Nosso Lar
Versão para cópiaProblema de alimentação
Enlevado na visão dos jardins prodigiosos, pedi ao dedicado enfermeiro para descansar alguns minutos num banco próximo. Lísias anuiu de bom grado.
Agradável sensação de paz me felicitava o espírito. Caprichosos repuxos de água colorida ziguezagueavam no ar, formando figuras encantadoras.
— Quem observa esta colmeia imensa de serviço, — ponderei, — é induzido a examinar numerosos problemas. E o abastecimento? Não tenho notícia de um Ministério da Economia…
— Antigamente, — explicou o paciente interlocutor, — os serviços dessa natureza assumiam feição mais destacada. Deliberou, porém, o atual Governador atenuar todas as expressões de vida que nos recordassem os fenômenos puramente materiais. As atividades de abastecimento ficaram, assim, reduzidas a simples serviço de distribuição, sob o controle direto da Governadoria. Aliás, a providência constitui medida das mais benéficas. Rezam os anais que a colônia, há um século, lutava com extremas dificuldades para adaptar os habitantes às leis da simplicidade. Muitos recém-chegados ao “Nosso Lar” duplicavam exigências. Queriam mesas lautas, bebidas excitantes, dilatando velhos vícios terrenos. Apenas o Ministério da União Divina ficou imune de tais abusos, pelas características que lhe são próprias; no entanto, os demais viviam sobrecarregados de angustiosos problemas dessa ordem. O Governador atual, todavia, não poupou esforços. Tão logo assumiu obrigações administrativas, adotou providências justas. Antigos missionários, daqui, puseram-me ao corrente de curiosos acontecimentos. Disseram-me que, a pedido da Governadoria, vieram duzentos instrutores de uma Esfera muito elevada, a fim de espalharem novos conhecimentos, relativos à ciência da respiração e da absorção de princípios vitais da atmosfera. Realizaram-se assembleias numerosas. Alguns colaboradores técnicos de “Nosso Lar” manifestavam-se contrários, alegando que a cidade é de transição e que não seria justo, nem possível, desambientar imediatamente os homens desencarnados, mediante exigências desse teor, sem grave perigo para suas organizações espirituais. O Governador, contudo, não desanimou. Prosseguiram as reuniões, providências e atividades, durante trinta anos consecutivos. Algumas entidades eminentes chegaram a formular protestos de caráter público, reclamando. Por mais de dez vezes, o Ministério do Auxílio esteve superlotado de enfermos, onde se confessavam vítimas do novo sistema de alimentação deficiente. Nesses períodos, os opositores da redução multiplicavam acusações. O Governador, porém, jamais castigou alguém. Convocava os adversários da medida a palácio e expunha-lhes, paternalmente, os projetos e finalidades do regime; destacava a superioridade dos métodos de espiritualização, facilitava aos mais rebeldes inimigos do novo processo variadas excursões de estudo, em Planos mais elevados que o nosso, ganhando, assim, maior número de adeptos.
Ante pausa mais longa, reclamei, interessado:
— Continue, por favor, meu caro Lísias. Como terminou a luta edificante?
— Depois de vinte e um anos de perseverantes demonstrações, por parte da Governadoria, aderiu o Ministério da Elevação, passando a abastecer-se apenas do indispensável. O mesmo não aconteceu com o Ministério do Esclarecimento, que demorou muito a assumir compromisso, em vista dos numerosos Espíritos dedicados às ciências matemáticas, que ali trabalham. Eram eles os mais teimosos adversários. Mecanizados nos processos de proteínas e carboidratos, imprescindíveis aos veículos físicos, não cediam terreno nas concepções correspondentes daqui. Semanalmente, enviavam ao Governador longas observações e advertências, repletas de análises e numerações, atingindo, por vezes, a imprudência. O velho governante, contudo, nunca agiu por si só. Requisitou assistência de nobres mentores, que nos orientam através do Ministério da União Divina, e jamais deixou o menor boletim de esclarecimento sem exame minucioso. Enquanto argumentavam os cientistas e a Governadoria contemporizava, formaram-se perigosos distúrbios no antigo Departamento de Regeneração, hoje transformado em Ministério. Encorajados pela rebeldia dos cooperadores do Esclarecimento, os Espíritos menos elevados que ali se recolhiam entregaram-se a condenáveis manifestações. Tudo isso provocou enormes cisões nos órgãos coletivos de “Nosso Lar”, dando ensejo a perigoso assalto das multidões obscuras do Umbral, que tentaram invadir a cidade, aproveitando brechas nos serviços de Regeneração, onde grande número de colaboradores entretinha certo intercâmbio clandestino, em virtude dos vícios de alimentação. Dado o alarme, o Governador não se perturbou. Terríveis ameaças pairavam sobre todos. Ele, porém, solicitou audiência ao Ministério da União Divina e, depois de ouvir o nosso mais alto Conselho, mandou fechar provisoriamente o Ministério da Comunicação, determinou funcionassem todos os calabouços da Regeneração, para isolamento dos recalcitrantes, advertiu o Ministério do Esclarecimento, cujas impertinências suportou por mais de trinta anos consecutivos, proibiu temporariamente os auxílios às regiões inferiores, e, pela primeira vez na sua administração, mandou ligar as baterias elétricas das muralhas da cidade, para emissão de dardos magnéticos a serviço da defesa comum. Não houve combate, nem ofensiva da colônia, mas resistência resoluta. Por mais de seis meses, os serviços de alimentação, em “Nosso Lar”, foram reduzidos à inalação de princípios vitais da atmosfera, através da respiração, e água misturada a elementos solares, elétricos e magnéticos. A colônia ficou, então, sabendo o que vem a ser a indignação do espírito manso e justo. Findo o período mais agudo, a Governadoria estava vitoriosa. O próprio Ministério do Esclarecimento reconheceu o erro e cooperou nos trabalhos de reajustamento. Houve, nesse comenos, regozijo público e dizem que, em meio da alegria geral, o Governador chorou sensibilizado, declarando que a compreensão geral constituía o verdadeiro prêmio ao seu coração. A cidade voltou ao movimento normal. O antigo Departamento da Regeneração foi convertido em Ministério. Desde então, só existe maior suprimento de substâncias alimentícias que lembram a Terra, nos Ministérios da Regeneração e do Auxílio, onde há sempre grande número de necessitados. Nos demais há somente o indispensável, isto é, todo o serviço de alimentação obedece a inexcedível sobriedade. Presentemente, todos reconhecem que a suposta impertinência do Governador representou medida de elevado alcance para nossa libertação espiritual. Reduziu-se a expressão física e surgiu maravilhoso coeficiente de espiritualidade.
Lísias silenciou e eu me entreguei a profundos pensamentos sobre a grande lição.
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