Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

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Capítulo VII

Janeiro - Evocações particulares

Janeiro
MAMÃE, AQUI ESTOU!


A Sra... havia perdido, meses antes, a filha única, de catorze anos, objeto de toda a sua ternura e muito digna de seus lamentos, pelas qualidades que prometiam torná-la uma senhora perfeita. A moça falecera de longa e dolorosa enfermidade. Inconsolável com a perda, dia a dia a mãe via sua saúde alterar-se e repetia incessantemente que em breve iria reunir-se à filha. Informada da possibilidade de se comunicar com os seres de além-túmulo, a Sra... resolveu procurar, na conversa com a filha, um alívio para a sua pena. Uma senhora de seu conhecimento era médium, mas pouco afeitas uma e outra a semelhantes evocações, principalmente numa circunstância tão solene, pediram-me assistência. Éramos apenas três: a mãe, a médium e eu. Eis o resultado dessa primeira sessão.

A mãe: Em nome de Deus Todo-Poderoso, Espírito de Júlia, minha filha querida, peço-te que venhas, se Deus o permitir.

Júlia: Mamãe, aqui estou!

A mãe: És tu, minha filha, que me respondes? Como posso saber que és tu?

Júlia: Lili.

(Era o apelido familiar, dado à moça em sua infância. Nem a médium o sabia, nem eu, pois há muitos anos só a chamam Júlia. Com este sinal, a identidade era evidente. Não podendo dominar sua emoção, a mãe rompeu em soluços).

Júlia: Mãe, por que te afliges? Sou feliz, muito feliz. Não sofro mais e vejo-te sempre.

A mãe: Mas eu não te vejo! Onde estás?

Júlia: Aqui ao teu lado, com a minha mão sobre a Sra. X (a médium) para que escreva o que te digo. Vê a minha letra (a letra era realmente a da moça).

A mãe: Dizes: minha mão. Então tens corpo?

Júlia: Não tenho mais o corpo que tanto me fez sofrer, mas tenho a sua aparência. Não estás contente porque não sofro mais e porque posso conversar contigo?

A mãe: Se eu te visse, te reconheceria, então?

Júlia: Sim, sem dúvida; e já me viste muitas vezes em teus sonhos.

A mãe: Eu realmente te revi nos meus sonhos, mas pensei que fosse efeito da imaginação, uma lembrança.

Júlia: Não. Sou eu mesma que estou sempre contigo e te procuro consolar; fui eu quem te inspirou a ideia de me evocar. Tenho muitas coisas a te dizer. Desconfia do Sr. Z... Ele não é sincero.

(Esse senhor, conhecido apenas da mãe, citado assim espontaneamente, era uma nova prova de identidade do Espírito que se manifestava.)

A mãe: Que pode fazer contra mim o Sr. Z?

Júlia: Não te posso dizer. Isto me é vedado. Posso apenas te advertir que desconfies dele.

A mãe: Estás entre os anjos?

Júlia: Oh! ainda não. Não sou bastante perfeita.

A mãe: Entretanto, não te conhecia nenhum defeito. Eras boa, meiga, amorosa e benevolente para com todos. Então isto não basta?

Júlia: Para ti, mãe querida, eu não tinha defeitos, e eu o acreditava, pois mo dizias tantas vezes! Mas agora vejo o que me falta para ser perfeita.

A mãe: Como conseguirás essas qualidades que te faltam?

Júlia: Em novas existências, que serão cada vez mais felizes.

A mãe: É na Terra que terás novas existências?

Júlia: Nada sei a respeito.

A mãe: Desde que não fizeste o mal em tua vida, por que sofreste tanto?

Júlia: Prova! Prova! Eu a suportei com paciência, pela minha confiança em Deus. Hoje sou muito feliz por isto. Até breve, querida mamãe!

Ante fatos como este, quem ousará falar do nada do túmulo, quando a vida futura se nos revela, por assim dizer, palpável? Essa mãe, minada pelo desgosto, experimenta hoje uma felicidade inefável em poder conversar com a filha; entre elas não há mais separação; suas almas se confundem e se expandem na intimidade espiritual, pela troca de seus pensamentos.

Apesar da discrição em que envolvemos este relato, não o teríamos publicado se não tivéssemos tido autorização formal. Aquela mãe nos dizia: Possam todos quantos perderam suas afeições terrenas experimentar a mesma consolação que experimento!

Acrescentaremos apenas uma palavra aos que negam a existência dos bons Espíritos. Perguntaremos como poderiam provar que o Espírito desta jovem era um demônio malfazejo!


UMA CONVERSÃO


Embora sob outro ponto de vista, não será menor o interesse oferecido pela evocação seguinte.

Um senhor, que designaremos pelo nome de Georges, farmacêutico numa cidade do Sul, há muito havia perdido o pai, objeto de toda a sua ternura e de profunda veneração. O velho Sr. Georges — o pai — aliava a uma instrução muito vasta todas as qualidades que marcam o homem de bem, embora professasse ideias materialistas. A esse respeito o filho partilhava das mesmas ideias, se não ultrapassava as do pai; duvidava de tudo: de Deus, da alma, da vida futura. O Espiritismo não se adaptava a tais pensamentos. A leitura de O Livro dos Espíritos, entretanto, provocou-lhe uma certa reação, corroborada por uma conversa direta que tivemos com ele. Ele dizia: “Se meu pai pudesse me responder, eu não duvidaria mais.” Foi então que se fez a evocação seguinte, na qual encontramos diversos ensinamentos.

1. — Em nome do Todo-Poderoso, Espírito de meu pai, eu lhe peço que se manifeste. O senhor está junto de mim?

— Sim.

2. — Por que o senhor não se manifesta diretamente a mim, quando tanto nos amamos?

— Mais tarde.

3. — Poderemos nos encontrar um dia?

— Sim, breve.

4. — Amar-nos-emos como nesta vida?

— Mais.

5. — Em que meio o senhor se acha?

— Sou feliz.

6. — O senhor reencarnou ou está errante?

— Errante por pouco tempo.

7. — Que sensação experimentou ao deixar o envoltório corporal?

— De perturbação.

8. — Quanto tempo durou a perturbação?

— Pouco para mim, muito para você.

9. — Pode avaliar a sua duração, de acordo com o nosso modo de contar?

— Dez anos para você, dez minutos para mim

10. — Mas não faz tanto tempo que eu o perdi. Não foi há apenas quatro meses?

— Se você, como vivo, estivesse em meu lugar, teria sentido aquele tempo.

11. — Crê agora em um Deus justo e bom?

— Sim.

12. — Quando vivo na Terra também acreditava?

— Eu tinha a presciência, mas não acreditava.

13. — Deus é Todo-Poderoso?

— Não subi até ele para avaliar o seu poder. Só ele conhece os limites de seu poder, porque só ele é seu igual.

14. — Ele se ocupa com os homens?

— Sim.

15. — Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos?

— Se você fizer o mal, sofrerá.

16. — Serei recompensado se fizer o bem?

— Avançará em seu caminho.

17. — Estou no bom caminho?

— Faça o bem e estará.

18. — Creio ser bom, mas seria melhor se um dia pudesse encontrá-lo, como recompensa.

— Que este pensamento o sustente e o encoraje.

19. — Meu filho será bom como seu avô?

— Desenvolva suas virtudes e extirpe seus vícios.

20. — Isto é tão maravilhoso que chego a não crer que nos comunicamos neste momento.

— De onde lhe vem a dúvida?

21. — É que, partilhando de suas opiniões filosóficas, fui levado a atribuir tudo à matéria.

Você vê de noite aquilo que vê de dia?

22. — Ó, meu pai! Então eu me acho na noite?

— Sim.

23. — Que é o que o senhor vê de mais maravilhoso?

— Explique-se melhor.

24. — Encontrou minha mãe, minha irmã e Ana, a boa Ana?

— Eu as revi.

25. — O senhor volta a vê-las quando quer?

— Sim.

26. — É penoso ou agradável para o senhor, que eu me comunique consigo?

— É uma felicidade para mim, se eu puder conduzi-lo ao bem.

27. — Voltando para casa, que poderia fazer para me comunicar com o senhor, já que isto me dá prazer? Isto serviria para que me conduzisse melhor e me ajudaria a educar os meus filhos.

— Cada vez que um movimento o levar ao bem, siga-o. Eu o inspirarei.

28. — Calo-me com receio de importuná-lo.

— Fale ainda, se quiser.

29. — Já que o permite, farei mais algumas perguntas. De que afecção o senhor morreu?

— Minha prova havia chegado ao termo.

30. — Onde o senhor contraiu o abscesso pulmonar que se manifestou?

— Pouco importa. O corpo nada é. O Espírito é tudo.

31. — Qual a natureza da doença que me desperta tão frequentemente durante a noite?

— Sabê-lo-á mais tarde.

32. — Considero minha afecção grave e queria ainda viver para os meus filhos.

— Ela não o é. O coração do homem é uma máquina de vida. Deixe a natureza agir.

33. — Considerando-se que o senhor está aqui presente, sob que forma se acha?

— Sob a aparência de minha forma corpórea.

34. — O senhor está num lugar determinado?

— Sim; por detrás de Ermance (a médium).

35. — Poderia tornar-se visível?

— Não vale a pena. Vocês teriam medo.

36. — O senhor tem uma opinião sobre cada um de nós, aqui presentes?

— Sim.

37. — Quer dizer alguma coisa a cada um de nós?

— Em que sentido me faz esta pergunta?

38. — Do ponto de vista moral.

— De outra vez. Por hoje basta.

O efeito que esta comunicação produziu no Sr. Georges foi imenso, e uma luz inteiramente nova já parecia clarear-lhe as ideias. Numa sessão a que compareceu no dia seguinte, em casa da Sra. Roger, sonâmbula, acabou de dissipar as poucas dúvidas que lhe poderiam restar. Eis um resumo da carta que a respeito nos escreveu:

“Essa senhora entrou espontaneamente comigo em detalhes tão precisos em relação a meu pai, minha mãe, meus filhos e minha saúde; descreveu com tal exatidão todas as circunstâncias de minha vida, lembrando mesmo fatos que de há muito me haviam sido varridos da memória; numa palavra, deu-me provas tão patentes dessa maravilhosa faculdade de que são dotados os sonâmbulos lúcidos, que desde então foi completa em mim a reação das ideias. Na evocação, meu pai havia revelado a sua presença. Na sessão de sonambulismo, por assim dizer, eu era testemunha ocular da vida extracorpórea, a vida da alma. Para descrever com tanta minúcia e exatidão, e a duzentas léguas de distância, aquilo que só de mim era conhecido, era preciso ver. Ora, de vez que isto não era possível com os olhos do corpo, havia então um laço misterioso, invisível, que ligava a sonâmbula às pessoas e às coisas ausentes que ela jamais tinha visto. Havia, pois, algo fora da matéria. Que podia ser essa coisa senão aquilo que se chama alma, o ser inteligente do qual o corpo é simples envoltório, mas cuja ação se estende muito além de nossa esfera de atividade?”

Atualmente o Sr. Georges não só deixou de ser materialista, mas é um dos adeptos mais fervorosos e mais dedicados do Espiritismo, o que o faz duplamente feliz, pela confiança que agora tem no futuro e pelo prazer que experimenta em praticar o bem.

Esta evocação, inicialmente muito simples, não é menos notável em muitos aspectos. O caráter do velho Georges reflete-se nas respostas breves e sentenciosas que estavam em seus hábitos. Ele falava pouco; jamais dizia uma palavra inútil. Mas já não é o céptico que fala. Ele reconhece seu erro; seu Espírito é mais livre, mais clarividente, e retrata a unidade e o poder de Deus por estas palavras admiráveis: “Só ele é seu igual.” Ele, que em vida tudo atribuía à matéria, diz agora: “O corpo nada é. O Espírito é tudo.” E esta outra frase sublime: “Você vê de noite aquilo que vê de dia?”

Para o observador atento, tudo tem um alcance, e é assim que a cada passo ele encontra a confirmação das grandes verdades ensinadas pelos Espíritos.

Março Conversas familiares de além-túmulo

Março

Nota: Nestas conversas suprimiremos, doravante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.


1. Quais as vossas sensações ao deixardes o mundo terrestre?

Resposta. – Porque ainda perturbada, torna-se-me impossível explicá-las.


2. Sois feliz?

Resposta. – Não.


3. Por que não sois feliz?

Resposta. – Tenho saudades da vida… não sei… experimento acerba dor da qual a vida me libertaria… quisera que o corpo se levantasse do túmulo…


4. Lamentais o ter sido sepultada entre cristãos, e não no vosso país?

Resposta. – Sim, a terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.


5. Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?

Resposta. – Não foram grande coisa, pois eu era rainha e nem todos se curvaram diante de mim… Deixai-me… forçam-me a falar, quando não quero que saibais o que ora sou… Asseguro-vos, eu era rainha…


6. Respeitamos a vossa hierarquia e só insistimos para que respondais no propósito de nos instruirmos. Acreditais que vosso filho recupere de futuro os Estados de seu pai?

Resposta. – Meu sangue reinará, por certo, visto como é digno disso.


7. Ligais a essa reintegração de vosso filho a mesma importância que lhe dáveis quando encarnada?

Resposta. – Meu sangue não pode misturar-se com o do povo.


8. Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?

Resposta. – O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.


9. Que pensais do futuro que está reservado a esse país?

Resposta. – A Índia será grande entre as nações.


10. Não se pôde fazer constar na respectiva certidão de óbito o lugar do vosso nascimento; podereis no-lo dizer agora?

Resposta. – Sou rainha oriunda do mais nobre dos sangues da Índia. Penso que nasci em Delhi.


11. Vós, que vivestes nos esplendores do luxo, cercada de honras, que pensais hoje de tudo isso?

Resposta. – Que tinha direito.


12. A vossa hierarquia terrestre concorreu para que tivésseis outra mais elevada nesse mundo em que ora estais?

Resposta. – Continuo a ser rainha… que se enviem escravas para me servirem!… Mas… não sei… parece-me que pouco se preocupam com a minha pessoa aqui… e contudo eu… sou sempre a mesma.


13. Professáveis a religião muçulmana ou a hindu?

Resposta. – Muçulmana; eu era, porém, bastante poderosa para me ocupar de Deus.


14. Do ponto de vista da felicidade humana, quais as diferenças que assinalais entre a vossa religião e o Cristianismo?

Resposta. – A religião cristã é absurda; diz que todos são irmãos.


15. Qual a vossa opinião a respeito de Maomé?

Resposta. – Não era filho de rei.


16. Acreditais que ele houvesse tido uma missão divina?

Resposta. – Que me importa isso?


17. Qual a vossa opinião quanto ao Cristo?

Resposta. – O filho do carpinteiro não é digno de ocupar os meus pensamentos.


18. Que pensais desse uso pelo qual as mulheres muçulmanas se furtam aos olhos masculinos?

Resposta. – Penso que as mulheres nasceram para dominar: – eu era mulher.


19. Tendes inveja da liberdade de que gozam as europeias?

Resposta. – Que poderia importar-me tal liberdade? Servem-nas, acaso, ajoelhados?


20. Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?

Resposta. – Que me importam as mulheres! Se me falasses de rainhas!


21. Tendes reminiscências de encarnações anteriores a esta que vindes de deixar?

Resposta. – Deveria ter sido sempre rainha.


22. Por que acudistes tão prontamente ao nosso apelo?

Resposta. – Não queria fazê-lo, mas forçaram-me. Acaso julgarás que me dignaria responder-te? Quem és tu ao meu lado?


23. E quem vos forçou a vir?

Resposta. – Eu mesma não sei… posto que não deve existir ninguém maior do que eu.


24. Em que lugar vos encontrais aqui?

Resposta. – Perto de Ermance.


25. Sob que forma vos apresentais aqui?

Resposta. – Sempre rainha… e pensas que eu tenha deixado de o ser? És pouco respeitoso… fica sabendo que não é desse modo que se fala a rainhas.


26. Por que não vos podemos ver?

Resposta. – Não o quero.


27. Se nos fosse dado enxergar-vos, ver-vos-íamos com os vossos ornatos e pedrarias?

Resposta. – Certamente.


28. E como se explica o fato de, despojado de tudo isso, conservar o vosso Espírito tais aparatos, sobretudo os ornamentos?

Resposta. – É que eles me não deixaram. Sou tão bela quanto era, e não compreendo o juízo que de mim fazeis. É verdade que nunca me vistes.


29. Que impressão vos causa estardes entre nós?

Resposta. – Se eu pudesse evitá-la… Tratam-me com tão pouca cortesia… Não quero que me tratem assim… Chamai-me Majestade, ou não responderei mais.


30. Vossa Majestade compreendia a língua francesa?

Resposta. – Por que não a compreenderia? Eu sabia tudo.


31. Vossa Majestade gostaria de nos responder em inglês?

Resposta. – Não… Não me deixareis, pois, tranquila?… Quero ir embora… Deixai-me… Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?… Sou rainha, e não escrava.


32. Rogamos somente que respondais, ainda, a duas ou três perguntas.

Resposta de São Luís, que estava presente: Deixai-a, a pobre perturbada. Tende compaixão da sua cegueira e oxalá vos sirva de exemplo. Não sabeis quanto padece o seu orgulho.


Observação. – Essa conversa oferece mais de um ensinamento. Evocando essa majestade decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas de grande profundidade, tendo em vista o gênero de educação das mulheres naquele país; mas pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um sentimento mais verdadeiro da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas da Terra. Longe disso: nela as ideias terrestres conservaram toda sua força; é o orgulho, que nada perdeu de suas ilusões, que luta contra sua própria fraqueza e que deve, com efeito, sofrer muito por sua impotência. Prevendo respostas de outra natureza, havíamos preparado diversas perguntas que se tornaram sem objetivo. Essas respostas são tão diferentes das que esperávamos, assim como as pessoas presentes, que nelas não se poderia ver a influência de um pensamento estranho. Além disso, têm uma marca tão característica de personalidade, que acusam claramente a identidade do Espírito que se manifestou.


Poder-se-ia estranhar, com razão, ver Lemaire, homem degradado e maculado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de além-túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação bastante exata de sua situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja hierarquia deveria ter-lhe desenvolvido o senso moral, não sofreram as ideias terrestres nenhuma modificação. A causa dessa anomalia parece fácil de explicar. Por mais degradado fosse, Lemaire vivia no seio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido contra sua natureza grosseira; ele havia absorvido, mau grado seu, alguns raios da luz que o cercavam e essa luz nele fez nascerem pensamentos sufocados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir. Ocorre de modo diferente com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a ausência absoluta de cultura intelectual, tudo deve ter contribuído para manter, em toda a sua pujança, as ideias de que estava imbuída desde a infância; nada veio modificar essa natureza primitiva, sobre a qual os preconceitos conservaram todo o seu império.



ANEXO.
A TRAJETÓRIA DA RAINHA DE OUDE.

Sônia Zaghetto.


Há histórias que, por seu conteúdo envolvente e suas lições preciosas, tornam-se emblemáticas. Uma dessas histórias está no livro O Céu e o Inferno, no capítulo que reúne as experiências dos Espíritos endurecidos. Entre aqueles seres obstinados, de coração pétreo, poucos se comparam à Rainha de Oude. Orgulhosa, enfadada com tudo o que não fosse sua tradição dinástica, dona de um enorme desprezo pelos valores espirituais, é um personagem que impressiona. A história desse Espírito, sua glória e tragédia tornam ainda mais enriquecedora a leitura de seu diálogo com Allan Kardec.

No século XVIII, os países europeus buscavam novos mercados que consumissem os produtos industrializados e onde obtivessem matérias-primas a baixo custo. A Índia era um dos focos de atenção. Com a criação da Companhia das Índias Orientais, a Inglaterra obteve o monopólio do comércio indiano, superou a concorrência franco-portuguesa e, um século depois, ocupava praticamente todo o País. Práticas como o confisco de propriedades rurais e a cobrança de impostos extorsivos inspiravam ânsias de liberdade. Sem uma autoridade central e dividida entre reinos rivais, a Índia reagiu com a “Revolta dos Sipaios” (soldados nativos empregados da Companhia das Índias Orientais). A Inglaterra esmagou as rebeliões e intensificou a expansão imperialista. Reinos de marajás e nababos foram tomados. Entre eles o reino de Oude (Awadh ou Oudh), governado pelo nababo Wajid Ali Sha.

A Rainha-mãe de Oude, Malika Kishwar, era uma legítima purdah nasheen lady, dama que vivia de acordo com os mais rígidos costumes muçulmanos. Em público estava sempre coberta pelo véu tradicional e a ninguém era permitido contemplar sua figura. Nas audiências que concedia, ficava isolada por pesadas cortinas e uma secretária transmitia suas respostas ao interlocutor. Como as outras damas de sua estirpe e religião, recebeu educação esmerada e cresceu cercada de luxo e riquezas, em completo recolhimento na zenana, uma construção dentro do palácio a que apenas mulheres tinham acesso. Homens, somente os parentes diretos: marido, pais e filhos. Descendente dos imperadores mongóis que ocuparam a Índia, era filha do nababo Hisam ud-din Khan, de Kalpi. Sua mãe era a Rainha Vilayati, filha do famoso nababo As’adat Ali Khan. Pelo casamento se tornou Begum (primeira e principal esposa) do Rei Amjad Ali Sha, de Oude, situado onde hoje é o Estado de Lucknow, ao norte da Índia.

Um dos mais prósperos reinos indianos, Oude foi anexado à Companhia das Índias Orientais em 1856 e toda a família real, que incluía as 148 esposas e os 40 filhos do Rei, foi transferida para Calcutá. O nababo Wajid Ali Sha, entusiasta das artes — principalmente da música, da dança e da poesia — foi acusado de ser um administrador desatento, sem controle sobre as finanças do reino e mais interessado em prazeres.

A Rainha-mãe viajou até a Inglaterra para interceder junto à Rainha Victoria em favor da restituição do reino de seu filho. Desembarcou fazendo jus à fama de extraordinária riqueza dos reis indianos: com a pompa de joias espetaculares, um cortejo que incluía dois príncipes e centenas de servos, tecidos preciosos e uma impressionante coleção de títulos: Janab-i-Aliya Malika-i-Kishwar Khanum, Mukhtar Aliya, Fakhr uz-Zamani Nawab Taj Ara Begum Sahiba. “Janab-i-Aliya” significa algo como “Sua Alteza Real”. “Malika” é o termo árabe para Rainha. “Khanum” é o feminino de Khan, título mongol. “Fakhr uz-Zamani” significa “glória de sua época”. Nawab e Begum juntos em um mesmo título, correspondem à identificação de uma esposa da realeza. “Taj Ara” quer dizer “ornamento da coroa”.

Foi recebida com grandes honras pela Rainha Victoria, mas a Inglaterra era uma monarquia constitucional e Victoria não tinha poderes para intervir no caso. Para agravar o quadro, enquanto a Rainha de Oude estava na Europa, explodiu a grande rebelião de 1857 contra a presença britânica na Índia. Wajid Ali Sha e suas esposas estavam diretamente envolvidas. Esse primeiro levante pela independência ensanguentou o País. Mesmo os mais resistentes, como a lendária Lakshimi, Rani de Jansi, foram dizimados pelos ingleses e sua derrota reduziu ainda mais as possibilidades de os reinos retomarem sua autonomia.

A Rainha de Oude permaneceu na 1nglaterra por um ano. Na viagem de volta, durante uma escala em Paris, em 23 de janeiro de 1858, ela morreu em decorrência de uma moléstia súbita. Tinha 58 anos de idade. Há várias versões para a morte. Uns apontam o cólera, outros depressão. Um mês depois, seu filho, General Mirza Sikandar Hashmat, também morreu e foi sepultado junto da mãe.

Em um gesto de provocação à Inglaterra, a França concedeu à Rainha de Oude funerais de Chefe de Estado. O enterro percorreu as ruas de Paris e se tornou um dos acontecimentos mais comentados e noticiados do País. Malika Kishwar foi sepultada na área muçulmana do Cemitério do Père-Lachaise, na 85ª divisão, a poucos metros de onde está localizado hoje o túmulo de Allan Kardec. De sua tumba imponente hoje resta somente a fundação. Um desenho no local mostra a opulência do monumento original.

Atento aos fatos de seu tempo, Allan Kardec evocou a Rainha na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e publicou a conversa na Revue Spirite de março de 1858 e, mais tarde, em O Céu e o Inferno. Evocou-a em duas outras ocasiões sem notar mudanças significativas. O diálogo entre a Rainha e o Codificador é revelador. Ela informa que está perturbada, que tem saudades da vida (“Experimento acerba dor, da qual a vida me libertaria”), mas exige ser tratada como Majestade. Nada parece satisfazê-la em suas aspirações de poder; a morte ainda não a faz refletir sobre sua atitude perante a vida. É o que se deduz de sua resposta quando Kardec indaga sobre as honras que lhe foram tributadas por ocasião de seu funeral: “Não foram grande coisa, pois eu era rainha e nem todos se curvaram diante de mim…”

O exclusivismo da realeza está bem traduzido nas respostas da Rainha: “Meu sangue não pode misturar-se com o do povo.” Seu apego às paixões materiais está explícito no desprezo à figura de Jesus (“O filho do carpinteiro não é digno de ocupar meus pensamentos”) e, mesmo sendo muçulmana e cumpridora dos costumes, não permitiu que a religião sobrepujasse a posição social (“Eu era bastante poderosa para que me ocupasse de Deus”). Sequer o profeta Maomé lhe merece um comentário caloroso (“Não é filho de rei”).

Pode-se entender seu desprezo até pela liberdade conquistada pelas mulheres do Ocidente (“Que me importam as mulheres! Se me falasses de rainhas…”) se considerarmos que ela era a principal dama da sua corte e seu poder político era tremendo.

“Meu sangue reinará, por certo, visto como é digno disso”; disse ela a Kardec, mas essa aspiração jamais se concretizou. A nora da Rainha, Hazrat Mahal, se tornou um símbolo da resistência ao imperialismo inglês, mas Wajid Ali Sha e seus filhos morreram no exílio. Em 1858, o Parlamento britânico transferiu a administração do País para a Coroa e em 1876 o governo inglês, liderado por Benjamin Disraeli, proclamou a Rainha Victoria Imperatriz da Índia.

O domínio inglês estendeu-se até 15 de agosto de 1947, quando, não o orgulho e a guerra, mas a resistência pacífica e a não-violência do Mahatma Gandhi dobraram a resistência dos britânicos e proclamaram a independência da grande pátria indiana.






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