Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

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Capítulo III

Janeiro - Controle do ensino espírita

Janeiro


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A organização que propusemos para a formação de grupos espíritas visa preparar o caminho que deve facilitar suas relações mútuas. Entre as vantagens daí resultantes deve colocar-se em primeira linha a unidade de doutrina, que será sua consequência natural. Essa unidade já se acha em parte realizada e as bases fundamentais do Espiritismo são hoje admitidas pela imensa maioria dos adeptos. Mas ainda há questões duvidosas, ou porque ainda não tenham sido resolvidas, ou porque o foram em sentidos diversos pelos homens, e mesmo pelos Espíritos.

Se por vezes os sistemas são produto dos cérebros humanos, sabe-se que, a tal respeito, certos Espíritos não ficam para trás. Na verdade alguns se veem que arquitetam ideias absurdas com maravilhosa habilidade, encadeiam-nas com muita arte e constroem um todo mais engenhoso do que sólido, mas que poderia falsear a opinião de pessoas que não se dão ao trabalho de aprofundar-se, ou que são incapazes de fazê-lo pela insuficiência de conhecimentos. Sem dúvida as ideias falsas acabam caindo ante a experiência e a lógica inflexível. Mas antes disso podem produzir a incerteza.

Também é sabido que, conforme sua elevação, os Espíritos podem ter um modo de ver mais ou menos justo sobre determinados assuntos; que as assinaturas das comunicações nem sempre são garantia de autenticidade e que os Espíritos orgulhosos procuram por vezes pregar utopias ao abrigo de nomes respeitáveis, com que se enfeitam. É, sem a menor dúvida, uma das principais dificuldades da ciência prática, contra a qual muitos se chocaram.

Em caso de divergência, o melhor critério é a conformidade dos ensinos por diferentes Espíritos e transmitidos por médiuns diferentes e estranhos uns aos outros. Quando o mesmo princípio for proclamado ou condenado pela maioria, é preciso nos rendermos à evidência. Se há um meio de chegar à verdade é, certamente, pela concordância, tanto quanto pela racionalidade das comunicações, ajudadas pelos meios de que dispomos de constatar a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos. Desde que a opinião deixa de ser individual para se tornar coletiva, adquire um grau maior de autenticidade, porque não pode considerar-se como resultado de uma influência pessoal ou local. Os que ainda se acham em dúvida terão uma base para fixar as suas ideias, porque será irracional pensar que aquele que em seu ponto de vista está só, ou quase só, tenha razão contra todos.

O que acima de tudo contribuiu para o crédito da doutrina de O Livro dos Espíritos foi precisamente que sendo produto de um trabalho semelhante, tem um eco em toda parte. Como o dissemos, nem é obra de um Espírito único, que poderia ser sistemático, nem de um médium único, que poderia ser enganado. É, ao contrário, um ensino coletivo, dado por uma grande diversidade de Espíritos e de médiuns, e cujos princípios que encerra são confirmados mais ou menos por toda parte. Dizemos mais ou menos, visto que, como acima ficou explicado, há Espíritos que procuram fazer prevalecer suas ideias pessoais. É, pois, útil submeter as ideias divergentes ao controle que propomos. Se a doutrina ou quaisquer pontos doutrinários que professamos fossem reconhecidos como errados, num julgamento unânime, submeter-nos-íamos sem murmuração, sentindo-nos felizes por terem outros encontrado a verdade. Se, entretanto, ao contrário, elas forem confirmadas, hão de permitir creiamos estar com a verdade.

A Sociedade Espírita de Paris, compreendendo toda a importância de semelhante trabalho e tendo, em primeiro lugar, que esclarecê-lo por si mesma, e depois provar que de modo algum pretende erigir-se em árbitro absoluto das doutrinas que professa, submeterá aos diversos grupos que com ela se correspondem as questões que julgar mais úteis à propagação da verdade. Essas questões serão submetidas, conforme as circunstâncias, por correspondência particular ou por intermédio da Revista Espírita.

Compreende-se que para ela, e em razão da maneira séria pela qual encara o Espiritismo, a autoridade das comunicações depende das condições em que se realizam as reuniões, o caráter dos membros e o objetivo que se tenha em mira. Provindo de grupos formados sobre as bases indicadas em nosso artigo sobre a organização do Espiritismo, as comunicações terão tanto mais peso aos seus olhos quanto melhores forem as condições desses grupos.

Submetemos aos nossos correspondentes as questões que se seguem, enquanto aguardam as que remeteremos posteriormente.


Junho 3 SOBRE O QUADRO DO SR INGRES

Junho


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1. — A Sra. Dozon, nossa colega da Sociedade, recebeu em casa, em 9 de abril de 1862, a seguinte comunicação espontânea:


“O menino Jesus encontrado por seus pais pregando no Templo, entre os doutores. (São Lucas, Natividade). Tal é o motivo de um quadro inspirado a um dos nossos maiores artistas. Essa obra do homem revela mais que o gênio: aí se vê brilhar aquela luz que Deus dá às almas para as esclarecer e as conduzir às regiões celestes. Sim, a religião iluminou o artista. Esse clarão foi visível? O trabalhador viu o raio partindo do céu e descendo até ele? Teria visto divinizar-se, sob seus pincéis, a cabeça do Menino-Deus? Ter-se-ia ajoelhado diante dessa obra de inspiração divina, e exclamado, como o velho São Simeão: “Senhor, deixareis morrer em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra, porque meus olhos viram o Salvador que nos dais agora e que destinais a ser exposto aos olhos de todos os povos.”

“Sim, o artista pode dizer-se servo do Senhor, porquanto acaba de executar uma ordem de sua suprema vontade. Quis Deus que no tempo em que reina o cepticismo, a multidão parasse diante dessa figura do Salvador! Mais de um coração se afastará levando uma lembrança que o conduzirá ao pé da cruz, onde essa divina criança deu a vida pela Humanidade, por vós, multidão indiferente!

“Contemplando o quadro de Ingres, a vista se afasta a duras penas para se voltar em direção a essa figura de Jesus, onde há um misto de divindade, de infância e também algo da flor; essas roupagens, essa túnica de cores leves, jovens, delicadas, lembrando o suave colorido que se balança nas hastes perfumadas. Tudo merece ser admirado na obra-prima de Ingres. Mas aí a alma gosta mais de contemplar os dois tipos adoráveis de Jesus e de sua divina Mãe. Ainda uma vez experimentamos a necessidade de a saudar por suas palavras angélicas: “Eu vos saúdo, Maria, cheia de graça.” Mas se apenas ousamos levantar o olhar artístico para essa nobre figura divinizada, tabernáculo de um Deus, esposa de um homem, virgem pela pureza, mulher predestinada às alegrias do paraíso e às agonias da Terra, Ingres compreendeu tudo isso e não haveremos de passar diante da Mãe de Jesus sem lhe dizer: “Maria, dulcíssima virgem, em nome de vosso filho, orai por nós!” Vós o apreciareis um dia; eu vi as primeiras pinceladas sobre essa tela bendita. Vi surgirem, uma a uma, as figuras, as poses dos doutores; vi o anjo protetor de Ingres, inspirando-o, fazer cair os pergaminhos das mãos de um desses doutores. Meu Deus, aí se encontra toda uma revelação! Essa voz de criança destruirá também, uma a uma, as leis que não são suas.

“Não desejo aqui fazer arte como ex-artista. Sou um Espírito; para mim só a arte religiosa me toca. Assim, vi nesses graciosos ornamentos de cepas de vinha a alegoria da vinha de Deus, onde todos os homens devem saciar-se, dizendo a mim mesmo, com profunda alegria, que Ingres acabava de fazer amadurecer um de seus belos cachos. Sim, mestre! teu Jesus vai falar, também, diante dos doutores que negam a sua lei, diante dos que a combatem. Mas quando eles se encontrarem sós com a lembrança da Criança divina, oh! mais de um rasgará os rolos de pergaminho sobre os quais a mão de Jesus escreverá: Erro.

“Vede, pois, como todos os trabalhadores marcam um encontro! Uns vêm voluntariamente e por caminhos já conhecidos; outros, conduzidos pela mão de Deus, que os vai buscar em seus lugares e lhes mostra onde devem ir. Outros, ainda, sem saber onde estão, chegam atraídos pelo encanto que lhes faz semear flores de vida, para erguer o altar sobre o qual o menino Jesus ainda hoje vem para muitos, embora, sob safirinas roupagens ou sob a túnica do crucificado, seja sempre o mesmo e único Deus.”


David, pintor.


2. — Nem a Sra. Dozon nem seu marido tinham ouvido falar desse quadro. Havendo nos informado pessoalmente com alguns artistas, nenhum deles o conhecia. Começamos, então, a pensar numa mistificação. O melhor meio de dirimir a dúvida era ir diretamente ao artista, para saber se ele havia tratado do assunto. Foi o que fez o Sr. Dozon. Entrando no ateliê, viu o quadro, acabado somente há poucos dias e, em consequência, desconhecido do público. Essa revelação espontânea torna-se ainda mais notável quando se considera que a descrição dada pelo Espírito é de uma exatidão perfeita. Tudo ali está: o ramo da videira, pergaminhos caídos no chão, etc. No momento o quadro se acha exposto numa sala do Boulevard des Italiens, onde fomos vê-lo e, como toda a gente, admirá-lo, pois que ele representa, indubitavelmente, uma das páginas mais sublimes da pintura moderna. Do ponto de vista da execução, é digno do grande artista que, parece-nos, nada fez de superior, apesar de seus oitenta e três anos. Mas o que dele faz uma obra-prima invulgar é o sentimento que aí domina, a expressão, o pensamento que brota de todas essas figuras, sobre as quais é possível ler a surpresa, a estupefação, a comoção, a dúvida, a necessidade de negar, a irritação por se ver abatido por uma criança. Tudo isto é tão verdadeiro, tão natural, que começamos a pôr palavras em cada boca. Quanto à criança, é de um ideal que deixa muito para trás tudo quanto já foi feito sobre o mesmo assunto. Não é um orador que fala aos seus ouvintes; nem mesmo os olha: nele adivinhamos o órgão de uma voz celeste.

Sem dúvida há o gênio em toda essa concepção, mas a inspiração é incontestável. O próprio Sr. Ingres disse que não tinha composto esse quadro em condições ordinárias; disse tê-lo começado pela arquitetura, o que não é seu costume; a seguir vinham as personagens, por assim dizer, colocar-se por si mesmas sob o seu pincel, sem premeditação de sua parte. Temos motivos para pensar que esse trabalho se liga a coisas cuja chave teremos mais tarde, mas sobre as quais devemos ainda guardar silêncio, como sobre muitas outras.

Tendo o fato acima sido relatado na Sociedade, o Espírito de Lamennais ditou espontaneamente, naquela ocasião, a comunicação que se segue.


3. SOBRE O QUADRO DO SR. INGRES.


(Sociedade Espírita de Paris, 2 de maio de 1862. – Médium: Sr. A. Didier.)

Ultimamente eu vos falava do menino Jesus entre os doutores e vos ressaltava sua iluminação divina em meio às sábias trevas dos sacerdotes judeus. Temos um exemplo a mais de que a espiritualidade e os movimentos da alma constituem a fase mais brilhante da arte. Sem conhecer a Sociedade Espírita, pode-se ser um grande artista espiritualista; em sua nova obra, Ingres não só nos mostra o estudo divino do artista, mas, também, a sua mais pura e ideal inspiração; não essa falsa idealidade que engana a tanta gente e que é uma hipocrisia da arte sem originalidade, mas a idealidade haurida na natureza simples, verdadeira e, por conseguinte, bela em toda a acepção do termo. Nós, Espíritos, aplaudimos as obras espiritualistas, assim como censuramos a glorificação dos sentimentos materiais e de mau gosto. É uma virtude sentir a beleza moral e a beleza física nesse ponto; é a marca certa de sentimentos harmoniosos, no coração e na alma; e, quando o sentimento do belo se desenvolve a esse ponto, é raro que o sentimento moral também não o seja. É um grande exemplo o desse velho de oitenta anos que, no seio de uma sociedade corrompida, representa o triunfo do espiritualismo, com o gênio sempre jovem e sempre puro da fé.


Lamennais.





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