Os mensageiros

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Capítulo X

A experiência de Joel

Afastando-nos para um canto do salão, acompanhei Vicente que se dirigiu a um velhote de fisionomia simpática.

— Então, meu caro Joel, como vai? — Perguntou, atencioso.

O interpelado teve uma expressão melancólica e informou:

— Graças à Bondade Divina, sinto-me bastante melhorado. Tenho ido diariamente às aplicações magnéticas dos Gabinetes de Socorro, no Auxílio, e estou mais forte.

— Cederam as vertigens? — Indagou o companheiro, com interesse.

— Agora são mais espaçadas e, quando surgem, não me afligem o coração com tanta intensidade.

Nesse instante, Vicente descansou os olhos muito lúcidos nos meus e disse, sorrindo:

— Joel também andou nos Círculos carnais em tarefa mediúnica e pode contar experiência muito interessante.

O novo amigo, que me parecia um enfermo em princípios de convalescença, esboçou melancólico sorriso e falou:

— Fiz minha tentativa na Terra, mas fracassei. A luta não era pequena e fui fraco demais.

— O que mais me impressiona no caso dele, porém, — interpôs Vicente em tom fraterno, — é a moléstia que o acompanhou até aqui e persiste ainda agora. Joel atravessou as regiões inferiores com dificuldades extremas, após demorar-se por lá muito tempo, voltando ao Ministério do Auxílio perseguido de alucinações estranhas, relativamente ao pretérito.

— Ao passado? — Perguntei, surpreendido.

— Sim. — Esclareceu Joel, humilde, — minha tarefa mediúnica exigia sensibilidade mais apurada, e, quando me comprometi à execução do serviço, fui ao Ministério do Esclarecimento, onde me aplicaram tratamento especial, que me aguçou as percepções. Necessitava condições sutis para o desempenho dos futuros deveres. Assistentes amigos desdobraram-se em obséquios, por me favorecerem, e parti para a Terra com todos os requisitos indispensáveis ao êxito de minhas obrigações. Infelizmente, porém…

— Mas porque, — indaguei, — perdeu as realizações? Tão só em virtude da sensibilidade adquirida?

Joel sorriu e obtemperou:

— Não perdi pela sensibilidade, mas pelo seu mau uso.

— Que diz? — Tornei, admirado.

— O meu amigo compreenderá sem dificuldades. Imagine que, com um cabedal dessa natureza, ao invés de auxiliar os outros, perdi-me a mim mesmo. É que, segundo concluo agora, Deus concede a sensibilidade apurada como espécie de lente poderosa, que o proprietário deve usar para definir roteiros, fixar perigos e vantagens do caminho, localizar obstáculos comuns, ajudando ao próximo e a si mesmo. Procedi, porém, ao inverso. Não utilizei a lente maravilhosa, no mister justo. Deixando-me empolgar pela curiosidade doentia, apliquei-a tão somente para dilatar minhas sensações. No quadro dos meus trabalhos mediúnicos, estava a recordação de existências pregressas como expressão indispensável ao serviço de esclarecimento coletivo e benefício aos semelhantes, que me fora concedido realizar, mas existe uma ciência de recordar, que não respeitei como devia.

Interrompendo um instante a narrativa, aguçava-me o desejo de conhecer-lhe a experiência pessoal até ao fim. Em seguida, continuou no mesmo diapasão:

— Ao primeiro chamado da Esfera superior, acorri, apressado. Sentia, intuitivamente, a vívida lembrança de minhas promessas em “Nosso Lar”. Tinha o coração repleto de propósitos sagrados. Trabalharia. Espalharia muito longe a vibração das verdades eternas. Contudo, aos primeiros contatos com o serviço, a excitação psíquica fez rodar o mecanismo de minhas recordações adormecidas, como o disco sob a agulha da vitrola, e lembrei toda a minha penúltima existência, quando envergara a batina, sob o nome de Monsenhor Alejandre Pizarro, nos últimos períodos da Inquisição Espanhola. Foi, então, que abusei da lente sagrada a que me referi. A volúpia das grandes sensações, que pode ser tão prejudicial como o uso do álcool que embriaga os sentidos, fez-me olvidar os deveres mais santos. Bafejaram-me claridades espirituais de elevada expressão. Desenvolveu-se-me a clarividência, mas não estava satisfeito senão com rever meus companheiros visíveis e invisíveis, no setor das velhas lutas religiosas. Impunha a mim mesmo a obrigação de localizar cada um deles no tempo, fazendo questão de reconstituir-lhes as fichas biográficas, sem cuidar do verdadeiro aproveitamento no campo do trabalho construtivo. A audição psíquica tornou-se-me muito clara; entretanto, não queria ouvir os benfeitores espirituais sobre tarefas proveitosas e sim interpelá-los, ousadamente, no capítulo da minha satisfação egoística. Despendi um tempo enorme, dentro do qual fugia aos companheiros que me vinham pedir atividades a bem do próximo, engolfado em pesquisas referentes à Espanha do meu tempo. Exigia notícias de bispos, de autoridades políticas da época, de padres amigos que haviam errado tanto quanto eu mesmo.

Não faltaram generosas advertências. Frequentemente, os colegas do nosso grupo espiritista chamavam-me a atenção para os problemas sérios de nossa casa. Eram sofredores que nos batiam à porta, situações que reclamavam testemunho cristão. Tínhamos um abrigo de órfãos em projeto, um ambulatório que começava a nascer e, sobretudo, serviços semanais de instrução evangélica, nas noites de terças e sextas-feiras. Mas, qual! Eu não queria saber senão das minhas descobertas pessoais. Esqueci que o Senhor me permitia aquelas reminiscências, não por satisfazer-me a vaidade, mas para que entendesse a extensão dos meus débitos para com os necessitados do mundo e me entregasse à obra de esclarecimento e conforto aos feridos da sorte. Contrariamente à expectativa dos abnegados amigos que me auxiliaram na obtenção da oportunidade sublime, não me movi no concurso fraterno e desinteressei-me da doutrina consoladora, que hoje revive o Evangelho de Jesus entre os homens. Somente procurei, a rigor, os que se encontravam afins comigo, desde o pretérito. Nesse propósito, descobri, com evidentes sinais de identidade, personalidades outrora eminentes, em relação comigo. Reconheci o senhor Higino de Salcedo, grande proprietário de terras, que me havia sido magnânimo protetor, perante as autoridades religiosas da Espanha, reencarnado como proletário inteligente e honesto, mas em grande experiência de sacrifício individual. Revi o velho Gaspar de Lorenzo, figura solerte de inquisidor cruel, que me quisera muito bem, reencarnado como paralítico e cego de nascença. E desse modo, meu amigo, passei a existência, de surpresa em surpresa, de sensação em sensação. Eu, que renascera recordando para edificar alguma coisa de útil, transformei a lembrança em viciação da personalidade. Perdi a oportunidade bendita de redenção, e o pior é o estado de alucinação em que vivo. Com o meu erro, a mente desequilibrou-se e as perturbações psíquicas constituem doloroso martírio. Estou sendo submetido a tratamento magnético, de longo tempo.

Nesse momento, porém, o interlocutor empalideceu de súbito. Os olhos, desmesuradamente abertos, vagavam como se fixassem quadros impressionantes, muito longe da nossa perspectiva. Depois cambaleou, mas Vicente o amparou de pronto, e, passando-lhe a destra na fronte, murmurava em voz firme:

— Joel! Joel! Não se entregue às impressões do passado! Volte ao presente de Deus!…

Profundamente admirado, notei que o convalescente regressava à expressão normal, esfregando os olhos.




[Os capítulos do n.° 5 ao 12, dizem respeito às observações e estudos efetuados por André Luiz em uma reunião no Centro de Mensageiros.]



André Luiz
Francisco Cândido Xavier

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