Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

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Capítulo III

Janeiro - Nova cura de uma jovem obsedada de Marmande

Janeiro
Nova cura de uma jovem obsedada de Marmande

Transmite-nos o Sr. Dombre o relato seguinte de uma nova cura das mais notáveis, obtida pelo círculo espírita de Marmande. A despeito de sua extensão, julgamos dever publicá-lo de uma vez, dado o alto interesse que ele apresenta e para que se possa melhor captar o encadeamento dos fatos. Pensamos que os leitores nos serão gratos. Apenas suprimimos alguns detalhes que não nos pareceram de importância capital. Os ensinamentos dela decorrentes são numerosos e graves, e lançam uma luz nova sobre essa questão de atualidade e esses fenômenos que tendem a multiplicar-se. Dada a extensão deste artigo, faremos as considerações no próximo número, a fim de lhes dar os desenvolvimentos necessários.

Senhor Allan Kardec,

É com uma força nova e uma confiança em Deus corroborada pelos fatos que me entusiasmam sem me surpreender, que venho fazer-vos o relato de uma cura de obsessão, notável sob vários aspectos. Oh! Muito cego é quem nisto não vê o dedo de Deus! Todos os princípios da sublime doutrina do Espiritismo aí se acham confirmados: a individualidade da alma, a intervenção dos Espíritos no mundo corpóreo, a expiação, o castigo e a reencarnação são demonstrados de maneira chocante nos fatos com os quais vou entreter-vos. Lamento, como já vos disse, ser obrigado a vos falar de mim, do papel que me coube nesta circunstância, como instrumento de que Deus se dignou servir-se para ferir os olhos. Deveria eu manter silêncio acerca dos fatos relacionados comigo? Penso que não. Estais encarregado de controlar, estudar, analisar os fatos e espalhar a luz. Os menores detalhes devem, pois, ser levados ao vosso conhecimento. Deus, que lê no fundo dos corações, sabe que uma vã satisfação do amor-próprio não foi o meu móvel; aliás, não ignoro que aquele que por privilégio é chamado a fazer qualquer bem, em breve é reduzido à impotência se desconhecer um instante a intervenção divina, e será mesmo feliz se não for castigado!

Chego ao relato dos fatos.

Desde os primeiros dias de setembro de 1864, não se cogitava, em certo bairro da cidade, senão das crises convulsivas experimentadas por uma moça, Valentine Laurent, de treze anos. Essas crises, que se repetiam várias vezes por dia, eram de tal violência que cinco homens, que a sustentavam pela cabeça, pelos braços e pelas pernas, tinham dificuldade de mantê-la na cama. Ela encontrava força suficiente para agitá-los e às vezes até para desprender-se de suas mãos. Então suas mãos se agarravam a tudo. Camisas, vestidos, cobertas da cama eram rasgadas num instante; os dentes também exerciam um papel muito ativo em seus furores, apavorando com razão as pessoas que a cercavam. Se não a tivessem segurado, ela teria partido a cabeça na parede, e malgrado os esforços e as precauções, não ficou isenta de cortes e de contusões.

Não lhe faltaram os recursos da medicina. Quatro médicos a viram sucessivamente; poções de éter, pílulas, medicamentos de toda a natureza, ela tomava tudo sem repugnância; as sanguessugas atrás das orelhas, os vesicatórios nas coxas também não foram poupados, mas sem sucesso. Durante as crises, o pulso era perfeitamente regular; após as crises, nem a menor lembrança dos sofrimentos, das convulsões, mas muito espanto ao ver a casa cheia de gente e seu leito cercado de homens esbaforidos, alguns dos quais lamentavam uma camisa ou um colete rasgado.

O cura de X..., paróquia situada a dois ou três quilômetros de Marmande, gozando na região de uma celebridade nascente, entre certa gente, como curador de toda espécie de males, foi consultado pelo pai da jovem. O cura, sem conhecer a natureza do mal, lhe deu inadvertidamente um pouco de pó branco para a doente tomar, e em seguida ofereceu-se para rezar uma missa. Mas, ah! Nem o pó, nem a missa preservaram a jovem Valentine de quatorze crises no dia seguinte, o que jamais lhe havia ocorrido.

Tanto insucesso nos cuidados de toda sorte necessariamente deveriam ter feito nascer no espírito do vulgo ideias supersticiosas. Com efeito, as comadres falavam alto de malefícios e sortilégios lançados sobre a moça.

Durante esse tempo nós consultamos no silêncio da intimidade os nossos guias espirituais sobre a natureza dessa moléstia, e eis o que nos responderam:

“É uma obsessão das mais graves, cujo caráter mudará muitas vezes de fisionomia. Agi friamente, com calma; observai, estudai e chamai Germaine.”

Na primeira evocação, esse Espírito foi pródigo nas injúrias e mostrou uma grande relutância em responder às nossas interpelações. Nenhum de nós tinha entrado na casa da doente e, antes de intervir queríamos deixar a família esgotar todos os meios que a sua solicitude podia inspirar. Só quando a impotência da ciência e da Igreja foi constatada é que induzimos o pai desesperado a vir assistir à nossa reunião para saber a verdadeira causa do mal de sua filha, e o remédio moral a administrar. Essa primeira sessão foi levada a efeito no dia 16 de setembro de 1864. Antes da evocação de Germaine, nossos guias nos deram a seguinte instrução:

“Tende muito cuidado, muita senso de observação e muito zelo. Tratareis com um Espírito mistificador, que alia a astúcia e a habilidade hipócrita a um caráter muito mau. Não cesseis de estudar, de trabalhar pela moralização desse Espírito e de orar com esse propósito. Recomendai aos pais que, em presença da menina, evitem qualquer manifestação de medo por seu estado. Ele devem, ao contrário, fazê-la entregar-se às suas ocupações ordinárias, e sobretudo não ser bruscos com ela. Que lhe digam, sobretudo, que não há feiticeiros: isto é muito importante. O cérebro jovem e flexível recebe as impressões com muita facilidade e seu moral poderia sofrer com isso; que não a deixem entretida com pessoas susceptíveis de lhe contar histórias absurdas, que dão às crianças ideias falsas e por vezes perniciosas. Que os próprios pais tenham a certeza de que a prece sincera é o único remédio que deve libertar a menina.

Nós vos dissemos, espíritas, que o Espírito de Germaine tem habilidade. Ele arranjará sempre crenças ridículas, rumores que circulam em volta da menina; procurará dar-vos o troco. Tirai partido do caso: a obsessão apresentar-se-á em fases novas. Ficai atentos; pensai que deveis trabalhar com perseverança e seguir com inteligência os menores detalhes que vos porão no rastro das manobras do Espírito. Não vos fieis na calma. Se as crises são os efeitos mais chocantes nas obsessões, há consequências muito mais perigosas. Desconfiai da idiotia e da infantilidade de um obsedado que, como neste caso, não sofre fisicamente. As obsessões são tanto mais perigosas quanto mais dissimuladas; muitas vezes são puramente morais. Este não raciocina, aquele perde a lembrança do que disse e do que fez. Entretanto não se deve julgar muito precipitadamente e tudo atribuir à obsessão. Repito: estudai, discerni, trabalhai seriamente; não espereis tudo de nós; nós vos ajudaremos, pois trabalhamos de acordo, mas não repouseis, crendo que tudo vos será revelado.”


1. Evocação de Germaine ─ Eis-me aqui.

2. ─ Tendes algo a nos dizer, em continuação à nossa última conversa? ─ Não, nada, senhores.

3. ─ Sabeis que nos chocastes muito? ─ Também vós me falais muito mal.

4. ─ Nós vos demos conselhos. Refletistes neles? ─ Sim, muito, eu vo-lo juro, minhas reflexões foram prudentes. Eu estava louca, convenho. Era delírio, mas eis-me calma.

5. ─ Então! Quereis dizer-nos por que torturais essa menina? ─ É inútil voltar ao esse assunto. Seria muito longo para vos contar. Imagino que isto aqui não seja um tribunal. Não me peçam que me sente no banco dos réus e responda ao interrogatório.

6. ─ Não, absolutamente; sois completamente livre; é o interesse por vós e pela menina que nos leva a perguntar por que motivo sério ou por que capricho fazeis esses ataques. ─ Dizeis capricho? Ah! Deveríeis desejar que fosse apenas um capricho, porque, como sabeis, o capricho é mutável e acaba.

7. ─ Estais realmente calma? ─ Bem o vedes.

8. ─ Aparentemente sim, mas não disfarçais os vossos sentimentos? ─ Não venho lançar-vos ciladas; não preciso disso.

9. ─ Quereis afirmá-lo ante os Espíritos que nos rodeiam? ─ Não ponhamos outras pessoas entre nós. Se temos o que dizer e tratar, que seja de vós para mim. Não gosto da intervenção de terceiros.

10. ─ Pois bem! Nós acreditamos que agis de boa-fé, e... ─ É por isto que vos deveríeis contentar com esta garantia. Aliás, eu vos obrigarei a me acreditar, se fizerdes resistência. Não me faltarão provas para vos convencer de minha sinceridade.

GERMAINE

Ao ouvir o nome de Germaine, o pai da obsedada exclamou estupefato: Oh! É engraçado! E ao se retirar repetia várias vezes: É engraçado!

(Isto será explicado adiante).

No dia seguinte, 17, fui pela primeira vez àquela família, com o desejo de ser testemunha de um ataque do Espírito. Fui servido sob medida. Valentine estava em crise; entrei com gente do bairro, que se precipitava para dentro da casa.

Vi estendida sobre um leito uma jovem magnífica, robusta para a sua idade, e sustentada por oito ou dez braços vigorosos, como descrevi acima. Só a cabeça estava livre, agitando-se e chicoteando no ar, em todos os sentidos, com a cabeleira desarranjada. A boca entreaberta deixava ver duas fileiras de dentes brancos e sobretudo ameaçadores. O olhar estava completamente perdido, e as pupilas, das quais só se viam os bordos, estavam alojadas no ângulo do lado do nariz. Acrescente-se a isto uma espécie de grito selvagem, e imaginai o quadro.

Observei um instante a força das sacudidelas e, inclinando-me sobre o rosto da menina, pus minha mão direita sobre sua fronte e a esquerda sobre o peito. Instantaneamente os movimentos e os esforços convulsivos cessaram, e a cabeça pousou, calma, no travesseiro. Dirigi os dedos da mão direita à boca, que se entreabriu e logo um sorriso aflorou em seus lábios. Suas grandes pupilas negras retomaram seu lugar, e àquela figura satânica sucedeu o mais gracioso rosto. A menina manifestou seu espanto por ver tanta gente em seu redor, dizendo que não estava doente. Eram sempre essas as suas primeiras palavras após as crises. Elevei minha alma a Deus, e senti nas pálpebras duas lágrimas de entusiasmo e reconhecimento.

Isto acabava de se passar na manhã de 17. Voltei pelas cinco da tarde, quando habitualmente se multiplicam as crises, mas elas tinham acontecido antes da hora habitual, e haviam terminado. Às sete horas fui jantar em minha casa, mas, apenas chegado, vieram avisar-me que a menina estava numa crise terrível. Fui para lá imediatamente. Depois de tomar com uma mão, perto dos punhos, os dois braços da menina, disse aos homens que a seguravam: Soltai-a. Depois, com minha outra mão sobre o seu peito, vimos que ela se acalmou de repente. A seguir, levando a mão ao seu rosto, provoquei um sorriso e seus olhos retomaram o estado normal. Tinha-se produzido o mesmo efeito da manhã. Fiquei junto à mocinha uma parte da noite. Ela não teve crises, mas dormia agitada. Sua fisionomia tinha algo de convulsivo; viase-lhe o branco dos olhos e ela parecia sofrer moralmente. Gesticulava, falava distintamente e exclamava com um tom enérgico e comovida: Vai-te! Vai-te!... Oh! Que vilã!... E a criança... e a criança... nos rochedos... nos rochedos.

A essa agitação sucedia uma espécie de êxtase; ela chorava e retomava com tom plangente: Ah! Sofres tormentos do inferno!... E eu, queres fazer-me sofrer sempre! ... sempre!... sempre! E estendendo os braços no ar e buscando erguer-se: Bem! Me leva, me leva! A cada instante o pai soltava sua exclamação: Ah! É engraçado! E a mãe acrescentava: Há um mistério nisto. A partir de uma hora da madrugada, a menina dormiu em paz até o amanhecer. Essas agitações, essas censuras, esses êxtases, esse choro se renovaram diariamente após os ataques violentos do Espírito, e duraram muito mais nas noites de 18, 19 e 20 de setembro. Diariamente eu ia para junto da doente e me instalei, por assim dizer, em sua casa. Enquanto eu estava presente, nada se manifestava; mas logo que eu partia, produzia-se nova crise. Eu voltava e a acalmava logo, como se viu. Isto durou vários dias. Certamente era um fenômeno digno de atenção que as crises passassem de súbito pela só imposição das mãos. Havia rumores em toda a cidade, e ali havia matéria para estudo sério; contudo, lamentei não ter visto nenhum dos quatro médicos que haviam tratado a menina virem observá-la.

Durante todo esse tempo, notei na menina, ora uma alegria um pouco exagerada, ora uma espécie de patetice. O pai e a mãe não achavam essas maneiras naturais, o que justificava as previsões de nossos guias.

A 21 de setembro, o pai e a menina foram comigo à sessão. No começo, os guias nos disseram:

Chamai Germaine; pedi-lhe que fique junto de vós, e dizei-lhe isto: “Germaine, sois nossa irmã; esta moça é também nossa irmã e vossa irmã. Se outrora alguma ação funesta vos ligou e fez pesar sobre vós duas a justiça divina, podeis dobrar o juiz supremo. Fazei um apelo à sua misericórdia infinita; pedi-lhe vosso perdão, como nós o pedimos por vós; tocai o Senhor por vossa prece fervorosa e vosso arrependimento. É em vão que buscais calma aos vossos remorsos e um refúgio na vingança; é em vão que procurareis vossa justificação, acabrunhando-a ao peso de vossa acusação. Voltai, pois, à nossa voz. Perdoai e sereis perdoada; não tenteis ludibriar-nos; não creiais que apenas a aparência de franqueza possa seduzir-nos. Sejam quais forem os meios que empregardes, nós os identificaremos e vos oporemos nossa força e nossa vontade. Que vosso coração, enceguecido pelo sofrimento e pelo ódio, se abra à piedade e ao perdão. Não cessaremos de orar ao Eterno e aos bons Espíritos, seus mensageiros fiéis, que derramem sobre vós a consolação e o benefício. O que queremos, Germaine, é vos livrar de vossos sofrimentos. Sereis sempre acolhida por nós como uma irmã; sereis socorrida. Não nos olheis como inimigos, pois queremos a vossa felicidade; não sejais surda às nossas palavras; escutai nossos conselhos e em pouco conhecereis a paz da consciência. O remorso terá fugido para longe, e o arrependimento terá tomado seu lugar. Os bons Espíritos vos acolherão como uma ovelha perdida que terão encontrado. Os maus imitarão vosso exemplo. Nesta família onde provocais a maldição, só falarão bem de vós e haverá reconhecimento. Esta menina também orará por vós, e se o ódio vos desune, o amor um dia vos reunirá. “Sempre se é infeliz quando se está sedento de vingança; não há repouso para aquele que odeia. Aquele que perdoa está perto de amar.

A felicidade e a tranquilidade substituem o sofrimento e a inquietação. Vinde, Germaine, vinde unirvos a nós por vossas preces. Queremos que, a exemplo de Jules[1] e de outros Espíritos que como vós viviam no mal, fiqueis perto de nós sob a feliz proteção de nossos guias. Estais só; sede a filha adotiva desta família que ora ao Eterno pelos que sofrem, e ensina a todos a amá-lo para serem felizes. Se vos obstinardes em permanecer cruel para esta menina, prolongareis e agravareis os vossos sofrimentos, e ouvireis a maldição da menina e dos que a cercam.

“Merecei, pois, dos vossos irmãos, a amizade que vos oferecem de bom coração; cessai essas torturas, de onde vos retirais meio morta. Crede em nossa palavra; crede, sobretudo, nos conselhos dos bons Espíritos que nos guiam, e, particularmente, nos da Pequena Cárita. Não ficareis surda a esta prece. Dai-nos por prova que acolheis a nossa oferta, a paz e o sono sem perturbação à menina durante alguns dias. Vamos orar por vós e não cessaremos de pedir o fim de vossos males.”

Chamamos Germaine e lemos o que acabava de ser ditado.

11. ─ Ouvistes bem e compreendestes os votos que acabamos de exprimir? ─ Sim. Estou mesmo admirada de todas essas promessas. Não mereço tanto. Mas sou um Espírito desconfiado e não ouso nelas crer. Veremos se vossas preces me darão essa calma de que estou privada há tanto tempo. É verdade, estou só e não conheço senão aquela que procura estraçalhar-me.[2] Veremos.

12. ─ Não vedes bons Espíritos junto de vós? ─ Mas não espero nada senão de vós.

13. ─ Então! Em troca do bem que vos queremos fazer, não poderíeis cessar de fazer o mal, de atormentar? ─ E eu sou a causa única desse mal? Ela contribui tanto quanto eu. Dizeis atormentar? Nós lutamos, engalfinhamo-nos; a culpabilidade é compartilhada. Ela foi minha cúmplice. Não vejo por que faríeis pesar apenas sobre mim a responsabilidade por esses atos violentos dos quais também eu sou vítima.

14. ─ Entretanto a menina não vos vai procurar, e se a atormentais, é porque quereis. Tendes o vosso livre-arbítrio. ─ Quem vos disse isso? Estais errados. Uma fatalidade nos liga.

15. ─ Então, contai-nos tudo. ─ Não posso. Aqui não se goza de toda a liberdade... Sou franca.

16. ─ Vamos, Germaine! Vamos orar por vós. Até outra vez! Terminando, os guias nos disseram: “Durante estes dias, reuni-vos no maior número possível. Ocupai-vos mais particularmente dela. Vossa franqueza e vosso zelo a seu respeito a tocarão, e os resultados que buscamos, assim o esperamos, serão rápidos, graças a essa medida.

O dia 22 passou sem crise. À noite reunimo-nos, como de costume.

Evocação de Germaine.

17. ─ Então, Germaine, acreditais em nossa ligação convosco? ─ Tenho direito de duvidar, pois dificilmente o pária acredita no beijo fraterno, que lhe dão de passagem. Estou habituada a ver o desdém e o desprezo me perseguindo.

18. ─ Deus quer que nos amemos uns aos outros. ─ Eu não conheço isto. Aqui, aquele a quem o remorso persegue ou abraça é um inimigo, uma serpente que a gente evita, atirando pedras. Credes que isto não seja revoltante para o maldito? Ele se torna, por instinto, o inimigo de todos; a paixão e o ódio o cegam; infeliz do que cai nas garras desse abutre.

19. ─ Nós, Germaine, vos queremos amar e vos estendemos a mão. ─ Por que não me falaram assim mais cedo? Há, entretanto, corações generosos no mundo em que vivo. Então eu lhes causava medo? Por que jamais me disseram: És nossa irmã e podes partilhar a nossa sorte? Ainda tenho o veneno na alma, sobretudo quando penso no passado. O crime merece uma pena, mas esta punição foi muito grande. Parecia que tudo caía em cima de mim para me esmagar. Nesses momentos desconhece-se Deus. A gente blasfema, negando-o, e se revolta contra ele e contra os seus, quando se está abandonado.

OBSERVAÇÃO: Este último raciocínio do Espírito é resultado da superexcitação em que se acha, mas vem levantar uma questão importante. “Por que, no mundo onde estou, não me falaram como vós?” Porque a ignorância do futuro momentaneamente faz parte do castigo de certos culpados; somente quando vencido o seu endurecimento pelo cansaço é que lhes fazem entrever um raio de esperança como alívio às penas. É preciso que voluntariamente eles voltem os olhos para Deus. Mas os bons Espíritos não os abandonam. Eles se esforçam por lhes inspirar bons pensamentos; espiam os menores sinais de progresso, e, desde que veem neles surgir o germe do arrependimento, provocam instruções que, esclarecendo-os, podem conduzi-los ao bem. Essas instruções lhes são dadas pelos Espíritos no devido tempo, e também podem ser dadas pelos encarnados, a fim de mostrar a solidariedade que existe entre os mundos visível e invisível. No caso de que se trata, era útil para a reabilitação de Germaine que o perdão lhe viesse da parte dos que deviam queixar-se dela, o que era, ao mesmo tempo, um mérito para estes últimos. Tal a razão pela qual a intervenção dos homens muitas vezes é requerida para a melhora e o alívio dos Espíritos sofredores, sobretudo nos casos de obsessão. Certamente a dos bons Espíritos lhes poderia bastar, mas a caridade dos homens para com seus irmãos da erraticidade é para eles próprios um meio de avanço que Deus lhes reservou.

20. ─ O Espírito de Jules, que vedes perto de nós, era também um criminoso, um sofredor e infeliz?... ─ Minha posição foi pior. Citai tudo quanto pode lacerar a alma; dizei quanto o veneno queima as entranhas: eu experimentei tudo, e o mais cruel para mim era estar só, abandonada, maldita. Eu não inspirei piedade a ninguém. Compreendeis a raiva que transborda de meu coração? Sofri muito! Eu não podia morrer; o suicídio não me era possível. E sempre à minha frente o mais sombrio futuro! Jamais vi surgir um clarão. Nenhuma voz me disse: Espera! Então gritei: Raiva, vingança! A mim as vítimas! Pelo menos terei companheiras de sofrimento. Não é a primeira vez que a menina sente os meus abraços[3].

OBSERVAÇÃO: Se alguém nos perguntasse por que Deus permite que maus Espíritos saciem sua raiva nos inocentes, diríamos que não há sofrimento imerecido, e que aquele que hoje é inocente e sofre, sem dúvida tem ainda alguma dívida a pagar. Esses maus Espíritos servem, neste caso, de instrumento de expiação. Sua malevolência é, além disso, uma provação para a paciência, a resignação e a caridade.

21. ─ Agradecei a Deus por vos ter feito sofrer tanto. Esses sofrimentos são a expiação que vos purificou. ─ Agradecer a Deus! Pedis muito! Eu sofri demais! O Inferno era preferível ao que eu suportava. Como me ensinaram, os danados sofrem, choram e gritam juntos; eles podem debater-se e lutar entre si, mas eu estava só. Oh! É horrível! Eu me sinto, ao vos fazer estas descrições, pronta a blasfemar e a cair sobre a minha presa. Não creiais embaraçar-me, pondo entre mim e ela um anjo sorridente. Lutarei com todos, seja quem for.

22. ─ Seja qual for o sentimento que vos agita, só vos oporemos a calma, a prece e o amor. ─ O que mais me agrada é que me falais sem me injuriar, sem me repelir e quereis fazer-me esperar. Oh! Não espereis que eu me entregue imediatamente, porque receio a decepção. Depois de me terdes feito tão belas promessas, tão belas que ainda não posso acreditar, iríeis abandonar-me? Oh! Então o que seria de mim? E eu reflito: Por que essa consolação tão tardia? Por que vós? Seria uma cilada escondida? Vede! Não sei no que crer e o que fazer. Na verdade isto me parece estranho, surpreendente!

OBSERVAÇÃO: Com efeito a experiência prova que as palavras duras e malévolas são um meio impróprio para se desembaraçar dos maus Espíritos. Elas os irritam, o que os leva a maior encarniçamento.

23. ─ Germaine, escutai-me. Vou explicar-vos o que vos surpreende. Desde alguns anos, a imortalidade e a relação das almas com os que ainda estão na Terra nos foram demonstradas de maneira a não deixar qualquer dúvida. O Espiritismo ─ é o nome desta nova doutrina ─ põe os seus adeptos no dever de amar e socorrer os seus irmãos. Nós somos espíritas e, por amor a duas irmãs que sofrem, vós e a menina vossa vítima, viemos a vós para vos oferecer nosso coração e o socorro de nossas preces. Compreendeis agora? ─ Não muito. Raciocinais como jamais ouvi. Assim, tendes que vos ocupar com os que vivem como vós e em vosso meio, e com os Espíritos que sofrem como eu? É um trabalho a que não deve faltar mérito.

24. ─ Se tendes o ensejo de nos julgar sinceros, quereis prometer que serão boas as vossas disposições para com a menina? ─ Boas na medida em que tereis sido bons para comigo. Eu vos julgo todos sinceros. Vossa linguagem me leva a acreditar nisso, mas duvido ainda. Tirai-me essa dúvida e estarei do vosso lado. Vou esforçar-me para fazer o que vou prometervos. À medida que se apagar a dúvida, o mal enfraquecerá, e afastada a dúvida, terá cessado o mal na menina. Se se brincardes comigo, desgraça! Ela morrerá estrangulada. Uma vítima espera, ou sua liberdade, que depende de vós, ou o golpe que tenho sobre sua cabeça. Não é uma ameaça para vos intimidar: é um aviso de que o ódio e a raiva me cegariam. Chegastes a tempo. Ela talvez já estivesse morta. Como nem sempre podemos conversar, dizei aos vossos amigos que vivem onde vivo, que continuem a conversa; que não me repilam, embora minhas maldades não tenham cessado, porque não me empenhei absolutamente. Não podeis exigir mais do que prometi.

Pedimos aos nossos guias que dessem boa acolhida a Germaine. Eles responderam:

“De antemão, ela é nossa irmã muito amada, tanto mais que tem sofrido muito. Vinde, Germaine. Se jamais uma mão amiga apertou a vossa mão, aproximai-vos; nós vos estenderemos as nossas. Só a vossa felicidade nos ocupa. Em nós sempre encontrareis irmãos, malgrado a fraqueza de que ainda vos sentis capaz. Nós vos lamentaremos e não vos condenaremos. Entrai em vossa família. A felicidade nos sorri. Entre nós não correm lágrimas amargas. A alegria substitui a dor, e o amor o ódio. Irmã, vossas mãos!”
“VOSSOS GUIAS”

O dia 23 se passou sem crise, como a da véspera. À noite a mocinha foi com seu pai à sessão, para ouvir Germaine, pela qual já mostrava muito interesse.

Nossos guias nos disseram:

“Começai vossos trabalhos pela evocação de Germaine. Ela o deseja muito. Deveis provar-lhe que ela vos ocupa especialmente. Evitai tudo quanto pudesse parecer esquecimento ou indiferença, a fim de afastar todas as suas dúvidas. Pensai que seus ataques foram apenas suspensos. Sede prudentes. Sede felizes sem amorpróprio e sem orgulho, e sobretudo sede fervorosos em vossas preces. Se ela manifestar o desejo de conversar demoradamente, ainda que tome toda a noite, não regateeis o tempo.”
“VOSSOS GUIAS”

25. Evocação de Germaine. ─ Eis-me aqui, muito mais calma. Eu quero ser justa, creio vo-lo dever. Também vedes que agi como o havia dito. As boas relações fazem os bons amigos. Falai-me, pois, já que sois vozes amigas. É tão estranho e tão novo para mim, que me permitireis saborear um entretenimento onde o ódio será substituído pelo... eu ia dizer amor, e não o conheço! Dizei-me o que devo fazer para amar e ser amada, eu, a pobre miserável Germaine, envelhecida pela desgraça, o opróbrio e o crime!... Entre vós batizam? Eis uma neófita.

─ O batismo que pedis, Jeanne[4], já o recebestes, respondi eu; está no vosso arrependimento, na vossa resolução de marchar por um novo caminho.

O dia 24 de setembro foi tão calmo quanto o precedente.

Na reunião da noite chamamos Germaine.

26. ─ Germaine, nós vos agradecemos... ─ Não me faleis disto, porque me deixais envergonhada. Sou eu que me inclino e peço graça. Devo-te uma grande reparação, pobre menina! A vida de que gozam os Espíritos é eterna. Deus pôs à minha frente os meios e o tempo para reparar as devastações causadas pela cegueira da paixão. Fica tranquila! Ora algumas vezes pela infeliz Germaine, a criminosa que hoje arrependida te pede perdão. Pobre menina, esquece tuas dores e aquela que as causou; não te lembres senão de que agora ela deseja ser tua amiga. Não é mais a mesma Germaine. A prece que derramaram sobre mim tornou minha alma mais limpa; extinguiu-se minha sede de vingança. A lembrança de meu infame passado será minha expiação. Minha prece, junta à vossa, amenizará o remorso que me tortura. Obrigado a vós todos, que me chamastes ao caminho da verdade e do bem, quando eu estava perdida nas profundezas do vício e da impenitência.

“Eu vos acredito agora. A dúvida desapareceu. Amo-vos e vos agradeço por me haverdes salvo e curado. Também vos agradeço por esta pobre menina, a quem restituístes a saúde e a vida.

“Posso dizer-me feliz, porque estou entre bons Espíritos que me consolam e fortalecem por sua moral suave e persuasiva. Não mais estou só; malgrado toda a negrura de minha alma, eles me admitiram em sua bem-aventurada família. Eu sou a doente, eles são meus guardiões. Faltam-me expressões para vos dizer tudo o que sinto.

“Dizei-me todos, sobretudo tu, pobre menina, que me perdoais. Necessito ouvir esta palavra sair de teu coração. Por favor, dai-me esta consolação.”

A jovem Valentina lhe disse: ─ Sim, Germaine, eu vos perdoo; mais ainda: eu vos amo!

─ E nós também, disse eu logo, nós vos amamos como uma irmã.

Germaine continuou: ─ E eu também começo a amar. A quem devo essa transformação? Àqueles a quem injuriei e que, malgrado todo horror que eu lhes devia inspirar, tiveram piedade de mim, me chamaram sua irmã e provaram que não me enganavam.

“Sim, abris-me o caminho para um futuro feliz. Eu era pobre e abandonada e agora vivo entre os que têm muito: não sou mais lastimável. Os bons Espíritos dizem que vão preparar-me para as provações que sofrerei infalivelmente. Munida desta força, voltarei ao meio das criaturas terrenas. Não mais será para semear a morte em redor de mim, mas para amar e merecer sua benevolência e sua amizade.

“Eu teria muito a dizer, mas não quero ser importuna. Oremos. Parece-me que isto me fará bem.

“Deus todo-poderoso, eterno, misericordioso, ouve minha prece. Perdoa minhas blasfêmias, perdoa meus desvios. Eu não conhecia o caminho que leva ao reino do justo. Meus irmãos da Terra me fizeram conhecê-lo; meus irmãos os Espíritos para ele me conduzem. Que a justiça infinita siga o seu curso para a pobre Germaine. Agora ela sofrerá sem se lastimar; nem um murmúrio sairá de sua boca. Reconheço tua grandeza e tua bondade de pai para com os teus bem-aventurados servos, que me vieram tirar do caminho do vício. Que a minha prece suba a ti, e que os anjos que te servem e rodeiam o teu trono possam um dia acolher-me em seu meio, como o fizeram estes bons Espíritos. Hoje compreendo que só a virtude leva à felicidade. Concedei graça, ó meu Deus, aos que, como eu, ainda sofrem. Concedei à menina que torturei as doçuras e as virtudes que constituem a felicidade na Terra.
“GERMAINE”

“Ajuda-te, e o céu te ajudará, vos foi dito. Os Espíritos que vos guiam não farão o trabalho que o dever vos impõe, mas se fordes trabalhadores, eles abreviarão, tanto quanto puderem, a tarefa empreendida sob a bandeira da imortal caridade. Agi, pois, sem desfalecimento e sem fraqueza. Que vossa fé se afirme, e um dia, talvez, vos perguntareis de onde vos vem essa força. Trabalhai pela moralização dos vossos irmãos encarnados e dos Espíritos atrasados. Não vos contenteis em pregar as consolações do Espiritismo. Mostrai a sua grandeza e poder por vossos atos. É a melhor refutação que podereis opor aos adversários. As palavras voam e os atos fortalecem e levantam. Que a felicidade que entrar na família em companhia da jovem doutrina seja devida aos cuidados e à caridade dos sinceros adeptos. Sede confiantes, sem orgulho do que vos acontecer, sem o que, os frutos que daí deveis retirar serão perdidos para vós.
“VOSSOS GUIAS.”

OBSERVAÇÃO: Como se vê, os Espíritos não são inativos nem indiferentes em relação aos Espíritos sofredores, que é preciso trazer ao bem. Mas quando a intervenção do homem pode ser útil, eles lhes deixam a iniciativa e o mérito, sem deixar de secundá-los com seus conselhos e seu encorajamento.

A partir de 25 de setembro, seguindo os conselhos dos nossos guias, adormeci a jovem Valentina todos os dias pelo sono magnético, para livrá-la completamente da ação dos maus fluidos que a tinham envolvido, e fortalecer o seu organismo. Desde sua libertação, ela experimentava mal-estar, incômodos do estômago, pequenos abalos nervosos, consequência inevitável da obsessão.

OBSERVAÇÃO: Para que teria servido o magnetismo se a causa tivesse subsistido? Para começar, teria sido necessário destruir a causa, antes de atacar os efeitos, ou pelo menos agir sobre ambos simultaneamente.

A menina estava um pouco dengosa pelos cuidados e carícias que lhe tinham prodigalizado durante a moléstia. Ela tinha-se tornado um pouco caprichosa e voluntariosa e com má vontade se dispunha a ser adormecida. Um dia até se recusou e eu fui embora. Logo que cheguei em casa, vieram avisar-me que ela estava com uma crise. “Bem, exclamei, é uma punição de Germaine.” Lá voltei imediatamente e encontrei a menina agitando-se na cama. Essa crise não era tão violenta quanto as precedentes, mas tinha os mesmos caracteres. Acalmei-a como nas outras. Algumas horas depois teve uma segunda, que eu detive da mesma forma.

À noite reunimo-nos. Germaine veio sem ser chamada; ela disse que tinha querido dar uma lição à menina e adverti-la de que quando ela não fosse razoável fála-ia sentir a sua presença. Além disso deu-lhe conselhos muito bons e fez sentir aos pais os inconvenientes de ceder aos caprichos dos filhos.

À fase da cura e da conversão do Espírito sucedeu a das revelações relativas ao drama cujo desenlace era a obsessão violenta de Valentine. Por mais interessante e comovedora que seja esta parte do relato, suprimimos os seus detalhes como estranhos, até certo ponto, ao nosso assunto, e porque trata de assuntos contemporâneos, cuja lembrança penosa ainda está presente e tiveram por testemunhas interessadas pessoas ainda vivas. Nós os resumimos para as conclusões que deles devemos tirar. Pelos mesmos motivos dissimulamos os nomes próprios, que nada acrescentariam à instrução que ressalta desta história.

Dessas revelações feitas na intimidade, fora do grupo, e por meio de outro médium, resulta que Germaine é a avó do Sr. Laurent, pai da jovem obsedada Valentina. Ela tinha uma filha, que teve dois filhos, dos quais um é o próprio Sr. Laurent. O outro foi assassinado por sua avó, que o precipitou num barranco, em baixo dos rochedos de... Por esse assassínio ela foi condenada a dez anos de reclusão, que sofreu na prisão de C... Sobre todos esse fatos ela deu as mais minuciosas informações, indicando com exatidão os nomes, os lugares e as datas, de modo a não deixar qualquer dúvida quanto a sua identidade. Esses detalhes íntimos, só conhecidos pelo Sr. Laurent e sua mulher, foram por eles confirmados. Para ser melhor reconhecida por seu neto, ela designou-o por seu apelido, ignorado pelo médium, e só lhe falou em dialeto, como em vida.

Não havia, pois, como se enganar. Germaine era mesmo a avó de Laurent, a condenada por infanticídio. Quanto à sua filha, cujo filho foi morto, é hoje a filha de Laurent, a jovem Valentine, que ela vem ainda atormentar por uma cruel obsessão. Ela explicou a causa do ódio que lhe votava. Elas haviam lutado entre si, como Espíritos, e essa luta continuou quando uma delas reencarnou. Um fato vem confirmar esta asserção: As palavras da mocinha, pronunciadas no sono. Compreende-se que seus pais a tivessem deixado sempre ignorar o que se havia passado na família. Estas palavras: A criança! A criança! Nos rochedos! Nos rochedos! evidentemente eram o resultado da lembrança que seu Espírito conservava no estado de desprendimento.

─ Então, disse eu ao pai de Valentine, estais bem convencido de que é o Espírito de vossa avó? ─ Oh! Senhor, respondeu ele, eu já estava convencido antes desta conversa. O nome de Germaine e as palavras de Valentine, em suas crises, não me deixavam a menor dúvida a respeito. Eu o disse logo à minha mulher. Ainda mais, quando me falastes do Espiritismo e da reencarnação, veio-me o pensamento de que minha mãe estava encarnada em Valentine.

Assim se explicam as repetidas exclamações de Laurent: “É engraçado!” E as de sua mulher: “Nisto há um mistério!”


  • [1] Espírito obsessor da jovem Tereza B..., de Marmande (Revista de junho de 1
    864)
    [2] A continuação do relato permitirá que sejam entendidas estas últimas palavras.
    [3] Disseram-nos os pais que realmente a criança, aos seis anos, tinha tido crises que eles não podiam entender.
    [4] Aqui parece-nos que o correto seria Germaine. (N. revisor)

Setembro 9 (Sociedade Espírita de Paris, 30 de junho de 1865 – Médium: Sr Desliens)

Setembro


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1. — Um dos nossos colegas transmitiu à Sociedade o extrato seguinte de um relatório lido na Academia de Medicina pelo Dr. H. Bouley [Inspector-Geral das escolas de veterinária], sobre os sintomas da raiva no cão.

“No período inicial da raiva e quando a doença está completamente declarada, há, nas intermitências, uma espécie de delírio no cão, que se pode chamar delírio rábico, do qual Youatt [William Youatt (Youatt, William 1776:1847) | The Online Books Page;] foi o primeiro a falar e a descrever perfeitamente.

“Esse delírio caracteriza-se por movimentos estranhos, que denotam que o animal doente vê objetos e ouve barulhos, que só existem naquilo que se tem pleno direito de chamar a sua imaginação. Com efeito, ora o animal se mantém imóvel, atento, como se estivesse à espreita; depois, de repente, atira-se e morde no ar, como faz o cão sadio que quer apanhar uma mosca no voo. Outras vezes, furioso e uivando, atira-se contra a parede, como se tivesse ouvido, do outro lado, ruídos ameaçadores.

“Raciocinando por analogia, é-se autorizado a admitir que são sinais de verdadeiras alucinações. Entretanto, quem não estivesse prevenido não daria importância a esses sintomas, que são muito fugazes, bastando, para desaparecerem, que se faça ouvir a voz do dono. Então vem um momento de repouso; os olhos se fecham lentamente, a cabeça pende, as patas dianteiras parecem desaparecer sob o corpo e o animal está prestes a cair. Mas, de repente, se ergue e novos fantasmas vêm assediá-lo; olha em torno de si com selvagem expressão, abocanha como se quisesse pegar um objeto ao alcance dos dentes e se lança, na extremidade da corrente, ao encontro de um inimigo que só existe na sua imaginação.”


2. — Esse fenômeno, minuciosamente observado pelo autor da memória, parece denotar que nesse momento o cão é atormentado pela visão de algo invisível para nós. É uma visão real ou uma criação fantástica de sua imaginação, em outras palavras, uma alucinação? Se for uma alucinação, certamente não é pelos olhos do corpo que vê, pois não são objetos reais; se forem seres fluídicos ou Espíritos, também não causam nenhuma impressão sobre o sentido da visão, e, assim, é por uma espécie de visão espiritual que ele os percebe. Num e noutro caso, gozaria de faculdade análoga, até certo ponto, à que possui o homem. A Ciência ainda não se tinha aventurado a dar uma imaginação aos animais. Ora, da imaginação a um princípio independente da matéria a distância não é grande, a menos que se admita que a matéria bruta: a madeira, a pedra, etc., possa ter imaginação.


3. — Todos os fenômenos de visão são atribuídos pela Ciência à imaginação superexcitada. Não obstante, por vezes têm-se visto crianças em tenra idade, que ainda não sabem falar, correr atrás de um ser invisível, sorrir-lhe, estender-lhe os braços e querer agarrá-lo. Em comparação com a raiva, este fato não tem grande semelhança com o do cão acima citado? A criança ainda não pode dizer o que vê, mas as que começam a falar dizem, positivamente, que veem seres invisíveis para os assistentes. Viram-nas descrever os avós falecidos, que elas não haviam conhecido. Concebe-se a superexcitação numa pessoa preocupada por uma ideia, mas não é, seguramente, o caso de uma criancinha. A imaginação sobreexcitada poderá despertar uma lembrança; o medo, a afeição, o entusiasmo poderão criar imagens fantásticas, é possível; sob o império de certas crenças, uma pessoa exaltada imaginará ver aparecer um ser que lhe é caro, a Virgem e os santos, ainda se admite; mas, como explicar, só por estas causas, o fato de uma criança de três a quatro anos descrever sua avó, que nunca viu? Seguramente não pode ser o produto de uma lembrança, nem da preocupação, nem de uma crença qualquer.


4. — Digamos de passagem, e como corolário do que precede, que a mediunidade vidente parece ser frequente, e mesmo geral, nas criancinhas. Nossos anjos-da-guarda viriam, assim, conduzir-nos, como pela mão, até o limiar da vida, para nos facilitar a entrada e nos mostrar sua ligação com a vida espiritual, a fim de que a transição de uma a outra não seja muito brusca. À medida que a criança cresce e pode fazer uso das próprias forças, o anjo-da-guarda se vela à sua vista, para deixá-la ao livre-arbítrio. Parece dizer-lhe: “Vim acompanhar-te até o navio, que te vai transportar pelo mar do mundo; agora, parte; voa com tuas próprias asas; mas, do alto do céu, velarei por ti; pensa em mim e em tua volta lá estarei para te receber.” Feliz aquele que, durante a travessia, não esquece seu anjo-da-guarda!


5. — Voltemos ao assunto principal, que nos levou a essa digressão. Desde que se admita uma imaginação no cão, poder-se-ia dizer que a doença da raiva o superexcita a ponto de lhe provocar alucinações. Mas numerosos exemplos tendem a provar que o fenômeno das visões tem ocorrido em certos animais, no estado mais normal, sobretudo no cão e no cavalo; pelo menos é nestes que se tem observado mais. Raciocinando por analogia, pode supor-se que assim suceda com o elefante e com animais que, por sua inteligência, mais se aproximam do homem. É certo que o cão sonha; muitas vezes, durante o sono, já foram vistos fazendo movimentos que simulam a corrida; gemer ou manifestar contentamento. Seu pensamento está, pois, ativo, livre e independente do instinto propriamente dito. Que faz ele, o que pensa e o que vê nos seus sonhos? É o que, infelizmente, não nos pode dizer; mas o fato lá está.


6. — Até agora quase não nos havíamos preocupado com o princípio inteligente dos animais e, ainda menos, com sua afinidade com a espécie humana, a não ser do ponto de visto exclusivo do organismo material. Hoje procuramos conciliar seu estado e seu destino com a justiça de Deus; mas a respeito apenas foram feitos sistemas mais ou menos lógicos, nem sempre de acordo com os fatos. Se a questão ficou indecisa por tanto tempo, é que nos faltavam, como para muitas outras, elementos necessários para compreendê-la. O Espiritismo, que dá a chave de tantos fenômenos incompreendidos, mal observados ou despercebidos, não pode deixar de facilitar a solução desse grave problema, ao qual não se deu toda a atenção que merece, porque é uma solução de continuidade nos elos que ligam todos os seres, e no conjunto harmonioso da Criação.

Por que, então, o Espiritismo não resolveu imediatamente a questão? Seria o mesmo que perguntar por que um professor de Física não ensina aos alunos, desde a primeira lição, as leis da eletricidade e da óptica. Ele começa pelos princípios fundamentais da ciência, pelos que devem servir de base para a compreensão dos outros princípios, reservando para mais tarde a explicação das leis subsequentes. Assim procedem os grandes Espíritos que dirigem o movimento espírita; em boa lógica começam pelo começo e esperam que estejamos suficientemente instruídos num ponto, antes de abordar outro. Ora, qual devia ser o ponto de partida de seu ensino? A alma humana. Cabe a nós convencer de sua existência e de sua imortalidade; a nós compete dar a conhecer seus verdadeiros atributos e o destino que, de início, era preciso a ela ligar. Numa palavra, precisávamos compreender nossa alma, antes de procurar compreender a dos animais. O Espiritismo já nos ensinou bastante sobre a alma e suas faculdades; diariamente nos ensina mais e projeta luz sobre algum ponto novo. Mas quanto ainda resta a explorar!

À medida que o homem avança no conhecimento de seu estado espiritual, sua atenção é despertada para todas as questões que lhe dizem respeito, e a dos animais não é das menos interessantes; apreende melhor as analogias e as diferenças; busca explicar o que vê; tira consequências; ensaia teorias, sucessivamente desmentidas ou confirmadas por novas observações. É assim que, pelos esforços de sua própria inteligência, pouco a pouco se aproxima do objetivo. Nisto, como em todas as coisas, os Espíritos não nos vêm libertar do trabalho das pesquisas, porque o homem deve fazer uso de suas faculdades; ajudam-no, dirigem-no, o que já é muito, mas não lhe dão a ciência acabada. Uma vez no caminho da verdade, os Espíritos lha vêm revelar claramente, para fazer calar as incertezas e aniquilar os falsos sistemas. Mas, enquanto o homem espera, seu Espírito preparou-se para melhor compreendê-la e aceitá-la; e quando ela se mostra, não o surpreende; já estava no fundo do pensamento.


7. — Vede a marcha que seguiu o Espiritismo. Veio surpreender os homens de improviso? Não, certamente. Sem falar nos fatos que se produziram em todas as épocas, ele está na Natureza, como a eletricidade e, do ponto de vista do princípio, vinha preparando sua chegada há um século. Swedenborg, Saint-Martin, os teósofos, Charles Fourier, Jean Reynaud e tantos outros, sem esquecer Mesmer, que deu a conhecer a força fluídica de Puységur, o primeiro a observar o sonambulismo, todos levantaram uma ponta do véu da vida espiritual; todos giraram em torno da verdadeira luz e dela mais ou menos se aproximaram; todos prepararam os caminhos e predispuseram os Espíritos, de sorte que o Espiritismo não teve, por assim dizer, senão que completar o que havia sido esboçado. Eis por que conquistou, quase instantaneamente, tão numerosas simpatias. Não falamos das outras causas múltiplas que lhe vieram em auxílio, provando que certas ideias já não eram compatíveis com o nível do progresso humano, e fizeram pressentir o advento de uma nova ordem de coisas, porque a Humanidade não pode ficar estacionária. Dá-se o mesmo com todas as grandes ideias que mudaram a face do mundo; nenhuma veio deslumbrar como um relâmpago. Cinco séculos antes do Cristo, Sócrates e Platão já não haviam lançado a semente das ideias cristãs?


8. — Um outro motivo tinha feito adiar a solução relativa aos animais. Essa questão toca em preconceitos há muito enraizados, e que teria sido imprudente chocar de frente, razão por que os Espíritos não o fizeram. A questão é apresentada hoje; agita-se em diversos pontos, mesmo fora do Espiritismo; os desencarnados nela tomam parte, conforme suas ideias pessoais; essas várias teorias são discutidas, examinadas; uma imensidão de fatos, como o que trata este artigo, e que outrora teriam passado despercebidos, hoje chamam a atenção, em razão dos próprios estudos preliminares que têm sido feitos. Sem adotar esta ou aquela opinião, a gente se familiariza com a ideia de um ponto de contato entre a animalidade e a Humanidade; e, quando vier a solução definitiva, seja qual for o sentido em que ocorra, deverá apoiar-se sobre argumentos peremptórios, que não darão margem a qualquer dúvida. Se a ideia for verdadeira, terá sido pressentida; se for falsa, é que se terá encontrado algo mais lógico para pôr em seu lugar.

Tudo se liga, tudo se encadeia, tudo se harmoniza na Natureza. O Espiritismo veio dar uma ideia-mãe e pode ver-se quão fecunda é esta ideia. Antes da luz que ele lança sobre a psicologia, ter-se-ia dificuldade em crer que pudessem surgir tantas considerações a propósito de um cão raivoso.

Depois que o relatório do Sr. Bouley foi lido na Sociedade de Paris, um Espírito deu a respeito a seguinte comunicação.


9 (Sociedade Espírita de Paris, 30 de junho de 1865. – Médium: Sr. Desliens.)


Existe a visão no cão e em alguns outros animais, nos quais fenômenos semelhantes aos descritos pelo Sr. Bouley possam produzir-se? Para mim a questão não padece dúvida. Sim; o cão e o cavalo veem ou sentem os Espíritos. Nunca testemunhastes a repugnância que, por vezes, manifestam esses animais, ao passarem num local onde ignoravam tivesse sido enterrado um corpo humano? Certamente direis que seus sentidos podem ser despertados pelo odor particular dos corpos em putrefação; então, por que passam indiferentes ao lado do cadáver enterrado de um outro animal? Por que se diz que o cão pressente a morte? Nunca vistes cães uivando sob as janelas de uma pessoa agonizante, quando esta lhe era desconhecida? Não vedes, também, fora da excitação da raiva, diversos animais se recusarem a obedecer à voz do dono, recuarem amedrontados ante um obstáculo que lhes parece barrar a passagem, e se enfurecerem? e depois passarem tranquilamente pelo mesmo sítio que lhes inspirava terror, como se o obstáculo tivesse desaparecido? Tem-se visto animais salvarem seus donos de um perigo iminente, recusando-se a percorrer o caminho onde estes teriam podido sucumbir. Os fatos de visões nos animais se encontram na Antiguidade e na 1dade Média, bem como em nossos dias.

Assim, não há dúvida de que os animais veem os Espíritos. Aliás, dizer que eles têm imaginação não é lhes conceder um ponto de semelhança com o Espírito humano? e o instinto não é neles a inteligência rudimentar, apropriada às suas necessidades, antes que tenha passado pelos cadinhos modificadores, que a devem transformar e dar-lhe novas faculdades? O homem também tem instintos, que o fazem agir de maneira inconsciente, no interesse de sua conservação; porém, à medida que nele se desenvolvem a inteligência e o livre-arbítrio, o instinto se enfraquece, para dar lugar à razão, porque esse guia cego lhe é menos necessário.

O instinto, que está em todo o seu vigor no animal, perpetuando-se no homem, onde se perde pouco a pouco, certamente é um traço de união entre as duas espécies. A sutileza dos sentidos no animal, como no selvagem e no homem primitivo, suprindo nuns e noutros a ausência ou a insuficiência do senso moral, é outro ponto de contato. Enfim, a visão espiritual que, com toda evidência, lhes é comum, embora em graus muito diversos, também vem diminuir a distância que parece erguer entre eles uma barreira intransponível. Contudo, nada concluais de maneira absoluta, mas observai atentamente os fatos, porque somente dessa observação a verdade brotará um dia para vós.


Mokí.


Observação. – Este conselho é muito sábio, pois, evidentemente apenas nos fatos é que se pode assentar uma teoria sólida; fora disso só haverá opiniões e sistemas. Quando constatados, os fatos são argumentos sem réplica, cujas consequências, mais cedo ou mais tarde, terão de ser aceitas. Foi o princípio que serviu de base à Doutrina Espírita, e é o que nos leva a dizer que o Espiritismo é uma ciência de observação.



Março NECROLÓGIO

Março


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1. — Mais uma alma de escol acaba de deixar a Terra! O Sr. Demeure era um médico homeopata muito distinto em Albi. Seu caráter, tanto quanto o seu saber, tinham lhe granjeado a estima e a veneração de seus concidadãos. Só o conhecemos por meio de sua correspondência e da de seus amigos, mas bastou para nos revelar toda a grandeza e toda a nobreza de seus sentimentos. Sua bondade e sua caridade eram inesgotáveis e, malgrado a idade avançada, nenhuma fadiga o impedia de ir socorrer os pobres doentes. O preço das visitas era a menor de suas preocupações; preocupava-se mais com os desgraçados do que com aqueles que sabia que podiam pagar, porque, como dizia, em sua falta estes últimos sempre poderiam arranjar outro médico. Aos primeiros, não somente dava os remédios gratuitamente, mas muitas vezes provia às suas necessidades materiais, o que, algumas vezes, é o mais útil dos medicamentos. Pode dizer-se que era o Cura d’Ars da Medicina.

O Sr. Demeure havia abraçado com ardor a Doutrina Espírita, na qual encontrara a chave dos mais graves problemas, cuja solução pedira em vão à Ciência e a todas as filosofias. Seu Espírito profundo e investigador fê-lo compreender imediatamente todo o seu alcance, de tal modo que se tornou um de seus mais zelosos propagadores. Embora jamais nos tivéssemos visto, dizia-nos em uma de suas cartas que estava convicto de que não éramos estranho um ao outro e que havia relações anteriores entre nós. Sua prontidão em vir até nós assim que morreu, sua solicitude por nós e os cuidados que nos dispensou na circunstância em que nos achávamos no momento [Kardec estava enfermo; vide Primeira comunicação da Sra. viúva Foulon], o papel que parece chamado a desempenhar, parecem confirmar esta previsão, que ainda não pudemos verificar.

Soubemos de sua morte em 30 de janeiro, e nosso primeiro pensamento foi o de nos entretermos com ele. Eis a comunicação que nos deu naquela mesma noite, através da Sra. Cazemajour, médium:


2. — “Eis-me aqui. Ainda em vida prometi a mim mesmo desde que estivesse morto, que viria, se possível, apertar a mão do meu caro mestre e amigo Allan Kardec.

“A morte havia dado à minha alma esse pesado sono que se chama letargia; mas o pensamento velava. Sacudi esse torpor funesto, que prolonga a perturbação que segue a morte, despertei e, de um salto, fiz a viagem.

“Como estou feliz! Já não sou velho nem enfermo; meu corpo era apenas um disfarce imposto; sou jovem e belo, belo dessa eterna juventude dos Espíritos, cujas rugas não mais sulcam o rosto, cujos cabelos não embranquecem sob a ação do tempo. Sou leve como o pássaro que em voo rápido atravessa o horizonte de vosso céu nebuloso; admiro, contemplo, bendigo, amo e me inclino, átomo que sou, ante a grandeza, a sabedoria, a ciência de nosso Criador, ante a grandeza das maravilhas que me cercam.

“Estava junto de vós, caro e venerado amigo, quando o Sr. Sabò falou em fazer a minha evocação, e eu o segui.

“Sou feliz; estou na glória! Oh! quem poderia jamais descrever as esplêndidas belezas da terra dos eleitos: os céus, os mundos, os sóis, seu papel no grande concerto da harmonia universal? Pois bem! eu tentarei, meu mestre; vou fazer o seu estudo e virei depor junto a vós a homenagem de meus trabalhos de Espírito, que antecipadamente vos dedico. Até logo.”


Demeure.


Observação. – As duas comunicações seguintes, dadas em 1º e 2 de fevereiro, são relativas à doença que nos acometeu subitamente em 31 de janeiro. Embora sejam pessoais, nós as publicamos porque provam que o Dr. Demeure é tão bom como Espírito quanto o era como homem e porque oferecem, além disso, um ensinamento. É um testemunho de gratidão, que devemos à solicitude de que fomos objeto de sua parte, nessa circunstância:


3. — “Meu bom amigo, tende confiança em nós e muita coragem. Esta crise, não obstante fatigante e dolorosa, não será longa e, com os cuidados prescritos, podereis, conforme os vossos desejos, completar a obra, de que a vossa existência foi o principal objetivo. No entanto, sou aquele que está sempre junto de vós, com o Espírito de Verdade, que me permite tomar a palavra em seu nome, como o último de vossos amigos vindos entre os Espíritos! Eles me fazem as honras das boas-vindas. Caro mestre, como estou feliz por ter morrido a tempo para estar com eles neste momento! Se tivesse morrido mais cedo, talvez vos pudesse ter evitado esta crise que eu não previa; havia pouquíssimo tempo que estava desencarnado para me ocupar de outra coisa que não fosse o espiritual. Mas agora velarei por vós. Caro mestre, é vosso irmão e amigo que é feliz de ser Espírito para estar junto de vós e vos prodigalizar cuidados na vossa moléstia. “Ajuda-te, e o céu te ajudará.” Ajudai, pois, os bons Espíritos nos cuidados que vos dispensam, submetendo-vos estritamente às suas prescrições.

“Faz muito calor aqui; este carvão é fatigante. Enquanto estiverdes doente, não o queimeis; ele continua a aumentar a vossa opressão; os gases que dele se desprendem são deletérios.”


Vosso amigo, Demeure.


4. — “Sou eu, Demeure, o amigo do Sr. Kardec. Venho dizer-lhe que estava ao seu lado quando lhe ocorreu o acidente, que poderia ter sido funesto sem uma intervenção eficaz, para a qual tive a felicidade de contribuir. Segundo minhas próprias observações e informações que colhi em boa fonte, para mim é evidente que, quanto mais cedo se der a sua desencarnação, tanto mais cedo se dará a sua reencarnação, a fim de poder completar a sua obra. Contudo, é preciso que ele dê, antes de partir, uma última demão nas obras que devem completar a teoria doutrinária, da qual é o iniciador; e ele se tornará culpado de homicídio voluntário se, por excesso de trabalho, contribuir para a falência de sua organização, que o ameaça de uma súbita partida para os nossos mundos. Não se deve ter receio em dizer-lhe toda a verdade, para que se guarde e siga rigorosamente as nossas prescrições.”


Demeure.


5. — A comunicação seguinte foi recebida em Montauban, em 1º de fevereiro, no círculo dos amigos espíritas que ele tinha naquela cidade:


“Antoine Demeure. Não estou morto para vós, meus bons amigos, mas para os que, como vós, não conhecem esta santa doutrina, que reúne os que se amaram na Terra e que tiveram os mesmos pensamentos e os mesmos sentimentos de amor e caridade.

“Sou feliz; mais feliz do que podia esperar, porquanto gozo de rara lucidez entre os Espíritos desprendidos da matéria há tão pouco tempo. Tende coragem, meus bons amigos; doravante estarei junto a vós e não deixarei de vos instruir sobre muitas coisas que ignoramos quando ligados à nossa pobre matéria, que nos oculta tantas magnificências e tantos prazeres. Orai pelos que estão privados dessa felicidade, pois não sabem o mal que fazem a si mesmos.

“Hoje não me delongarei muito, mas vos direi que não me acho completamente estranho neste mundo dos invisíveis. A mim parece que sempre o habitei. Aqui estou feliz, porque vejo os meus amigos e posso comunicar-me com eles sempre que o deseje.

“Não choreis, meus amigos; faríeis que lamentasse vos haver conhecido. Deixai correr o tempo e Deus vos conduzirá à esta morada, onde todos devemos nos reunir. Boa-noite, meus amigos: que Deus vos console; aqui estou junto a vós.”


Demeure.


Observação. – A situação do Sr. Demeure, como Espírito, é bem a que podia deixar pressentir sua vida tão dignamente e tão utilmente realizada. Mas um outro fato não menos instrutivo ressalta de suas comunicações: é a atividade que ele demonstra, quase imediatamente depois da morte, para ser útil. Por sua alta inteligência e por suas qualidades morais, pertence à ordem dos Espíritos muito adiantados; ele é muito feliz, mas sua felicidade não está na inação. Há poucos dias, cuidava dos doentes como médico e, apenas desencarnado, desvela-se em ir cuidá-los como Espírito. Algumas pessoas perguntarão: Que se ganha em estar no outro mundo, se ali não se goza de repouso? A isto lhes perguntaremos, para começar, se nada significa não mais ter preocupações, nem necessidades, nem as enfermidades da vida, ser livre e poder, sem afadigar-se, percorrer o espaço com a rapidez do pensamento, ir ver os amigos a qualquer hora, seja qual for a distância em que se encontrem? Depois acrescentamos: Quando estiverdes no outro mundo, nada vos forçará a fazer seja o que for; sereis perfeitamente livres para ficar numa ociosidade beata, tanto tempo quanto quiserdes; mas logo vos cansareis dessa ociosidade egoísta e pedireis uma ocupação. Então vos será respondido: Se vos aborreceis por nada fazerdes, buscai vós mesmos algo fazer; as ocasiões de ser útil não faltam no mundo dos Espíritos, como não faltam entre os homens. É assim que a atividade espiritual não é um constrangimento; é uma necessidade, uma satisfação para os Espíritos que procuram as ocupações segundo seus gostos e aptidões, e escolhem de preferência as que possam ajudar o seu adiantamento.




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