Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863
Versão para cópiaCapítulo LXXX
Setembro - Perguntas e problemas sobre a expiação e a prova
Setembro
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Moulins, 8 de julho de 1863.
Senhor e venerado mestre,
Venho submeter à vossa apreciação uma questão que foi discutida em nosso pequeno grupo e não pudemos resolver por nossas próprias luzes. Os próprios Espíritos que consultamos não responderam muito categoricamente para nos tirar da dúvida.
Redigi uma pequena nota, que tomo a liberdade de vos remeter, na qual reuni os motivos de minha opinião pessoal, que difere da de vários colegas. A opinião destes últimos é que a expiação ocorre efetivamente durante a encarnação, apoiandose no fato de que essa expressão foi empregada em muitas comunicações, e notadamente no Livro dos Espíritos.
Venho, pois, vos pedir a extrema bondade de nos dar a vossa opinião sobre essa questão. Vossa decisão para nós será lei, e de boa vontade cada um sacrificará sua maneira de ver, para colocar-se sob a bandeira que plantastes e sustentais de maneira tão firme e tão sábia.
Recebei, senhor e caro mestre, etc.
T. T.
Senhor e venerado mestre,
Venho submeter à vossa apreciação uma questão que foi discutida em nosso pequeno grupo e não pudemos resolver por nossas próprias luzes. Os próprios Espíritos que consultamos não responderam muito categoricamente para nos tirar da dúvida.
Redigi uma pequena nota, que tomo a liberdade de vos remeter, na qual reuni os motivos de minha opinião pessoal, que difere da de vários colegas. A opinião destes últimos é que a expiação ocorre efetivamente durante a encarnação, apoiandose no fato de que essa expressão foi empregada em muitas comunicações, e notadamente no Livro dos Espíritos.
Venho, pois, vos pedir a extrema bondade de nos dar a vossa opinião sobre essa questão. Vossa decisão para nós será lei, e de boa vontade cada um sacrificará sua maneira de ver, para colocar-se sob a bandeira que plantastes e sustentais de maneira tão firme e tão sábia.
Recebei, senhor e caro mestre, etc.
T. T.
“Várias comunicações dadas por Espíritos diferentes qualificam indistintamente como expiações e provas, males e tribulações que formam o quinhão de cada um de nós durante a encarnação na Terra.
Dessa aplicação à mesma ideia, de duas palavras muito diversas na sua significação, resulta uma certa confusão, sem dúvida pouco importante para os Espíritos desmaterializados, mas que, entre os encarnados, dá lugar a discussões que seria bom fazer cessar por uma definição clara e precisa e explicações fornecidas pelos Espíritos superiores que fixariam, de modo irrevogável, esse ponto de doutrina.
“Para começar, tomando os dois vocábulos no sentido absoluto, parece que a expiação seria o castigo, a pena imposta para o resgate de uma falta, com o perfeito conhecimento, por parte do culpado punido, da causa do castigo, isto é, da falta a expiar. Compreende-se que, neste sentido, a expiação seja sempre imposta por Deus.
“A prova não implica qualquer ideia de reparação. Ela pode ser voluntária ou imposta, mas não é a consequência rigorosa e imediata das faltas cometidas.
“A prova é um meio de constatar o estado de uma coisa, para reconhecer se é de boa qualidade. Assim, submete-se a uma prova uma corda, uma ponte, uma peça de artilharia, não por causa de seu estado anterior, mas para certificar-se de que estão adequadas ao serviço a que se destinam.
“Assim, por extensão, tem-se chamado de provas da vida ao conjunto de meios físicos ou morais que revelam a existência ou ausência das qualidades da alma que estabelecem a sua perfeição ou os progressos por ela feitos na busca dessa perfeição final.
“Parece, pois, lógico admitir que a expiação propriamente dita, e no sentido absoluto do vocábulo, ocorre na vida espiritual, após a desencarnação ou morte corpórea; que ela possa ser mais ou menos longa, mais ou menos penosa, de acordo com a gravidade das faltas, mas que é completa no outro mundo e termina sempre por um ardente desejo de ter uma nova reencarnação, durante a qual as provas escolhidas ou impostas deverão permitir que a alma faça um progresso para a perfeição que as faltas anteriores lhe impediram de realizar.
“Assim, pois, não conviria admitir que há expiação na Terra, mesmo que excepcionalmente, porque seria preciso admitir, também, o conhecimento das faltas punidas. Ora, tal conhecimento só existe na vida de além-túmulo. A expiação sem tal conhecimento seria uma barbárie sem utilidade e não se conformaria nem com a justiça nem com a bondade de Deus.
“Durante a encarnação, não se pode conceber senão provas, porque, sejam quais forem os males e tribulações desta Terra, é impossível considerá-los como podendo constituir uma expiação suficiente para faltas de qualquer gravidade. Pensa-se que um culpado, entregue à justiça dos homens, estaria bem punido se o condenassem a viver como o menos feliz de nós?
Não exageremos, pois, a importância dos males desta Terra para nos atribuirmos o mérito de havê-los suportado. A prova consiste mais na maneira pela qual os males foram suportados do que na sua intensidade que, como a felicidade terrena, é sempre relativa para cada indivíduo.
“Os caracteres distintivos da expiação e da prova são que a primeira é sempre imposta, e sua causa deve ser conhecida por aquele que a sofre, ao passo que a segunda pode ser voluntária, isto é, escolhida pelo Espírito, ou mesmo imposta por Deus, na falta de escolha. Além disso, ela se concebe muito bem sem causa conhecida, pois não é necessariamente a consequência de faltas passadas.
“Numa palavra: a expiação cobre o passado; a prova abre o futuro.
“O número de julho da Revista Espírita contém um artigo intitulado Expiação terrena, que pareceria contrário à opinião emitida acima. Contudo, lendo-o atentamente, ver-se-á que a expiação verdadeira se deu na vida espírita, e que a posição que Max ocupou na sua última encarnação realmente não é senão o gênero de provas que ele escolheu, ou que lhe foram impostas, e das quais saiu vitorioso, mas que, durante toda essa encarnação, ignorando sua posição anterior, ele não poderia em nada aproveitar uma expiação sem objetivo.
“Talvez esta seja mais uma questão de palavras que de princípios. Com efeito, foi dito muitas vezes: “Não vos atenhais às palavras; vede o fundo do pensamento.” Em todo o caso, para nós que nos entendemos por meio de palavras, convém estarmos bem fixados no sentido que a elas ligamos.”
Resposta. A distinção estabelecida pelo autor da nota acima, entre o caráter da expiação e o das provas é perfeitamente justa. Contudo, não poderíamos partilhar de sua opinião no que concerne à aplicação desta teoria à situação do homem na Terra.
A expiação implica necessariamente a ideia de um castigo mais ou menos penoso, resultado de uma falta cometida. A prova implica sempre a de uma inferioridade real ou presumível, porque o que chegou ao ponto culminante a que aspira, não mais necessita de provas.
Em certos casos, a prova se confunde com a expiação, isto é, a expiação pode servir de prova, e reciprocamente. O candidato que se apresenta para receber uma graduação, passa por uma prova. Se falhar, terá que recomeçar um trabalho penoso. Esse novo trabalho é a punição da negligência no primeiro. A segunda prova se torna, assim, uma expiação.
Para o condenado a quem se faz esperar um abrandamento ou uma comutação, se se conduzir bem, a pena é ao mesmo tempo uma expiação por sua falta e uma prova para sua sorte futura. Se, à sua saída da prisão, não estiver melhor, sua prova é nula e um novo castigo conduzirá a uma nova prova.
Agora, se considerarmos o homem na Terra, veremos que ele aí suporta males de toda sorte, e por vezes cruéis. Esses males têm uma causa. Ora, a menos que os atribuamos ao capricho do Criador, somos forçados a admitir que a causa está em nós mesmos, e que as misérias que experimentamos não podem ser resultado de nossas virtudes. Então elas têm sua fonte nas nossas imperfeições.
Se um Espírito encarnar-se na Terra em meio à fortuna, às honras e a todos os prazeres materiais, poder-se-á dizer que sofre a prova do arrastamento. Para aquele que cai na desgraça por sua conduta ou sua imprevidência, é a expiação de suas faltas atuais, e pode-se dizer que é punido por onde pecou. No entanto, o que dizer daquele que, desde seu nascimento, está a braços com necessidades e privações; que arrasta uma existência miserável e sem esperança de melhora; que sucumbe ao peso de enfermidades congênitas, sem ter ostensivamente nada feito para merecer tal sorte? Quer seja uma prova, quer uma expiação, a posição não é menos penosa e não seria mais justa do ponto de vista do nosso correspondente, porque se o homem não se lembra da falta, também não se lembra de haver escolhido a prova. Assim, há que buscar alhures a solução da questão.
Como todo efeito tem uma causa, as misérias humanas são efeitos que devem ter uma causa. Se essa causa não estiver na vida atual, deve estar numa vida anterior. Além disso, admitindo a justiça de Deus, tais efeitos devem ter uma relação mais ou menos íntima com os atos precedentes, dos quais eles são, ao mesmo tempo, castigo para o passado e prova para o futuro. São expiações no sentido de que são consequência de uma falta, e provas em relação ao proveito delas tirado. Diz-nos a razão que Deus não pode ferir um inocente. Logo, se somos feridos e se não somos inocentes, o mal que sentimos é o castigo, e a maneira de suportá-lo é a prova.
Mas, acontece muitas vezes que a falta não se acha nesta vida. Então acusa-se a justiça de Deus, nega-se a sua bondade, duvida-se, até, de sua existência. Aí, precisamente, está a prova mais escabrosa: a dúvida sobre a Divindade. Quem quer que admita um Deus soberanamente justo e bom deve dizer que ele só agirá com sabedoria, mesmo naquilo que não compreendamos, e que se sofremos uma pena, é porque fizemos por merecer. É, pois uma expiação.
Pela grande lei da pluralidade das existências, o Espiritismo levanta completamente o véu sob o qual essa questão deixava obscuridade. Ele nos ensina que se a falta não tiver sido cometida nesta vida, tê-lo-á sido em outra, e que assim a justiça de Deus segue o seu curso, punindo-nos por onde havíamos pecado.
Vem a seguir a grave questão do esquecimento que, segundo o nosso correspondente, tira aos males da vida o caráter de expiação. É um erro. Dai-lhe o nome que quiserdes, mas não fareis que não sejam a consequência de uma falta. Se o ignorais, o Espiritismo vo-lo ensina.
Quanto ao esquecimento das faltas em si, ele não tem as consequências que lhe atribuís. Temos demonstrado alhures que a lembrança precisa dessas faltas teria inconvenientes extremamente graves, porque isso nos perturbaria e nos humilharia aos nossos próprios olhos e aos do próximo; porque traria uma perturbação nas relações sociais e porque, por isso mesmo, entravaria o nosso livre-arbítrio.
Por outro lado, o esquecimento não é tão absoluto quanto o supõem. Ele só se dá na vida exterior de relação, no próprio interesse da Humanidade, mas a vida espiritual não sofre solução de continuidade. Tanto na erraticidade quanto nos momentos de emancipação, o Espírito se lembra perfeitamente, e essa lembrança lhe deixa uma intuição que se traduz na voz da consciência, que o adverte do que deve ou não deve fazer. Se ele não a escuta, então é culpa sua. Além disso, o Espiritismo dá ao homem um meio de remontar ao seu passado, senão aos atos precisos, ao menos aos caracteres gerais desses atos que ficaram mais ou menos desbotados na sua vida atual. Pelas tribulações que suporta, expiações ou provas, ele deve concluir que foi culpado. Pela natureza dessas tribulações, ajudado pelo estudo de suas tendências instintivas, e apoiando-se no princípio de que a mais justa punição é a consequência da falta, ele pode deduzir seu passado moral. Suas tendências más lhe ensinam o que resta de imperfeito a corrigir em si. A vida atual é para ele um novo ponto de partida. Ele aí chega rico ou pobre de boas qualidades, basta-lhe, pois, estudar-se a si mesmo para ver o que lhe falta, e dizer para si mesmo: “Se sou punido, é porque pequei.” E a própria punição lhe dirá o que fez.
Citemos uma comparação.
Suponhamos um homem condenado a tantos anos de trabalhos forçados, e aí sofrendo um castigo especial, mais ou menos rigoroso, conforme à sua falta; suponhamos, ainda, que ao entrar na prisão ele perca a lembrança dos atos que para lá o conduziram. Não poderá ele dizer para si mesmo: “Se estou na prisão, é que fui culpado, pois não se condena gente virtuosa, portanto, tratemos de nos tornarmos bom, para não voltarmos quando daqui sairmos.” Quer ele saber o que fez? Estudando a lei penal, saberá quais os crimes que para ali conduzem, porque não se é posto a ferros por uma estroinice; da duração e da severidade da pena, concluirá o gênero dos que deve ter cometido. Para ter uma ideia mais exata, terá apenas que estudar aqueles para os quais ele se sente instintivamente arrastado. Saberá, então, o que daí em diante deverá evitar para conservar a liberdade, e a isso será ainda excitado pelas exortações dos homens de bem, encarregados de instruí-lo e de guiálo no bom caminho. Se ele não tira proveito disso, sofrerá as consequências. Tal a situação do homem na Terra onde, como o grilheta, não pode ter sido posto por suas perfeições, desde que é infeliz e obrigado a trabalhar. Deus lhe multiplica os ensinamentos proporcionais ao seu adiantamento. Adverte-o incessantemente e o fere, até, para despertá-lo de seu torpor. Aquele que persiste no endurecimento não pode desculpar-se com a ignorância.
Em resumo, se certas situações da vida humana têm, mais particularmente, o caráter das provas, outras incontestavelmente têm o do castigo, e todo castigo pode servir de prova.
É um erro pensar que o caráter essencial da expiação seja o de ser imposta. Vemos diariamente na vida expiações voluntárias, sem falar dos monges que se maceram e se fustigam com a disciplina e o cilício. Assim, nada há de irracional em admitir que um Espírito na erraticidade escolha ou solicite uma existência terrena que o leve a reparar seus erros passados. Se tal existência lhe tivesse sido imposta, não teria sido menos justa, malgrado a ausência momentânea da lembrança, pelos motivos acima desenvolvidos. As misérias daqui são, pois, expiação, por seu lado efetivo e material, e provas, por suas consequências morais. Seja qual for o nome que se lhes dê, o resultado deve ser o mesmo: o melhoramento. Em presença de um objetivo tão importante, seria pueril fazer uma questão de princípio de uma questão de palavra. Isto provaria que se liga mais importância às palavras do que à coisa.
Temos prazer de responder às perguntas sérias e de elucidá-las, quando possível. A discussão é tanto mais útil com pessoas de boa-fé, que estudaram e querem aprofundar as coisas, pois é trabalhar para o progresso da ciência, quanto é ociosa com os que julgam sem conhecimento e querem saber sem se darem ao trabalho de aprender.
Dessa aplicação à mesma ideia, de duas palavras muito diversas na sua significação, resulta uma certa confusão, sem dúvida pouco importante para os Espíritos desmaterializados, mas que, entre os encarnados, dá lugar a discussões que seria bom fazer cessar por uma definição clara e precisa e explicações fornecidas pelos Espíritos superiores que fixariam, de modo irrevogável, esse ponto de doutrina.
“Para começar, tomando os dois vocábulos no sentido absoluto, parece que a expiação seria o castigo, a pena imposta para o resgate de uma falta, com o perfeito conhecimento, por parte do culpado punido, da causa do castigo, isto é, da falta a expiar. Compreende-se que, neste sentido, a expiação seja sempre imposta por Deus.
“A prova não implica qualquer ideia de reparação. Ela pode ser voluntária ou imposta, mas não é a consequência rigorosa e imediata das faltas cometidas.
“A prova é um meio de constatar o estado de uma coisa, para reconhecer se é de boa qualidade. Assim, submete-se a uma prova uma corda, uma ponte, uma peça de artilharia, não por causa de seu estado anterior, mas para certificar-se de que estão adequadas ao serviço a que se destinam.
“Assim, por extensão, tem-se chamado de provas da vida ao conjunto de meios físicos ou morais que revelam a existência ou ausência das qualidades da alma que estabelecem a sua perfeição ou os progressos por ela feitos na busca dessa perfeição final.
“Parece, pois, lógico admitir que a expiação propriamente dita, e no sentido absoluto do vocábulo, ocorre na vida espiritual, após a desencarnação ou morte corpórea; que ela possa ser mais ou menos longa, mais ou menos penosa, de acordo com a gravidade das faltas, mas que é completa no outro mundo e termina sempre por um ardente desejo de ter uma nova reencarnação, durante a qual as provas escolhidas ou impostas deverão permitir que a alma faça um progresso para a perfeição que as faltas anteriores lhe impediram de realizar.
“Assim, pois, não conviria admitir que há expiação na Terra, mesmo que excepcionalmente, porque seria preciso admitir, também, o conhecimento das faltas punidas. Ora, tal conhecimento só existe na vida de além-túmulo. A expiação sem tal conhecimento seria uma barbárie sem utilidade e não se conformaria nem com a justiça nem com a bondade de Deus.
“Durante a encarnação, não se pode conceber senão provas, porque, sejam quais forem os males e tribulações desta Terra, é impossível considerá-los como podendo constituir uma expiação suficiente para faltas de qualquer gravidade. Pensa-se que um culpado, entregue à justiça dos homens, estaria bem punido se o condenassem a viver como o menos feliz de nós?
Não exageremos, pois, a importância dos males desta Terra para nos atribuirmos o mérito de havê-los suportado. A prova consiste mais na maneira pela qual os males foram suportados do que na sua intensidade que, como a felicidade terrena, é sempre relativa para cada indivíduo.
“Os caracteres distintivos da expiação e da prova são que a primeira é sempre imposta, e sua causa deve ser conhecida por aquele que a sofre, ao passo que a segunda pode ser voluntária, isto é, escolhida pelo Espírito, ou mesmo imposta por Deus, na falta de escolha. Além disso, ela se concebe muito bem sem causa conhecida, pois não é necessariamente a consequência de faltas passadas.
“Numa palavra: a expiação cobre o passado; a prova abre o futuro.
“O número de julho da Revista Espírita contém um artigo intitulado Expiação terrena, que pareceria contrário à opinião emitida acima. Contudo, lendo-o atentamente, ver-se-á que a expiação verdadeira se deu na vida espírita, e que a posição que Max ocupou na sua última encarnação realmente não é senão o gênero de provas que ele escolheu, ou que lhe foram impostas, e das quais saiu vitorioso, mas que, durante toda essa encarnação, ignorando sua posição anterior, ele não poderia em nada aproveitar uma expiação sem objetivo.
“Talvez esta seja mais uma questão de palavras que de princípios. Com efeito, foi dito muitas vezes: “Não vos atenhais às palavras; vede o fundo do pensamento.” Em todo o caso, para nós que nos entendemos por meio de palavras, convém estarmos bem fixados no sentido que a elas ligamos.”
Resposta. A distinção estabelecida pelo autor da nota acima, entre o caráter da expiação e o das provas é perfeitamente justa. Contudo, não poderíamos partilhar de sua opinião no que concerne à aplicação desta teoria à situação do homem na Terra.
A expiação implica necessariamente a ideia de um castigo mais ou menos penoso, resultado de uma falta cometida. A prova implica sempre a de uma inferioridade real ou presumível, porque o que chegou ao ponto culminante a que aspira, não mais necessita de provas.
Em certos casos, a prova se confunde com a expiação, isto é, a expiação pode servir de prova, e reciprocamente. O candidato que se apresenta para receber uma graduação, passa por uma prova. Se falhar, terá que recomeçar um trabalho penoso. Esse novo trabalho é a punição da negligência no primeiro. A segunda prova se torna, assim, uma expiação.
Para o condenado a quem se faz esperar um abrandamento ou uma comutação, se se conduzir bem, a pena é ao mesmo tempo uma expiação por sua falta e uma prova para sua sorte futura. Se, à sua saída da prisão, não estiver melhor, sua prova é nula e um novo castigo conduzirá a uma nova prova.
Agora, se considerarmos o homem na Terra, veremos que ele aí suporta males de toda sorte, e por vezes cruéis. Esses males têm uma causa. Ora, a menos que os atribuamos ao capricho do Criador, somos forçados a admitir que a causa está em nós mesmos, e que as misérias que experimentamos não podem ser resultado de nossas virtudes. Então elas têm sua fonte nas nossas imperfeições.
Se um Espírito encarnar-se na Terra em meio à fortuna, às honras e a todos os prazeres materiais, poder-se-á dizer que sofre a prova do arrastamento. Para aquele que cai na desgraça por sua conduta ou sua imprevidência, é a expiação de suas faltas atuais, e pode-se dizer que é punido por onde pecou. No entanto, o que dizer daquele que, desde seu nascimento, está a braços com necessidades e privações; que arrasta uma existência miserável e sem esperança de melhora; que sucumbe ao peso de enfermidades congênitas, sem ter ostensivamente nada feito para merecer tal sorte? Quer seja uma prova, quer uma expiação, a posição não é menos penosa e não seria mais justa do ponto de vista do nosso correspondente, porque se o homem não se lembra da falta, também não se lembra de haver escolhido a prova. Assim, há que buscar alhures a solução da questão.
Como todo efeito tem uma causa, as misérias humanas são efeitos que devem ter uma causa. Se essa causa não estiver na vida atual, deve estar numa vida anterior. Além disso, admitindo a justiça de Deus, tais efeitos devem ter uma relação mais ou menos íntima com os atos precedentes, dos quais eles são, ao mesmo tempo, castigo para o passado e prova para o futuro. São expiações no sentido de que são consequência de uma falta, e provas em relação ao proveito delas tirado. Diz-nos a razão que Deus não pode ferir um inocente. Logo, se somos feridos e se não somos inocentes, o mal que sentimos é o castigo, e a maneira de suportá-lo é a prova.
Mas, acontece muitas vezes que a falta não se acha nesta vida. Então acusa-se a justiça de Deus, nega-se a sua bondade, duvida-se, até, de sua existência. Aí, precisamente, está a prova mais escabrosa: a dúvida sobre a Divindade. Quem quer que admita um Deus soberanamente justo e bom deve dizer que ele só agirá com sabedoria, mesmo naquilo que não compreendamos, e que se sofremos uma pena, é porque fizemos por merecer. É, pois uma expiação.
Pela grande lei da pluralidade das existências, o Espiritismo levanta completamente o véu sob o qual essa questão deixava obscuridade. Ele nos ensina que se a falta não tiver sido cometida nesta vida, tê-lo-á sido em outra, e que assim a justiça de Deus segue o seu curso, punindo-nos por onde havíamos pecado.
Vem a seguir a grave questão do esquecimento que, segundo o nosso correspondente, tira aos males da vida o caráter de expiação. É um erro. Dai-lhe o nome que quiserdes, mas não fareis que não sejam a consequência de uma falta. Se o ignorais, o Espiritismo vo-lo ensina.
Quanto ao esquecimento das faltas em si, ele não tem as consequências que lhe atribuís. Temos demonstrado alhures que a lembrança precisa dessas faltas teria inconvenientes extremamente graves, porque isso nos perturbaria e nos humilharia aos nossos próprios olhos e aos do próximo; porque traria uma perturbação nas relações sociais e porque, por isso mesmo, entravaria o nosso livre-arbítrio.
Por outro lado, o esquecimento não é tão absoluto quanto o supõem. Ele só se dá na vida exterior de relação, no próprio interesse da Humanidade, mas a vida espiritual não sofre solução de continuidade. Tanto na erraticidade quanto nos momentos de emancipação, o Espírito se lembra perfeitamente, e essa lembrança lhe deixa uma intuição que se traduz na voz da consciência, que o adverte do que deve ou não deve fazer. Se ele não a escuta, então é culpa sua. Além disso, o Espiritismo dá ao homem um meio de remontar ao seu passado, senão aos atos precisos, ao menos aos caracteres gerais desses atos que ficaram mais ou menos desbotados na sua vida atual. Pelas tribulações que suporta, expiações ou provas, ele deve concluir que foi culpado. Pela natureza dessas tribulações, ajudado pelo estudo de suas tendências instintivas, e apoiando-se no princípio de que a mais justa punição é a consequência da falta, ele pode deduzir seu passado moral. Suas tendências más lhe ensinam o que resta de imperfeito a corrigir em si. A vida atual é para ele um novo ponto de partida. Ele aí chega rico ou pobre de boas qualidades, basta-lhe, pois, estudar-se a si mesmo para ver o que lhe falta, e dizer para si mesmo: “Se sou punido, é porque pequei.” E a própria punição lhe dirá o que fez.
Citemos uma comparação.
Suponhamos um homem condenado a tantos anos de trabalhos forçados, e aí sofrendo um castigo especial, mais ou menos rigoroso, conforme à sua falta; suponhamos, ainda, que ao entrar na prisão ele perca a lembrança dos atos que para lá o conduziram. Não poderá ele dizer para si mesmo: “Se estou na prisão, é que fui culpado, pois não se condena gente virtuosa, portanto, tratemos de nos tornarmos bom, para não voltarmos quando daqui sairmos.” Quer ele saber o que fez? Estudando a lei penal, saberá quais os crimes que para ali conduzem, porque não se é posto a ferros por uma estroinice; da duração e da severidade da pena, concluirá o gênero dos que deve ter cometido. Para ter uma ideia mais exata, terá apenas que estudar aqueles para os quais ele se sente instintivamente arrastado. Saberá, então, o que daí em diante deverá evitar para conservar a liberdade, e a isso será ainda excitado pelas exortações dos homens de bem, encarregados de instruí-lo e de guiálo no bom caminho. Se ele não tira proveito disso, sofrerá as consequências. Tal a situação do homem na Terra onde, como o grilheta, não pode ter sido posto por suas perfeições, desde que é infeliz e obrigado a trabalhar. Deus lhe multiplica os ensinamentos proporcionais ao seu adiantamento. Adverte-o incessantemente e o fere, até, para despertá-lo de seu torpor. Aquele que persiste no endurecimento não pode desculpar-se com a ignorância.
Em resumo, se certas situações da vida humana têm, mais particularmente, o caráter das provas, outras incontestavelmente têm o do castigo, e todo castigo pode servir de prova.
É um erro pensar que o caráter essencial da expiação seja o de ser imposta. Vemos diariamente na vida expiações voluntárias, sem falar dos monges que se maceram e se fustigam com a disciplina e o cilício. Assim, nada há de irracional em admitir que um Espírito na erraticidade escolha ou solicite uma existência terrena que o leve a reparar seus erros passados. Se tal existência lhe tivesse sido imposta, não teria sido menos justa, malgrado a ausência momentânea da lembrança, pelos motivos acima desenvolvidos. As misérias daqui são, pois, expiação, por seu lado efetivo e material, e provas, por suas consequências morais. Seja qual for o nome que se lhes dê, o resultado deve ser o mesmo: o melhoramento. Em presença de um objetivo tão importante, seria pueril fazer uma questão de princípio de uma questão de palavra. Isto provaria que se liga mais importância às palavras do que à coisa.
Temos prazer de responder às perguntas sérias e de elucidá-las, quando possível. A discussão é tanto mais útil com pessoas de boa-fé, que estudaram e querem aprofundar as coisas, pois é trabalhar para o progresso da ciência, quanto é ociosa com os que julgam sem conhecimento e querem saber sem se darem ao trabalho de aprender.