Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862
Versão para cópiaJunho 3 SOBRE O QUADRO DO SR INGRES
1. — A Sra. Dozon, nossa colega da Sociedade, recebeu em casa, em 9 de abril de 1862, a seguinte comunicação espontânea:
“O menino Jesus encontrado por seus pais pregando no Templo, entre os doutores. (São Lucas, Natividade). Tal é o motivo de um quadro inspirado a um dos nossos maiores artistas. Essa obra do homem revela mais que o gênio: aí se vê brilhar aquela luz que Deus dá às almas para as esclarecer e as conduzir às regiões celestes. Sim, a religião iluminou o artista. Esse clarão foi visível? O trabalhador viu o raio partindo do céu e descendo até ele? Teria visto divinizar-se, sob seus pincéis, a cabeça do Menino-Deus? Ter-se-ia ajoelhado diante dessa obra de inspiração divina, e exclamado, como o velho São Simeão: “Senhor, deixareis morrer em paz o vosso servo, segundo a vossa palavra, porque meus olhos viram o Salvador que nos dais agora e que destinais a ser exposto aos olhos de todos os povos.”
“Sim, o artista pode dizer-se servo do Senhor, porquanto acaba de executar uma ordem de sua suprema vontade. Quis Deus que no tempo em que reina o cepticismo, a multidão parasse diante dessa figura do Salvador! Mais de um coração se afastará levando uma lembrança que o conduzirá ao pé da cruz, onde essa divina criança deu a vida pela Humanidade, por vós, multidão indiferente!
“Contemplando o quadro de Ingres, a vista se afasta a duras penas para se voltar em direção a essa figura de Jesus, onde há um misto de divindade, de infância e também algo da flor; essas roupagens, essa túnica de cores leves, jovens, delicadas, lembrando o suave colorido que se balança nas hastes perfumadas. Tudo merece ser admirado na obra-prima de Ingres. Mas aí a alma gosta mais de contemplar os dois tipos adoráveis de Jesus e de sua divina Mãe. Ainda uma vez experimentamos a necessidade de a saudar por suas palavras angélicas: “Eu vos saúdo, Maria, cheia de graça.” Mas se apenas ousamos levantar o olhar artístico para essa nobre figura divinizada, tabernáculo de um Deus, esposa de um homem, virgem pela pureza, mulher predestinada às alegrias do paraíso e às agonias da Terra, Ingres compreendeu tudo isso e não haveremos de passar diante da Mãe de Jesus sem lhe dizer: “Maria, dulcíssima virgem, em nome de vosso filho, orai por nós!” Vós o apreciareis um dia; eu vi as primeiras pinceladas sobre essa tela bendita. Vi surgirem, uma a uma, as figuras, as poses dos doutores; vi o anjo protetor de Ingres, inspirando-o, fazer cair os pergaminhos das mãos de um desses doutores. Meu Deus, aí se encontra toda uma revelação! Essa voz de criança destruirá também, uma a uma, as leis que não são suas.
“Não desejo aqui fazer arte como ex-artista. Sou um Espírito; para mim só a arte religiosa me toca. Assim, vi nesses graciosos ornamentos de cepas de vinha a alegoria da vinha de Deus, onde todos os homens devem saciar-se, dizendo a mim mesmo, com profunda alegria, que Ingres acabava de fazer amadurecer um de seus belos cachos. Sim, mestre! teu Jesus vai falar, também, diante dos doutores que negam a sua lei, diante dos que a combatem. Mas quando eles se encontrarem sós com a lembrança da Criança divina, oh! mais de um rasgará os rolos de pergaminho sobre os quais a mão de Jesus escreverá: Erro.
“Vede, pois, como todos os trabalhadores marcam um encontro! Uns vêm voluntariamente e por caminhos já conhecidos; outros, conduzidos pela mão de Deus, que os vai buscar em seus lugares e lhes mostra onde devem ir. Outros, ainda, sem saber onde estão, chegam atraídos pelo encanto que lhes faz semear flores de vida, para erguer o altar sobre o qual o menino Jesus ainda hoje vem para muitos, embora, sob safirinas roupagens ou sob a túnica do crucificado, seja sempre o mesmo e único Deus.”
David, pintor.
2. — Nem a Sra. Dozon nem seu marido tinham ouvido falar desse quadro. Havendo nos informado pessoalmente com alguns artistas, nenhum deles o conhecia. Começamos, então, a pensar numa mistificação. O melhor meio de dirimir a dúvida era ir diretamente ao artista, para saber se ele havia tratado do assunto. Foi o que fez o Sr. Dozon. Entrando no ateliê, viu o quadro, acabado somente há poucos dias e, em consequência, desconhecido do público. Essa revelação espontânea torna-se ainda mais notável quando se considera que a descrição dada pelo Espírito é de uma exatidão perfeita. Tudo ali está: o ramo da videira, pergaminhos caídos no chão, etc. No momento o quadro se acha exposto numa sala do Boulevard des Italiens, † onde fomos vê-lo e, como toda a gente, admirá-lo, pois que ele representa, indubitavelmente, uma das páginas mais sublimes da pintura moderna. Do ponto de vista da execução, é digno do grande artista que, parece-nos, nada fez de superior, apesar de seus oitenta e três anos. Mas o que dele faz uma obra-prima invulgar é o sentimento que aí domina, a expressão, o pensamento que brota de todas essas figuras, sobre as quais é possível ler a surpresa, a estupefação, a comoção, a dúvida, a necessidade de negar, a irritação por se ver abatido por uma criança. Tudo isto é tão verdadeiro, tão natural, que começamos a pôr palavras em cada boca. Quanto à criança, é de um ideal que deixa muito para trás tudo quanto já foi feito sobre o mesmo assunto. Não é um orador que fala aos seus ouvintes; nem mesmo os olha: nele adivinhamos o órgão de uma voz celeste.
Sem dúvida há o gênio em toda essa concepção, mas a inspiração é incontestável. O próprio Sr. Ingres disse que não tinha composto esse quadro em condições ordinárias; disse tê-lo começado pela arquitetura, o que não é seu costume; a seguir vinham as personagens, por assim dizer, colocar-se por si mesmas sob o seu pincel, sem premeditação de sua parte. Temos motivos para pensar que esse trabalho se liga a coisas cuja chave teremos mais tarde, mas sobre as quais devemos ainda guardar silêncio, como sobre muitas outras.
Tendo o fato acima sido relatado na Sociedade, o Espírito de Lamennais ditou espontaneamente, naquela ocasião, a comunicação que se segue.
3. SOBRE O QUADRO DO SR. INGRES.
(Sociedade Espírita de Paris, 2 de maio de 1862. – Médium: Sr. A. Didier.)
Ultimamente eu vos falava do menino Jesus entre os doutores e vos ressaltava sua iluminação divina em meio às sábias trevas dos sacerdotes judeus. Temos um exemplo a mais de que a espiritualidade e os movimentos da alma constituem a fase mais brilhante da arte. Sem conhecer a Sociedade Espírita, pode-se ser um grande artista espiritualista; em sua nova obra, Ingres não só nos mostra o estudo divino do artista, mas, também, a sua mais pura e ideal inspiração; não essa falsa idealidade que engana a tanta gente e que é uma hipocrisia da arte sem originalidade, mas a idealidade haurida na natureza simples, verdadeira e, por conseguinte, bela em toda a acepção do termo. Nós, Espíritos, aplaudimos as obras espiritualistas, assim como censuramos a glorificação dos sentimentos materiais e de mau gosto. É uma virtude sentir a beleza moral e a beleza física nesse ponto; é a marca certa de sentimentos harmoniosos, no coração e na alma; e, quando o sentimento do belo se desenvolve a esse ponto, é raro que o sentimento moral também não o seja. É um grande exemplo o desse velho de oitenta anos que, no seio de uma sociedade corrompida, representa o triunfo do espiritualismo, com o gênio sempre jovem e sempre puro da fé.
Lamennais.
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