Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

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Capítulo XX

Março - Os Espíritos e o brasão

Março


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Entre os argumentos apresentados por certas pessoas em oposição à doutrina da reencarnação, um há que devemos examinar porque, à primeira vista, parece especioso.

Dizem que ela tenderia a romper os laços da família, multiplicando-os, pois aquele que concentrasse sua afeição sobre o pai deveria reparti-la por tantos pais quantas as reencarnações. Como, então, uma vez no mundo dos Espíritos, se reconhecer no meio dessa progenitura? Por outro lado, em que se torna a filiação dos antepassados, se aquele que se julga descendente em linha reta de Hugo Capeto ou de Godofredo de Bulhões viveu várias vezes? Se, depois de ter sido um grão senhor, pode tornar-se um plebeu? Eis, assim, toda uma linhagem derrubada!

Para começar responderemos que de duas uma: ou isso é ou não é. Se for, todas as recriminações pessoais não impedirão que seja, porque, para regular a ordem das coisas, Deus não pede conselho a este ou àquele, do contrário cada um quereria que o mundo fosse regido à sua vontade. Quanto à multiplicidade dos laços de família, diremos que certos pais não têm senão um filho, enquanto outros têm dez, doze e mais. Já se pensou em acusar Deus de obrigá-los a dividir a afeição em tantas partes? E esses filhos, que por sua vez têm filhos, tudo isso não forma uma família numerosa da qual avô ou bisavô se vangloria, em vez de lamentar-se? Vós, que fazeis vossa genealogia remontar a cinco ou seis séculos, uma vez no mundo dos Espíritos, não devereis partilhar a vossa afeição entre todos os vossos ascendentes? Se vos atribuís uma dúzia de avós, então tereis o duplo ou o triplo, eis tudo! Mas tendes uma ideia muito mesquinha dos vossos sentimentos afetuosos, pois temeis que não bastem para querer a várias pessoas. Tranquilizai-vos, porém. Vou provar que com a reencarnação vossa afeição será menos dividida do que se não existisse. Com efeito, suponhamos que na vossa genealogia contásseis cinquenta avós, tanto ascendentes diretos quanto colaterais, o que é pouco, se remontardes às cruzadas. Pela reencarnação pode ser que alguns dentre eles voltem várias vezes, e que assim, em lugar de cinquenta Espíritos que contais na Terra, só encontreis a metade no outro mundo.

Passemos à questão de filiação. Com o vosso sistema chegais a um resultado diferente daquele que esperais. Se não houver preexistência, anterioridade da alma, a alma ainda não viveu. Nesse estado de coisas, não tem nenhuma relação com nenhum dos vossos antepassados. Suponhamos que descendais em linha reta de Carlos Magno. O que é que há de comum entre vós e ele? O que foi que vos transmitiu intelectual e moralmente? Nada, absolutamente nada. Por que vos apegais a ele? Por uma série de corpos que apodreceram todos, destruídos e dispersados? Não há nisso por que vos sentirdes orgulhosos. Com a preexistência da alma, ao contrário, podeis ter tido com os vossos antepassados relações reais, sérias e mais lisonjeiras para o amor-próprio. Portanto, sem a reencarnação existe apenas um parentesco corporal, pela transmissão de moléculas orgânicas da mesma natureza que a dos cavalos puro-sangue. Com a reencarnação há um parentesco espiritual. Qual dos dois é melhor?

Certamente objetareis que com a reencarnação um Espírito estranho pode infiltrar-se na vossa linhagem e que, em vez de nela contar apenas gentis-homens, pode-se aí encontrar um sapateiro. É perfeitamente certo, mas isso não quer dizer nada. São Pedro era um pobre pescador. Ele não seria de uma casa suficientemente digna que nos fizesse corar por tê-lo em nossa família?

Depois, entre seus antepassados de nomes brilhantes, tiveram todos uma conduta edificante, a nosso ver a única coisa de que, até certo ponto, nos poderíamos honrar, posto o seu mérito nada tenha com o nosso? Que se perscrute a vida particular desses paladinos, desses grandes barões que roubavam sem escrúpulos os transeuntes e que, em nossos dias, seriam simplesmente arrastados à barra do tribunal por seus grandes feitos; de certos grão senhores para quem a vida de um vilão não valia uma peça de caça, pois faziam enforcar um homem por causa de um coelho. Tudo isso eram pecadilhos que não manchavam brasões. Mas fazer um casamento desigual; introduzir na família um sangue plebeu era um crime imperdoável. Ora, por mais que se faça, quando soar a hora da partida ─ e soa para os grandes como para os pequenos ─ terão que deixar na Terra as roupas bordadas e os pergaminhos de nada servirão diante do juiz supremo, que pronuncia esta sentença terrível: Aquele que se exaltar será humilhado!

Se bastasse descender de qualquer grande homem para ter seu lugar marcado previamente no Céu, a gente o compraria barato, pois custaria apenas o mérito alheio. A reencarnação dá uma nobreza mais meritória ─ a única aceita por Deus ─ a de haver pessoalmente animado uma série de homens de bem. Feliz aquele que puder depor aos pés do Eterno o tributo dos serviços feitos à Humanidade em cada uma de suas existências, porque a soma de seus méritos será proporcional ao número de suas existências. Mas àquele que apenas puder prevalecer-se da ilustração de seus antepassados, perguntará Deus: “Por que vós mesmo não vos ilustrastes?”.

Um outro sistema poderia, aparentemente, conciliar as exigências do amorpróprio com o princípio da não reencarnação. É aquele pelo qual o pai não transmitiria ao filho apenas o corpo, mas também uma porção da alma, de modo que, se descendêsseis de Carlos Magno, vossa alma poderia ter seu tronco na dele. Muito bem. Vejamos, porém, a que consequência chegamos. Em virtude de tal sistema, a alma de Carlos Magno teria o seu tronco na de seu pai e, assim, elo por elo, chegaríamos a Adão. Se a alma de Adão é o tronco de todas as almas do gênero humano, as quais transmitem aos sucessores uma porção de si própria, as almas atuais seriam um produto de fracionamento tal que ultrapassaria todas as subdivisões homeopáticas. Disso resultaria que a alma do pai comum deveria ser mais completa e mais inteira que a dos descendentes. Resultaria, ainda, que Deus teria criado apenas uma alma, que se subdividiria ao infinito e assim cada um de nós não seria uma criação direta de Deus.

Aliás, tal sistema deixaria imenso problema a ser resolvido: o das aptidões especiais. Se o pai transmitisse a seu filho os atributos de sua alma, necessariamente transmitiria suas virtudes e seus vícios, seus talentos e sua inépcia, como lhe transmite certas enfermidades congênitas. Como, então, explicar por que homens virtuosos ou de gênio têm filhos maus ou cretinos e vice-versa? Por que uma linhagem seria misturada de bons e de maus? Dizei, ao contrário, que cada alma é individual; que tem existência própria e independente; que progride em virtude de seu livre-arbítrio, por uma série de existências corporais, em cada uma das quais adquire algo de bom e deixa algo de mau, até que tenha atingido a perfeição, e tudo se explica, tudo se acomoda à razão, à justiça de Deus, mesmo em proveito do amor-próprio.

O Sr. Salgues, de Antuérpia, de quem falamos no número passado, não é partidário da reencarnação. Depois do aparecimento de O Livro dos Espíritos ele escreveu-nos uma longa carta, na qual combatia essa doutrina com argumentos baseados na sua incompatibilidade com os laços de família. Nessa carta, datada de 18 de setembro de 1857, dá-nos a sua genealogia, que remonta aos carolíngios e pergunta em que se torna essa gloriosa filiação, com a mistura de Espíritos pela reencarnação. Dela extraímos a seguinte passagem:

“Mas para que serviriam os quadros genealógicos? Tenho o meu completo, regular: de um lado, desde os antepassados de Carlos Magno, e do outro, desde a filha do emir Muza, um dos descendentes abassidas de Maomé, décima geração por seu casamento com Garcia, príncipe de Navarra, pai, com ela, de Garcia Ximenes, rei de Navarra; e, enfim, essa genealogia continuou, por meio de alianças, por soberanos de quase todas as cortes da Europa, até a época de Afonso VI, rei de Castela, depois nas casas de Comminges, de Lascaris 5intimille, de Montmorency, de Turenne e finalmente dos condes e senhores Pelhasse de Salgues, no Languedoc.

“Tudo isto se pode verificar na Arte de verificar as datas, nos Beneditinos de Saint-Maur, no Dicionário da nobreza da França, no Armorial, no Padre Anselmo, Noreri, etc. Mas se não nos ligamos aos nossos pais senão pela matéria carnal que recebeu o nosso Espírito, não há em toda parte lacunas e soluções de continuidade? É um caminho traçado na areia, que se perde em milhares de direções.

Então, que nos seja permitido crer que se o Espírito não se transmite, a alma é para o homem o que o aroma é para a flor. Ora, Swedenborg não diz nos Arcanos que nada se perde na Natureza, e que o aroma das flores reproduz novas flores em outras regiões, que não aquela de onde saiu? É, pois, pela alma, que não é Espírito, que talvez existisse uma cadeia semiespiritual das gerações. Se tivesse contentado ao meu Espírito saltar oito ou dez gerações de vez em quando, onde poderia reconhecer meus antepassados?”

Como se vê, o Sr. Salgues não se apega senão à procedência do corpo. Como, porém, conciliar as relações de Espírito a Espírito com a não preexistência da alma? Se houvesse entre eles, na filiação, relações necessárias, como o descendente de tantos soberanos seria hoje um simples proprietário anjuvino? Aos olhos do mundo não é uma regressão? Não pomos em dúvida a autenticidade de sua genealogia, e o felicitamos por ela, desde que isso lhe dá prazer, mas diremos que o prezamos mais por suas virtudes pessoais do que pelas dos antepassados.

A autoridade de Swedenborg é muito contestável, quando atribui ao aroma a reprodução das flores. Esse óleo essencial, volátil, que lhe dá o aroma, jamais teve a faculdade reprodutora, que reside unicamente no pólen. Falta, portanto, justeza à comparação, pois se a alma apenas influencia, com seu perfume, a alma que a sucede, não a cria. Contudo, deveria transmitir-lhe suas próprias qualidades e, em tal hipótese, não vemos por que o descendente de Carlos Magno não teria enchido o mundo com o brilho de suas ações, enquanto que Napoleão se apoiaria sobre uma alma vulgar. Diga-se, no entanto, que Napoleão descende de Carlos Magno, ou melhor, que ele foi Carlos Magno, que veio no século dezenove continuar a obra começada no oitavo, e a gente compreenderá. Mas, com o princípio da unicidade da existência, nada liga Carlos Magno aos seus descendentes, a não ser esse aroma, transmitido pouco a pouco sobre almas não criadas. Então, como explicar por que, entre seus descendentes, houve tantos homens nulos e indignos, e por que Napoleão é um gênio muito maior do que seus obscuros antepassados?

Faça-se o que se fizer, sem a reencarnação, a gente se bate, a cada passo, contra dificuldades insolúveis, que só a preexistência da alma resolve de maneira ao mesmo tempo simples, lógica e completa, porque dá a razão de tudo.

Outra questão. Um fato conhecido é que as famílias se abastardam e degeneram quando as alianças não saem da linha direta. Dá-se nas raças humanas o mesmo que nas raças animais. Por que, então, a necessidade de cruzamentos? Em que se torna, então, a unidade do tronco? Não há aí uma mistura de Espíritos, uma intrusão de Espíritos estranhos à família?

Um dia abordaremos este grave problema, com todos os desenvolvimentos que o assunto comporta.


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