Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

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Capítulo XIII

Fevereiro - A Espineta de Henrique III

Fevereiro
A Espineta de Henrique III

O fato seguinte é a continuação da interessante história da Música e letra do rei Henrique III, relatada na Revista de julho de 1865. Desde então, o Sr. Bach tornou-se médium escrevente, mas ele pratica pouco, devido à fadiga resultante. Só o faz quando incitado por uma força invisível, que se traduz por uma viva agitação e um tremor da mão, porque, então, a resistência é mais penosa que o exercício. Ele é mecânico, no mais absoluto sentido do vocábulo, e não tem consciência nem lembrança do que escreve.

Um dia em que se achava nessa disposição, escreveu esta quadra:

Le roy Henry donne cette grande espinette

A Baldazzarini, très-bon musicien.

Si elle n'est bonne ou pas assez coquette

Pour souvenir, du moins, qu'il la conserve bien.

(O rei Henrique dá esta grande espineta

A Baldazzarini, muito bom músico.

Se não for boa ou bastante elegante

Como lembrança, que ao menos a conserve.)

A explicação destes versos, que para o Sr. Bach não tinham sentido, lhe foi dada em prosa.

“O rei Henrique, meu senhor, que me deu a espineta que possuís, tinha escrito uma quadra num pedaço de pergaminho que tinha mandado pregar no estojo e mandou-ma uma manhã. Alguns anos mais tarde, tendo que fazer uma viagem, e como eu levava minha espineta para fazer música, temendo que o pergaminho fosse arrancado e se perdesse, tirei-o, e para não perdê-lo, coloquei num pequeno nicho, à esquerda do teclado, onde ainda se encontra.”

A espineta é a origem dos pianos atuais, na sua maior simplicidade. Era tocada da mesma maneira. Era um pequeno cravo de quatro oitavas, de cerca de um metro e meio de comprimento por quarenta centímetros de largura, e sem pés. As cordas, no interior, eram dispostas como nos pianos, e tocadas por meio de teclas. Era transportada à vontade, num estojo, como os contrabaixos e os violoncelos. Para utilizá-la, era colocada sobre uma mesa ou sobre um cavalete.

O instrumento estava então em exposição no museu retrospectivo, nos Champs-Élysées, onde não era possível fazer a busca indicada. Quando ela lhe foi feita, o Sr. Bach, juntamente com o filho, apressou-se em examinar todos os cantos, mas inutilmente, de sorte que a princípio pensou tratar-se de uma mistificação. Não obstante, para nada ter a censurar-se, desmontou-a completamente e descobriu, à esquerda do teclado, entre duas tabuinhas, uma fresta tão estreita que não cabia a mão. Examinou esse recanto, cheio de poeira e de teias de aranha, e daí retirou um pedaço de pergaminho dobrado, enegrecido pelo tempo, com trinta e um centímetros por sete e meio, sobre o qual estava escrita a quadra seguinte, em caracteres da época, bastante grandes:

Moy le Roy Henry trois octroys cette espinette

A Baltasarini, mon gay musicien,

Mais sis dit mal soñe, ou bien ma moult simplette

Lors pour mon souvenir dans lestuy garde bien.

HENRY.

(Eu, o Rei Henrique III, dou esta espineta

A Baltazzarini, meu alegre músico, Se soa mal ou bem, mas muito simplesmente Como lembrança minha guarde-a no estojo.)

HENRIQUE


Esse pergaminho tem furos nos quatro cantos, que são, evidentemente os dos pregos que o fixaram na caixa. Além disto, tem nas bordas uma porção de furos alinhados e regularmente espaçados, que parecem ter sido feitos por preguinhos. Foi exposto na sala de sessões da Sociedade, e todos tivemos o prazer de examiná-lo, bem como a espineta, na qual o Sr. Bach tocou e cantou a ária a que nos referimos, e que lhe foi revelada em sonho.

Os primeiros versos ditados, como se vê, reproduziam o mesmo pensamento que os do pergaminho, dos quais são a tradução em linguagem moderna, e isto antes que estes últimos fossem descobertos.

O terceiro verso é obscuro e contém, sobretudo, o vocábulo ma, que parece não ter qualquer sentido e não se ligar à ideia principal e que, no original, está enquadrado num filete. Inutilmente procuramos a sua explicação, e o Sr. Bach também não o sabia. Estando um dia em casa dele, espontaneamente e em minha presença, teve ele uma comunicação de Baldazarini, dada em nossa intenção, nestes termos.

“Amico mio,

“Estou contente contigo; escreveste esses versos na minha espineta; minha promessa está cumprida e agora estou tranquilo. (Alusão a outros versos ditados ao Sr. Bach e que Baldazarini lhe tinha dito que escrevesse no instrumento). Quero dizer uma palavra ao sábio presidente que te vem visitar.

(O toi Allan Kardec, dont les travaux utiles

Instruisent chaque jour des spirites nouveaux, Tu ne nous fais jamais des questions futiles; Aussi les bons Esprits éclairent tes travraux.

Mais il te faut lutter contre les ignorants Qui, sur notre terre, se croyeyen des savants. Ne te rebute pas; la fâche est dificile; Pour lout propagateur fût-ce jamais facile? )


O tu, Allan Kardec, cujos trabalhos úteis

Instruem cada dia novos espíritas,

Jamais nos diriges perguntas fúteis;

Assim, os bons Espíritos iluminem teus trabalhos.

Mas é preciso lutar contra os ignorantes

Que, na Terra, se acreditam sábios.

Não desanimes; a tarefa é difícil;

E algum dia foi fácil para os propagadores?

“O rei troçava de minha pronúncia em seus versos; eu sempre dizia ma em vez de mas. Addio, amico.”

BALDAZZARINI


Assim foi dada, sem pergunta prévia, a explicação da palavra ma. É o vocábulo italiano que significa mas, intercalado por brincadeira, e pelo qual o rei designava Baldazzarini que, como muitos de sua nação, o pronunciavam muitas vezes. Assim, o rei, dando aquela espineta ao seu músico, lhe diz: “Se ela não é boa, se soa mal ou si ma (Baltazzarini) a julga muito simples, de bem pouco valor, que ele a guarde em seu estojo, como lembrança minha.”

A palavra ma está enquadrada num filete, como uma palavra entre parênteses. Certamente por muito tempo teríamos procurado esta explicação, que não podia ser reflexo do pensamento do Sr. Bach, porque ele próprio não a compreendia. Mas o Espírito percebeu que precisávamos dessa explicação para completar o nosso relato, e aproveitou a ocasião para no-la dar, sem que nos tivesse ocorrido solicitar-lha, porque, quando o Sr. Bach se pôs a escrever, nós ignorávamos, bem como ele, qual era o Espírito que se comunicava.

Restava uma importante questão a resolver, a de saber se a escrita do pergaminho era realmente de próprio punho de Henrique III. O Sr. Bach foi à Biblioteca Imperial, para compará-la com a dos manuscritos originais. Encontraram, a princípio, alguns que não tinham perfeita similitude, mas apenas um mesmo tipo de letra. Com outras peças, a identidade era absoluta, tanto para o corpo da escrita quanto para a assinatura. Essa diferença provinha de que a caligrafia do rei era variável, circunstância que logo mais será explicada.

Não poderia haver dúvida quanto à autenticidade dessa peça, embora certas pessoas, que professam uma incredulidade radical em relação às coisas ditas sobrenaturais, tenham pretendido que não passava de uma imitação muito exata. Ora, observaremos que aqui não se trata de uma escrita mediúnica dada pelo Espírito do rei, mas de um manuscrito original escrito pelo próprio rei, em vida, e que nada tem de mais maravilhoso do que aqueles que circunstâncias fortuitas permitem descobrir diariamente. O maravilhoso, se maravilhoso existe, não está senão na maneira pela qual sua existência foi revelada. É bem certo que se o Sr. Bach se tivesse contentado em dizer que o tinha encontrado por acaso em seu instrumento, não teriam levantado qualquer objeção.

Estes fatos tinham sido relatados na sessão da Sociedade de 19 de janeiro de 1866, à qual estava presente o Sr. Bach. O Sr. Morin, membro da Sociedade, médium sonâmbulo muito lúcido, e que, em seu sono magnético, vê perfeitamente os Espíritos e com eles se entretém, assistia a essa sessão em estado de sonambulismo. Durante a primeira parte da sessão, consagrada a leituras diversas, à correspondência e ao relato de fatos, o Sr. Morin, com quem não se ocupavam, parecia em conversa mental com seres invisíveis. Ele lhes sorria e trocava apertos de mão em eles. Quando chegou sua vez de falar, pediram-lhe que designasse os Espíritos que ele via e que lhes pedisse para nos transmitirem, por seu intermédio, o que nos quisessem dizer para nossa instrução. Não lhe foi dirigida uma única pergunta direta. Só mencionamos sumariamente alguns dos fatos passados, para dar uma ideia do desenvolvimento da sessão e para chegar ao assunto principal de que nos ocupávamos.

Nomeá-los todos, disse ele, seria impossível, pois o número é muito grande; aliás, há muitos que não conheceis, e que vêm para se instruir. A maioria deles queria falar, mas cedem o lugar aos que no momento têm coisas mais importantes a dizer.

Para começar, está ao nosso lado o nosso colega Sr. Didier, o último que partiu para o mundo dos Espíritos, que não falta a nenhuma das nossas sessões e que vejo exatamente como em vida, com a mesma fisionomia; dir-se-ia que está aí com o seu corpo material; apenas ele não tosse mais. Ele me transmite as suas impressões, sua opinião sobre as coisas atuais, e me encarrega de vos transmitir as suas palavras.

Vem a seguir um homem moço que se suicidou recentemente em circunstâncias especiais e cuja situação descreve, o qual apresenta uma fase, de certo modo nova, do estado de certos suicidas após a morte, em razão das causas determinantes do suicídio e da natureza de seus pensamentos.

Depois vem o Sr. B..., espírita fervoroso falecido há alguns dias, em consequência de uma operação cirúrgica, e que tinha bebido em sua crença e na prece a força para suportar corajosamente e com resignação seus longos sofrimentos. “Que reconhecimento”, diz ele, “devo eu ao Espiritismo! Sem ele eu certamente teria posto fim às minhas torturas e seria como esse jovem infeliz que acabais de ver. A ideia do suicídio me veio mais de uma vez, mas sempre a repeli. Sem isso, como teria sido triste a minha sorte! Hoje sou feliz, oh! muito feliz, e agradeço aos nossos irmãos, que me assistiram com suas preces cheias de caridade. Ah! Se soubessem que suaves e salutares eflúvios a prece de coração derrama sobre os sofrimentos!”

“Mas, então, para onde me conduzem?” continua o sonâmbulo; “A um abrigo miserável! Lá está um homem ainda moço, que morre de dor no peito... a miséria é completa: nada para se aquecer, nada para comer! Sua mulher, esgotada pela fadiga e pelas privações, não pode mais trabalhar... Ah! Último e triste recurso!... Ela não tem mais cabelos... ela os cortou e vendeu por alguns cêntimos!... Quantos dias isto lhes permitirá viver?... É horroroso!”

Solicitado a indicar o domicílio dessa pobre gente, ele disse: “Esperai!” Depois parece escutar o que lhe dizem; toma um lápis e escreve um nome, com indicação da rua e número. Feita a verificação na manhã seguinte, tudo foi achado perfeitamente exato.

Refeito da emoção e voltando o seu Espírito ao local da sessão, ele falou ainda de várias outras pessoas e de diversas coisas que foram para os nossos guias espirituais assunto de instrução de alto significado, e que teremos ocasião de relatar em outra oportunidade.

De repente ele exclamou: “Mas há aqui Espíritos de todas as sortes! Uns foram príncipes, reis! Aqui está um que avança; tem o rosto longo e pálido, uma barbicha pontiaguda, uma espécie do gorro encimado por uma faísca. Ele me pede que vos diga:

“O pergaminho de que falastes e que tendes aos vossos olhos foi mesmo escrito por minha mão e, a respeito, eu vos devo uma explicação.

“Em meu tempo não se escrevia com tanta facilidade quanto hoje, sobretudo os homens de minha posição. Os materiais eram menos cômodos e menos aperfeiçoados; a escrita era mais lenta, mais grossa, mais pesada; assim, refletia melhor as impressões da alma. Como sabeis, eu não era de humor estável, e conforme estivesse com boa ou má disposição, minha escrita mudava de caráter. É o que explica a diferença que se nota nos meus manuscritos que restam. Quando escrevi esse pergaminho para o meu músico, enviando-lhe a espineta, estava num dos meus momentos de satisfação. Se procurardes em meus manuscritos aqueles cuja letra se assemelha à deste, reconhecereis, pelos assuntos tratados, que eu devia estar num desses bons momentos, e aí tereis outra prova de identidade.”

Por ocasião da descoberta desse escrito, do qual o Grand Journal falou no número de 14 de janeiro, o mesmo jornal contém, no número de 21 de janeiro, o artigo seguinte:

“Aprofundemos a questão da correspondência, mencionando a carta da senhora condessa de Martino, relativa à espineta do Sr. Bach. A senhora condessa de Martino está persuadida que o correspondente sobrenatural do Sr. Bach é um impostor, visto que deveria assinar Baldazzarini e não Baltazzarini, que é italiano de cozinha.”

De começo faremos notar que essa chicana a propósito de ortografia de um nome próprio é sofrivelmente pueril, e que o epíteto de impostor, na ausência do correspondente invisível no qual a senhora condessa não acredita, cai sobre um homem honrado, o que não é de muito bom gosto. Em segundo lugar, Baldazzarini, simples músico, espécie de trovador, bem podia não dominar a língua italiana na sua pureza, numa época em que não se gabavam de instrução. Contestariam a identidade de um francês que escrevesse em francês de cozinha, e não se vê gente que não é capaz de escrever corretamente o próprio nome? Por sua origem, Baldazzarini não deveria estar muito acima da cozinha. Mas essa crítica cai diante de um fato: é que os franceses, pouco familiarizados com as nuanças da ortografia italiana, ouvindo pronunciar esse nome, naturalmente o escrevem à francesa. O próprio rei Henrique III, na quadra encontrada e citada acima, o escreve simplesmente Baltasarini, embora ele não fosse cozinheiro. Assim foi com os que mandaram ao Grand Journal o relato do fato. Quanto ao músico, nas diversas comunicações que ditou ao Sr. Bach, e das quais temos em mãos vários originais, assinou Baldazzarini e às vezes Baldazzarrini, como se pode verificar. A falta não é dele, mas daqueles que por ignorância afrancesaram o nome, nós em primeiro lugar.

É verdadeiramente curioso ver as puerilidades a que se apegam os adversários do Espiritismo, prova evidente da penúria de boas razões.


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