Capítulo L

Cidadão de Nosso Lar


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Na segunda noite, sentia-me cansadíssimo. Começava a compreender o valor do alimento espiritual, através do amor e do entendimento recíprocos. Em “Nosso Lar”, atravessava dias vários de serviço ativo, sem alimentação comum, no treinamento de elevação a que muitos de nós se consagravam. Bastava-me a presença dos amigos queridos, as manifestações de afeto, a absorção de elementos puros através do ar e da água; mas ali não encontrava senão escuro campo de batalha, onde os entes amados se convertiam em verdugos. As meditações preciosas que a palavra de Clarêncio me sugerira, davam-me certa calma ao coração. Compreendia, finalmente, as necessidades humanas. Não era proprietário de Zélia, mas seu irmão e amigo. Não era dono de meus filhos e, sim, companheiros de luta e realização.

Recordei que a senhora Laura, certa feita, me afirmara que toda criatura, no testemunho, deve proceder como a abelha, acercando-se das flores da vida, que são as almas nobres, no campo das lembranças, extraindo de cada uma a substância dos bons exemplos, para adquirir o mel da sabedoria.

Apliquei ao meu caso o proveitoso conselho e comecei recordando minha mãe. Não se sacrificara ela por meu pai, a ponto de adotar mulheres infelizes como filhas do coração? “Nosso Lar” estava repleto de exemplos edificantes. A Ministra Veneranda trabalhava séculos sucessivos pelo grupo espiritual que lhe estava mais particularmente ligado ao coração. Narcisa, sacrificava-se nas Câmaras para obter endosso espiritual, de regresso ao mundo, em tarefa de auxílio. A senhora Hilda vencera o dragão do ciúme inferior. E a expressão de fraternidade dos demais amigos da colônia? Clarêncio me acolhera com devotamento de pai, a mãe de Lísias me recebera como filho, Tobias como irmão. Cada companheiro de minhas novas lutas me oferecia algo de útil à construção mental diferente, que se erguia, célere, no meu espírito.

Procurei abstrair-me das considerações aparentemente ingratas que ouvia no ambiente doméstico e deliberei colocar acima de tudo o amor divino, e, acima de todos os meus sentimentos pessoais, as justas necessidades dos meus semelhantes.

No meu cansaço, procurei o apartamento do enfermo, cujo estado se agravava de momento a momento. Zélia amparava-lhe a fronte e dizia, banhada em lágrimas:

— Ernesto, Ernesto, tem pena de mim, querido! Não me deixes só! Que será de mim se me faltares?

O doente acariciava-lhe as mãos e respondia com imenso afeto, apesar da forte dispneia.

Roguei ao Senhor energias necessárias para manter a compreensão imprescindível e passei a interpretar os cônjuges como se fossem meus irmãos.

Reconheci que Zélia e Ernesto se amavam intensamente. E, se de fato me sentia companheiro fraternal de ambos, devia auxiliá-los com os recursos ao meu alcance. Iniciei o trabalho procurando esclarecer os Espíritos infelizes que se mantinham em estreita ligação com o enfermo. Minhas dificuldades, porém, eram enormes. Sentia-me abatidíssimo.


Nessa emergência, lembrei certa lição de Tobias, quando me dissera: — “Aqui, em “Nosso Lar”, nem todos necessitam do aeróbus para se locomoverem; porque os habitantes mais elevados da colônia dispõem do poder de volitação; e nem todos precisam de aparelhos de comunicação para conversar a distância, por se manterem, entre si, num plano de perfeita sintonia de pensamentos. Os que se encontrem afinados desse modo, podem dispor, à vontade, do processo de conversação mental, apesar da distância”.

Lembrei quanto me seria útil a colaboração de Narcisa e experimentei. Concentrei-me em fervorosa oração ao Pai e, nas vibrações da prece, dirigi-me a Narcisa encarecendo socorro. Contava-lhe, em pensamento, minha experiência dolorosa, comunicava-lhe meus propósitos de auxílio e insistia para que me não desamparasse.

Aconteceu, então, o que não poderia esperar.

Passados vinte minutos, mais ou menos, quando ainda não havia retirado a mente da rogativa, alguém me tocou de leve no ombro.

Era Narcisa que atendia, sorrindo:

— Ouvi seu apelo, meu amigo, e vim ao seu encontro.


Não cabia em mim de contentamento.

A mensageira do bem fixou o quadro, compreendeu a gravidade do momento e acrescentou:

— Não temos tempo a perder.

Antes de tudo, aplicou passes de reconforto ao doente, isolando-o das formas escuras, que se afastaram como por encanto. Em seguida, convidou-me com decisão:

— Vamos à Natureza.

Acompanhei-a sem hesitação, e ela, notando-me a estranheza, acentuou:

— Não só o homem pode receber fluidos e emiti-los. As forças naturais fazem o mesmo, nos reinos diversos em que se subdividem. Para o caso do nosso enfermo, precisamos das árvores. Elas nos auxiliarão eficazmente.

Admirado da lição nova, segui-a, silencioso. Chegados a local onde se alinhavam enormes frondes, Narcisa chamou alguém, com expressões que eu não podia compreender. Daí a momentos, oito entidades espirituais atendiam-lhe ao apelo. Imensamente surpreendido, vi-a indagar da existência de mangueiras e eucaliptos. Devidamente informada pelos amigos, que me eram totalmente estranhos, a enfermeira explicou:

— São servidores comuns do reino vegetal, os irmãos que nos atenderam.

E, à vista da minha surpresa, rematou:

— Como vê, nada existe de inútil na Casa de Nosso Pai. Em toda parte, se há quem necessite aprender, há quem ensine; e onde aparece a dificuldade, surge a Providência. O único desventurado, na obra divina, é o Espírito imprevidente, que se condenou às trevas da maldade.

Narcisa manipulou, em poucos instantes, certa substância com as emanações do eucalipto e da mangueira e, durante toda a noite, aplicamos o remédio ao enfermo, através da respiração comum e da absorção pelos poros.

O enfermo experimentou melhoras sensíveis. Pela manhã, cedo, o médico observou, extremamente surpreendido:

— Verificou-se esta noite extraordinária reação! Verdadeiro milagre da Natureza!

Zélia estava radiante. Encheu-se a casa de alegria nova. Por minha vez, experimentava grande júbilo nalma. Profundo alento e belas esperanças revigoravam-me o ser. Reconhecia, eu mesmo, que vigorosos laços de inferioridade se haviam rompido dentro de mim, para sempre.


. Nesse dia, voltei a “Nosso Lar” em companhia de Narcisa e, pela primeira vez, experimentei a capacidade de volitação. Num momento, ganhávamos grandes distâncias. A bandeira da alegria desfraldara-se em meu íntimo. Comunicando à enfermeira generosa minha impressão de leveza, ouvi-a esclarecer:

— Em “Nosso Lar”, grande parte dos companheiros poderia dispensar o aeróbus e transportar-se, à vontade, nas áreas de nosso domínio vibratório; mas, visto a maioria não ter adquirido essa faculdade, todos se abstêm de exercê-la em nossas vias públicas. Essa abstenção, todavia, não impede que utilizemos o processo longe da cidade, quando é preciso ganhar distância e tempo.

Nova compreensão e novos júbilos me enriqueciam o espírito. Instruído por Narcisa, ia da casa terrestre à cidade espiritual e vice-versa, sem dificuldade de vulto, intensificando o tratamento de Ernesto, cujas melhoras se firmaram, francas e rápidas. Clarêncio visitava-me, diariamente, mostrando-se satisfeito com o meu trabalho.


Ao fim da semana, chegara ao termo de minha primeira licença nos serviços das Câmaras de Retificação. A alegria tornara aos cônjuges, que passei a estimar como irmãos.

Era preciso, pois, regressar aos deveres justos.

À luz dormente e cariciosa do crepúsculo, tomei o caminho de “Nosso Lar”, totalmente modificado. Naqueles rápidos sete dias, aprendera preciosas lições práticas no culto vivo da compreensão e da fraternidade legítimas. A tarde sublime enchia-me de magnos pensamentos.

Como é grande a Providência Divina! — Dizia, a monologar intimamente. — Com que sabedoria dispõe o Senhor todos os trabalhos e situações da vida! Com que amor atende a toda a Criação!

Algo, porém, me arrancou da meditação a que me recolhera. Mais de duzentos companheiros vinham ao meu encontro.

Todos me saudavam, generosos e acolhedores, Lísias, Lascínia, Narcisa, Silveira, Tobias, Salústio e numerosos cooperadores das Câmaras ali estavam. Não sabia que atitude assumir, colhido, assim, de surpresa. Foi, então, que o Ministro Clarêncio, surgindo à frente de todos, adiantou-se, estendeu-me a destra e falou:

— Até hoje, André, você era meu pupilo na cidade; mas, doravante, em nome da Governadoria, declaro-o cidadão de “Nosso Lar”.

Por que tamanha magnanimidade se meu triunfo era tão pequenino? Não conseguia reter as lágrimas de emoção que me embargavam a voz. E, considerando a grandeza da Bondade Divina, atirei-me aos braços paternais de Clarêncio, a chorar de gratidão e de alegria.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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