Nosso Lar
Versão para cópiaCulto familiar
Talvez que a praticantes do Espiritismo não fosse tão surpreendente a reunião a que compareci, em casa de Lísias. Aos meus olhos, porém, o quadro era inédito e interessante.
Na espaçosa sala de estar, reunia-se pequena assembleia de pouco mais de trinta pessoas. A disposição dos móveis era a mais simples. Enfileiravam-se poltronas confortáveis, doze a doze diante do estrado, onde o Ministro Clarêncio assumira posição de diretor, cercando-se da senhora Laura e dos filhos. À distância de quatro metros, aproximadamente, havia um grande globo cristalino, da altura de dois metros presumíveis, envolvido, na parte inferior, em longa série de fios que se ligavam a pequeno aparelho, idêntico aos nossos alto-falantes.
Numerosas indagações me bailavam no cérebro.
Na sala extensa, cada qual tomara lugar adequado, mas observava conversações fraternas em todos os grupos.
Achando-me ao lado de Nicolas, antigo servidor do Ministério do Auxílio e íntimo da família de Lísias, ousei perguntar alguma coisa. O companheiro não se fez rogado e esclareceu:
— Estamos prontos; contudo, aguardamos a ordem da Comunicação. Nosso irmão Ricardo está na fase da infância terrestre e não lhe será difícil desprender-se dos elos físicos, mais fortes, por alguns instantes.
— Mas virá ele até aqui? — Indaguei.
— Como não? — Revidou o interlocutor. — Nem todos os encarnados se agrilhoam ao solo da Terra. Como os pombos-correio que vivem, por vezes, longo tempo de serviço, entre duas regiões, Espíritos há que vivem por lá entre dois mundos.
E, indicando o aparelho à nossa frente, informou:
— Ali está a câmara que no-lo apresentará.
— Por que o globo cristalino? — Perguntei, curioso. — Não poderia manifestar-se sem ele?
— É preciso lembrar, — disse Nicolas, atenciosamente, — que a nossa emotividade emite forças suscetíveis de perturbar. Aquela pequena câmara cristalina é constituída de material isolante. Nossas energias mentais não poderão atravessá-la.
Nesse instante, foi Lísias chamado ao fone por funcionários da Comunicação. Era chegado o momento. Poder-se-ia começar o trabalho culminante da reunião.
Verifiquei, no relógio de parede, que estávamos com quarenta minutos depois da meia-noite. Notando-me o olhar interrogativo, disse Nicolas em voz baixa:
— Somente agora há bastante paz no recente lar de Ricardo, lá na Terra. Naturalmente, a casa descansa, os pais dormem, e ele, em a nova fase, não permanece inteiramente junto ao berço…
Não lhe foi possível continuar. O Ministro Clarêncio, levantando-se, pediu homogeneidade de pensamentos e verdadeira fusão de sentimentos.
Fez-se grande quietude, e Clarêncio disse comovedora e singela prece. Em seguida, Lísias se fez ouvir na cítara harmoniosa, enchendo o ambiente de profundas vibrações de paz e encantamento.
Logo após, Clarêncio tomou novamente a palavra:
— Irmãos, — disse, — enviemos, agora, a Ricardo a nossa mensagem de amor.
Observei, então, com surpresa, que as filhas e a neta da senhora Laura, acompanhadas de Lísias, abandonavam o estrado, tomando posição junto dos instrumentos musicais. Judite, Iolanda e Lísias se encarregaram, respectivamente, do piano, da harpa e da cítara, ao lado de Teresa e Eloísa, que integravam o gracioso coro familiar.
Às cordas afinadas casaram os ecos de branda melodia e a música elevou-se, cariciosa e divina, semelhante a gorjeio celeste. Sentia-me arrebatado a Esferas sublimes do pensamento, quando vozes argentinas embalaram o interior. Lísias e as irmãs cantavam maravilhosa canção, composta por eles mesmos.
Muito difícil frasear humanamente as estrofes significativas, cheias de espiritualidade e beleza, mas tentarei faze-lo para demonstrar a riqueza das afeições nos Planos de vida que se estendem para além da morte:
Pai querido, enquanto a noite Traz a bênção do repouso, Recebe, pai carinhoso, Nosso afeto e devoção!… Enquanto as estrelas cantam Na luz que as empalidece, Vem unir à nossa prece A voz do teu coração. Não te perturbes na estrada De sombras do esquecimento, Não te doa o sofrimento, Jamais te firas no mal. Não temas a dor terrestre, Recorda a nossa aliança, Conserva a flor da esperança Para a ventura imortal. Enquanto dormes no mundo, Nossas almas acordadas Relembram as alvoradas Desta vida superior; Aguarda o porvir risonho, Espera por nós que, um dia, Volveremos à alegria Do jardim do teu amor. Vem a nós, pai generoso, Volta à paz do nosso ninho, Torna às luzes do caminho, Inda que seja a sonhar; Esquece, um minuto, a Terra E vem sorver da água pura De consolo e de ternura Das fontes de “Nosso Lar”. Nossa casa não te olvida O sacrifício, a bondade, A sublime claridade De tuas lições no bem; Atravessa a sombra espessa, Vence, pai, a carne estranha, Sobe ao cume da montanha, Vem conosco orar também. |
Às derradeiras notas da bela composição, notei que o globo se cobria, interiormente, de substância leitoso-acinzentada, apresentando, logo em seguida, a figura simpática de um homem na idade madura. Era Ricardo. Impossível descrever a sagrada emoção da família, dirigindo-lhe amorosas saudações.
O recém-chegado, após falar particularmente à companheira e aos filhos, fixou o olhar amigo em nós outros, pedindo fosse repetida a suave canção filial, que ouviu banhado em lágrimas. Quando se calaram as últimas notas, falou comovidamente:
— Oh! Meus filhos, como é grande a bondade de Jesus, que nos aureolou o culto doméstico do Evangelho com as supremas alegrias desta noite! Nesta sala temos procurado, juntos, o caminho das Esferas superiores; muitas vezes recebemos o pão espiritual da vida e é, ainda aqui, que nos reencontramos para o estímulo santo. Como sou feliz!
A senhora Laura chorava discretamente. Lísias e as irmãs tinham os olhos marejados de pranto.
Percebi que o recém-chegado não falava com espontaneidade e não podia dispor de muito tempo entre nós. Possivelmente, todos ali mantinham análoga impressão, porque vi Judite abraçar-se ao globo cristalino, ouvindo-a exclamar carinhosamente:
— Pai querido, diga o que precisa de nós, esclareça em que poderemos ser úteis ao seu abnegado coração!
Observei, então, que Ricardo pousou o olhar profundo na senhora Laura e murmurou:
— Sua mãe virá ter comigo, em breve, filhinha! Mais tarde, virão vocês, igualmente! Que mais eu poderia desejar, para ser feliz, senão rogar ao Mestre que nos abençoe para sempre?
Todos chorávamos, enternecidos.
Quando o globo começou a apresentar, de novo, os mesmos tons acinzentados, ouvi Ricardo exclamando, quase à despedida:
— Ah! Filhos meus, alguma coisa tenho a pedir-lhes do fundo de minhalma! Roguem ao Senhor para que eu nunca disponha de facilidades na Terra, a fim de que a luz da gratidão e do entendimento permaneça viva em meu espírito!…
Aquele pedido inesperado me sensibilizou e surpreendeu ao mesmo tempo. Ricardo endereçou a todos saudações carinhosas e a cortina de substância cinzenta cobriu toda a câmara, que, em seguida, voltou ao aspecto normal.
O Ministro Clarêncio orou com sentimento e a sessão foi encerrada, deixando-nos imersos em alegria indescritível.
Dirigi-me ao estrado para abraçar a senhora Laura, exprimindo-lhe de viva voz minha profunda impressão e reconhecimento, quando alguém me atalhou os passos quase junto à dona da casa, que se ocupava a atender às numerosas felicitações dos amigos presentes.
Era Clarêncio, que me falou em tom amável:
— André, amanhã acompanharei nossa irmã Laura à Esfera carnal. Se lhe apraz, poderá vir conosco para visitar sua família.
Não podia ser maior a surpresa. Profunda sensação de alegria me empolgou, mas lembrei instintivamente o serviço das Câmaras. Adivinhando-me, porém, o pensamento, o generoso Ministro voltou a dizer:
— Você tem regular quantidade de horas de trabalho extraordinário a seu favor. Não será difícil a Genésio conceder-lhe uma semana de ausência, depois do primeiro ano de cooperação ativa.
Possuído de júbilo intenso, agradeci, chorando e rindo ao mesmo tempo. Ia, enfim, rever a esposa e os filhos amados.
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