqueles conceitos irônicos e atrevidos.

– Atender a um pedido dessa natureza é humanamente impossível – prosseguiu com expressões fisionômicas quase brutais. – Helvídio Lucius não poderá esquivar-se ao programa administrativo, julgando, desse modo, que o seu coração de mulher venha a conformar-se com as circunstâncias.

A filha de Fábio Cornélio ouvia-lhe as palavras mordentes, recordando as confidências de Túlia relativamente ao passado do esposo. Atentava para os gestos da antiga plebéia, elevada pelo destino às melhores posições nos círculos da nobreza, e sentia, no todo de suas expressões contrafeitas e estranhas, um vasto complexo de odiosos sentimentos recalcados. Somente o ciúme poderia transformá-la de tal modo, a ponto de modificar os traços mais graciosos da fisionomia.

Não contavam elas a mesma idade, mas possuíam ambas os mesmos atrativos físicos da mulher formosa que ainda não chegou ao outono da vida e guarda as melhores prendas da primavera. Ao passo que Alba Lucínia atingira os trinta e oito anos, Cláudia chegara aos quarenta e dois, apresentando as duas as mesmas disposições de mocidade refletida.

Notando que Alba Lucínia lhe reparava todos os gestos, analisando-lhe as mínimas expressões com a sua observação inteligente e guardando toda a sua superioridade em face dos seus conceitos apressados, a esposa de Úrbico irritou- se profundamente.

– Afinal – exclamou quase ríspida, para a patrícia que a escutava em silêncio –, a senhora pede-me o inexequível. Pois fique sabendo que atravessamos uma época difícil em que as mulheres são obrigadas a abandonar os companheiros ao sabor da sorte. Eu mesma, possuindo o prestígio para o qual vem apelar, não consigo ladear semelhantes contingências. Casada com o prefeito dos pretorianos, já lhe ouvi dos próprios lábios a dolorosa afirmativa de que não poderá querer-me nunca.

Assim falando, fixou na interlocutora os olhos chamejantes de cólera, enquanto Alba Lucínia sentia o coração pulsar, precípite.

– E sabe a senhora quem é a mulher que detém as preferências de meu marido? – perguntou a antiga plebéia com expressão odienta, indefinível.

A nobre patrícia recebeu-lhe a alusão atrevida, de olhos úmidos, nos quais transparecia a dignidade dalma.

– O seu silêncio – murmurou Sabina arrogante – dispensa maiores explicações.

Alba Lucínia levantou-se de faces purpureadas, exclamando com dignidade:

– Enganei-me lamentavelmente, supondo que a sinceridade de uma esposa honesta e mãe dedicada lhe comovesse o coração. Em troca de meus sentimentos leais, recolho insultos de uma ironia mordaz e injustificável. Não a condeno. A educação não é a mesma para todas as pessoas de uma comunidade social e temos de subordiná-la ao senso da relatividade. Além do mais, cada qual dá o que tem.

E, sem mesmo despedir-se, caminhou desassombradamente até o átrio, onde a liteira a esperava, cercada de servos atenciosos, enquanto Cláudia Sabina como que petrificada no seu ódio, ante a lição de superioridade e desprezo recebida, esboçava um riso nervoso que explodiria logo após em saraivada de impropérios contra as escravas. Na intimidade do lar, Alba Lucínia orou, suplicando aos deuses fortaleza e proteção. A viagem do marido se efetuaria sem delongas e ela não julgava oportuna qualquer revelação a Helvídio, acerca das suas contrariedades íntimas. Conformada com os fatos, ficaria em Roma, crente de que mais tarde poderiam florir as suas esperanças de paz e felicidade no ambiente doméstico. Urgia conservar a harmonia e a coragem moral do companheiro, de modo que o seu coração pudesse suportar todas as dificuldades e vencer galhardamente as situações mais penosas. Ocultando as lágrimas íntimas, a pobre senhora lhe preparou todos os petrechos de viagem com o máximo carinho. Helvídio partiria com o seu amor e com a sua confiança e isso lhe devia bastar ao coração sensível e generoso.

Entretanto, o último dia das festividades adrianinas alvorecera e os protocolos da Corte obrigavam Alba Lucínia a acompanhar o esposo, nas derradeiras exibições do circo, onde Nestório e o filho deveriam ser sacrificados.

A perspectiva de semelhante espetáculo gelava-lhe o sangue, antevendo o horror das cenas brutais do anfiteatro, organizadas por espíritos insensíveis.

Recordou-se de que, na antevéspera, acompanhara Helvídia e Caio Fabricius ao Aventino para as despedidas do avô e de Célia, notando que a pobrezinha estava profundamente desfigurada pelas amarguras do seu grande e infortunado amor. O coração materno experimentava, ainda, o calor do abraço afetuoso da filha, que lhe dissera ao ouvido, em voz quase imperceptível: no último espetáculo, Ciro morrerá. Revia-lhe os olhos úmidos ao dar-lhe, resignada,

semelhante notícia, lembrando, ao mesmo tempo, a generosidade com que Célia acolhera a ventura da irmã, que, sorridente, feliz, partia para as delícias de Cápua, com os seus votos fraternos de felicidade e de paz.

Alba Lucínia meditou longamente os dolorosos problemas que lhe atormentavam o espírito, ponderando a necessidade de ocultá-los, dia-a-dia, sob o véu das alegrias disfarçadas e mentirosas, e demorando-se amargurada nos porquês do sofrimento e nos contrastes da sorte.

Era, porém, imprescindível que buscasse modificar as suas disposições espirituais.

Com efeito, daí a poucas horas Helvídio lhe recordava as obrigações protocolares e não foi sem emoções penosas que ajustou a túnica de gala, entregando-se às escravas para as bizarrias expressões do penteado em voga.

À tarde, observada à risca a tradição dos cortejos, as alegrias populares desbordavam no circo, entre ditérios e gargalhadas.

A caravana do César já havia chegado sob uma chuva de aplausos ensurdecedores.

Num palanque dourado, Élio Adriano cercava-se dos patrícios e dos augustinos de maior nomeada, entre os quais as personagens aristocráticas desta narrativa. Em torno da tribuna de honra estavam as vestais, formando um quadro magnífico, e as fileiras hierárquicas dos mais altos representantes da Corte. Senadores de mantos purpurinos, chefes militares com as suas armaduras prateadas e brilhantes, dignitários imperiais, confundiam-se em linhas ordenadas simetricamente, sobre verdadeiro oceano de cabeças humanas – a plebe, que dava expansão à sua alegria.

Na tribuna imperial sucediam-se as libações, quando o soberano se dirigiu a Lólio Úrbico nestes termos:

– Decretei o suplício e a execução dos conspiradores para a tarde de hoje, em atenção aos belos serviços com que a prefeitura dos pretorianos vem ilustrando os feitos do Império.

– Aliás, Divino – retrucou o prefeito com um sorriso –, devemos esse grande esforço a Fábio Cornélio, cuja dedicação extrema aos serviços do Estado se vem tornando cada vez mais notória nos círculos administrativos.

O velho censor agradeceu com um aceno a referência direta ao seu nome, enquanto Adriano obtemperava:

– Tive o cuidado de excluir da sentença todos os elementos reconhecidamente romanos, que figuravam entre os agitadores entregues à justiça. Mandei libertar a maioria no período das primeiras providências processuais,

exilando definitivamente para as Províncias os treze elementos mais exaltados, restando apenas vinte e dois estrangeiros, ou sejam, judeus, efésios e colossenses.

– Divino, vossas deliberações são sempre justas – exclamou o censor Fábio Cornélio, ansioso por desviar o assunto, de modo a não recordar o caso de Nestório que, garantido por seu genro, trabalhara nos próprios serviços de pergaminhos da Prefeitura.

Aproveitando a pausa natural, o orgulhoso patrício acentuou:
– Mas, a grandeza do espetáculo de hoje é verdadeiramente digna do César! Ainda não havia terminado a frase quando todos os presentes alongaram o

olhar para o centro da arena, onde, após os coleios exóticos dos dançarinos, iam iniciar-se as caçadas fabulosas. Atletas jovens começaram a lutar com tigres ferozes, apresentando-se igualmente elefantes e antílopes, cães selvagens e auroques de chifres pontiagudos.

De quando em quando, um caçador caía ensanguentado, sob aplausos delirantes, seguindo-se todos os números da tarde ao som de hinos que exacerbavam o instinto sanguinário da multidão.

Por vezes, os gritos de “cristãos às feras” e “morte aos conspiradores”, explodiam sinistramente da turba enfurecida.

Ao fim da tarde, quando os últimos raios do Sol caíam sobre as colinas do Célio e do Aventino, entre as quais se ostentava o circo famoso, os vinte e dois condenados foram conduzidos ao centro da arena. Negros postes ali se erguiam, aos quais os prisioneiros foram atados com grossas cordas presas por elos de bronze.

Nestório e Ciro confundiam-se naquele pequeno grupo de seres desfigurados pelos mais duros castigos corporais. Ambos estavam esqueléticos e quase irreconhecíveis. Apenas Helvídio e sua mulher, extremamente compungidos em face do suplício infamante, notaram a presença dos seus antigos libertos entre os mártires, fazendo o possível por esconder o mal-estar que a cena cruel lhes causava.

Os condenados, com exceção de sete mulheres que se trajavam de “indusium”, estavam quase nus, munidos somente de uma tanga que lhes cobria a cintura, até os rins. Cada qual foi colocado a um poste diferente, enquanto trinta atletas negros da Numídia e da Mauritânia compareciam na arena ao som das harpas que se casavam estranhamente com os gritos da plebe.

Havia muito que Roma não presenciava aquelas cenas, dado o caráter morigerado e tolerante de Adriano, que sempre fizera o possível por evitar os atritos religiosos, vendo-se, então, um espetáculo espantoso.

Enquanto os gigantes africanos preparavam os arcos, ajustando-lhes flechas envenenadas, os mártires do Cristianismo começaram a entoar um cântico dulçoroso. Ninguém poderia definir aquelas notas saturadas de angústia e de esperança.

Debalde, as autoridades do anfiteatro mandaram intensificar o ruído dos atabales e os sons estrídulos das flautas e alaúdes, a fim de abafar as vozes intraduzíveis do hino cristão. A harmonia daqueles versos resignados e tristes elevava-se sempre, destacando-se de todos os ruídos, na sua majestosa melancolia.

Nestório e Ciro também cantavam, dirigindo os olhos para o céu, onde o Sol dourava as derradeiras nuvens crepusculares.

As primeiras setas foram atiradas ao peito dos mártires com singular mestria, abrindo-lhes rosas de sangue que se transformavam, imediatamente, em grossos filetes de sofrimento e morte, mas o cântico prosseguia como um harpejo angustiado, que se estendia pela Terra obscura e dolorosa... Na sua melodia misturavam-se, indistintamente, a saudade e a esperança, as alegrias do céu e os desenganos do mundo, como se aquele punhado de seres desamparados fosse um bando de cotovias apunhaladas, librando-se nas atmosferas da Terra, a caminho do Paraíso:

Cordeiro Santo de Deus, Senhor de toda a Verdade, Salvador da Humanidade, Sagrado Verbo de Luz!... Pastor da Paz, da Esperança, De Tua mansão divina, Senhor Jesus, ilumina

As dores de nossa cruz!... Também tiveste o Calvário
De dor, de angústia, de apodo, Ofertando ao mundo todo
As luzes da redenção;
Tiveste a sede, o tormento, Mas, sob o fel, sob as dores, Redimiste os pecadores
Da mais triste escravidão!
Se também sorveste o cálix
De amargor e de ironia,
Nós queremos a alegria

De padecer e chorar...
Pois, ovelhas tresmalhadas,
Nós somos filhos do erro,
Que no mundo do desterro
Vivemos a Te esperar.
Dá, Senhor, que nós possamos
Viver a felicidade
Nas bênçãos da Eternidade
Que não se encontram aqui;
O júbilo de reencontrar-Te
Nos últimos padeceres,
Acende em nós os prazeres
De bem morrermos por Ti!...
Senhor, perdoa os verdugos
De tua doutrina santa!
Protege, ampara, levanta
Quem no mal vive a morrer...
A caminho do Teu reino,
Toda a dor se transfigura,
Toda a lágrima é ventura,
O bem consiste em sofrer!...
Consola, Jesus amado,
Aqueles que nós queremos,
Que ficarão nos extremos
Da saudade e do amargor;
Dá-lhes a fé que transforma
Os sofrimentos e os prantos
Nos tesouros sacrossantos
Da vida de Teu amor!...
Outras estrofes elevaram-se ao céu como soluços de resignação e de

esperança...
Com o peito crivado de setas que lhe exauriam o coração, e contemplando o

cadáver do filho que expirara antes dele, dada a sua fraqueza orgânica, Nestório sentiu que um turbilhão de lembranças indefiníveis lhe afloravam ao pensamento já vacilante, confuso, nas vascas da agonia. Com os olhos sem brilho pelas ânsias da morte arrebatando-lhe as forças, percebeu a multidão que os apupava, escutando-lhe ainda os alaridos animalescos... Fitou a tribuna imperial, onde, certo, estariam quantos lhe haviam merecido afeição pura e sincera, mas, dentro

de emoções intraduzíveis, viu-se também, nas suas recordações confusas, na tribuna de honra, com a toga de senador, enfeitado de púrpura... Coroado de rosas[1] aplaudia, também ele, a matança de cristãos que, sem os postes do suplício nem flechas envenenadas a lhes traspassarem o peito, eram devorados por feras hediondas e insaciáveis... Desejou andar, mover-se, porém, ao mesmo tempo sentia-se ajoelhado junto de um lago extenso, diante de Jesus Nazareno, cujo olhar doce e profundo lhe penetrava os recônditos do coração... Genuflexo, estendia as mãos para o Mestre Divino, implorando amparo e misericórdia... Lágrimas ardentes queimavam-lhe as faces descarnadas e tristes...

Aos seus olhos moribundos, as turbas furiosas do circo haviam desaparecido...

Foi quando um vulto de anjo ou de mulher[2] caminhou para ele, estendendo-lhe as mãos carinhosas e translúcidas... O mensageiro do céu ajoelhara-se junto do corpo ensanguentado e afagou-lhe os cabelos, beijando-o suavemente. O antigo escravo experimentou a carícia daquele ósculo divino e seu espírito cansado e enfraquecido adormeceu de leve, como se fora uma criança.

Em toda a arena vibraram radiações invisíveis, dos mais elevados planos da espiritualidade... Seres abnegados e resplandecentes estendiam fraternalmente os braços para os companheiros que abandonavam o invólucro perecível, nos testemunhos da fé, pela injúria e pelo sofrimento.

Daí a minutos, enquanto os serviçais do anfiteatro retiravam dos postes de martírio os despojos sangrentos, aos gritos de aplauso da turba ensandecida, Helvídio Lucius, na tribuna de honra, apertava nervosamente as mãos da esposa, dando-lhe a entender as comoções inexplicáveis que lhe vagavam no íntimo, enquanto ela, obrigada a manter as atitudes protocolares, cravava no companheiro os olhos molhados.

Mas, no palácio do Aventino, naquela tarde límpida e serena, o espetáculo fora talvez mais comovente pela sua majestade dolorida e silenciosa.

Recolhidos a uma sala de repouso, Cneio Lucius e a neta observavam todos os movimentos externos das festividades adrianinas, reparando que a onda de povo se represara no circo para os derradeiros números do programa.

Ao empalecer do céu romano, a jovem buscou o fragmento de pergaminho em que Ciro escrevera as oitavas rimadas do último hino, exclamando para o velhinho, suavemente:

– Avô, a esta hora Nestório e Ciro devem estar caminhando para o sacrifício!

Acreditas, vovô, que os nossos amados podem voltar do Céu para nos suavizar o destino?

– Como não, minha filha? Pois se Jesus prometeu vir ao encontro de quantos se reúnam, neste mundo, em seu nome, como não permitirá voltarem seus mensageiros, que nos amam já desta vida?

Célia ergueu para o ancião os grandes olhos tristes, iluminados por uma candidez maravilhosa.

Em seguida, levantou-se muito serena, dirigindo-se à larga janela que dava para o Tibre, cujas águas refletiam os matizes da hora crepuscular.

Fixando o pergaminho, leu todo o conteúdo, silenciosamente, cantando depois em voz quase imperceptível todos os versos do hino cristão e detendo-se, de modo particular, na última estrofe, relendo-a com uma lágrima e procurando adivinhar nela o pensamento do seu eleito.

O venerando patrício ouvia-lhe a voz terna, como se escutasse uma ave implume, abandonada e só, entre os invernos do mundo, sem poder exteriorizar as emoções que lhe assaltaram o íntimo dolorido.

As mais tristes meditações povoavam-lhe o cérebro, sentia o coração bater acelerado, num ritmo assustador.

De alma confrangida, observava a neta que se voltava agora para o céu, como se buscasse entre as nuvens do azul vespertino o coração que idolatrava.

Alguns minutos rolaram, longos e penosos para o seu pensamento exausto e magoado.

Em dado instante, quando o firmamento já havia de todo desmaiado, a jovem fixou no Alto, com mais atenção, os olhos ternos e profundos, como se estivesse vislumbrando alguma visão que a extasiasse.

Parecia abstraída de todas as sensações do mundo exterior, de todos os objetos que a rodeavam, figurando-se não perceber a presença do próprio avô, que lhe acompanhava o êxtase, comovidamente.

Decorridos instantes, todavia, os braços moviam-se de novo, como se as expressões que lhe eram características retomassem o curso da realidade e da vida.

– É verdade! – suspirou Cneio Lucius num quase murmúrio.

– Vovô – disse então com uma placidez divina a lhe brilhar nos olhos –, vi um bando de pombas alvas, no céu, como se houvessem saído do circo do martírio!...

– Sim, filha – respondeu Cneio Lucius angustiado, depois de levantar-se para contemplar o azul sereno –, devem ser as almas dos mártires, remontando à Jerusalém celeste!...

Profundo silêncio fizera-se entre ambos.

A ansiedade de seus corações, na grandeza melancólica do momento, falava mais que todas as palavras.

Célia, porém, rompeu aquela divina quietude, interrogando:

– Vovô, já leste o Sermão da Montanha, em que Jesus abençoa todos os que sofrem?!...

– Sim... – respondeu o ancião amargurado.

– Certamente – retornou a jovem com a sua inocência carinhosa e desvelada – Jesus preferiu que eu ficasse no mundo, sem o amor de Ciro, a sofrer o sacrifício da separação e da saudade, a fim de me salvar um dia, para o Céu, onde se reúnem todos os seus bem-aventurados!...

Cneio Lucius sentiu profundamente a doce resignação daquelas palavras. Desejou responder, exortando-a à sublime perseverança daquele sacrifício, mas tinha o velho peito sufocado. Atraiu, contudo, a neta de encontro ao coração, beijando-lhe a fronte enternecidamente. Seus cabelos brancos misturavam-se com a farta cabeleira jovem, como se a sua velhice veneranda fosse uma noite estrelada osculando uma aurora.

Ao longe, ouviam-se ainda as últimas algazarras do povo, mas o firmamento de Roma tocara-se de beleza sublimada e misteriosa. A imensa tranqüilidade do crepúsculo parecia povoar-se de sagrados apelos do Infinito.

Então, os dois, fitando o Tibre e o céu, em prece silenciosa, começaram a chorar...

[1]Nestório era a reencarnação do orgulhoso senador Públio Lentulus Cornélio. (Vide “Há Dois Mil Anos”.) – Nota de Emmanuel.

[2] Lívia. (Vide “Há Dois Mil Anos”.) – Nota de Emmanuel.


Emmanuel
Francisco Cândido Xavier

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Lucas 6:20

E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.

lc 6:20
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

Mateus 18:21

Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?

mt 18:21
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa

João 15:12

O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.

jo 15:12
Detalhes Capítulo Completo Perícope Completa