Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866
Versão para cópiaCapítulo LXXVI
Dezembro - O trabalhador Thomas Martin e Luís XVIII
Dezembro
O trabalhador Thomas Martin e Luís XVIII
As revelações feitas a Luís XVIII por um trabalhador da Beauce, pouco depois da segunda entrada dos Bourbons, tiveram na época uma grande repercussão, e ainda hoje a sua lembrança não se apagou. Mas poucas pessoas conhecem os detalhes desse incidente, do qual só o Espiritismo pode agora dar a chave, como de todos os fatos deste gênero. É um assunto de estudo, tanto mais interessante quanto os fatos, quase contemporâneos, são de perfeita autenticidade, tendo em vista que eles são constatados por documentos oficiais. Vamos fazer deles um sucinto resumo, mas suficiente para que sejam apreciados.
Thomas-Ignace Martin era um pequeno trabalhador do burgo de Gallardon, situado a quatro léguas de Chartres. Nascido em 1783, ele tinha, consequentemente, trinta e três anos quando se deram os acontecimentos que vamos relatar. Morreu a 8 de maio de 1834. Era casado, pai de quatro filhos em tenra idade e gozava em sua comuna da reputação de um homem perfeitamente honesto. Os relatórios oficiais o pintam como um homem de bom-senso, embora de grande ingenuidade, por força de sua ignorância das coisas mais vulgares; de caráter brando e pacífico, não se metia em nenhuma intriga; de uma retidão perfeita em todas as coisas e de completo desinteresse, de que deu numerosas provas, o que exclui toda ideia de ambição de sua parte.
Assim, quando voltou à sua aldeia após a visita ao rei, retomou as suas ocupações habituais como se nada tivesse havido, evitando mesmo falar do que lhe tinha acontecido. Ao partir para Paris, o diretor do hospício de Charenton teve um trabalho imenso para fazê-lo aceitar 25 francos para as despesas de viagem. No ano seguinte, estando sua mulher grávida de um quinto filho, uma pessoa distinta por sua posição e que sabia de seus parcos recursos, mandou propor, por um terceiro, 150 francos para cobrir as necessidades nessa circunstância. Martin recusou, dizendo: “Não pode ser que por causa destas coisas que me acontecem sempre me ofereçam dinheiro, porque sem isto não falariam de mim, nem mesmo me conheceriam. Mas como a coisa não vem de mim, nada devo receber por isto. Assim, agradecei a essa pessoa porque, embora eu não seja rico, nada quero receber.” Em outras circunstâncias recusou somas mais consideráveis que o teriam deixado em situação confortável.
Martin era simples, mas não era nem crédulo nem supersticioso; praticava seus deveres religiosos escrupulosamente, mas sem exagero ou ostentação e sempre no justo limite do necessário, visitando o seu cura no máximo uma vez por ano. Não havia nele, consequentemente, nem hipocrisia nem superexcitação religiosa. Nada em seus hábitos e em seu caráter era de natureza a exaltar-lhe a imaginação. Ele tinha visto com prazer a volta dos Bourbons, mas sem se ocupar de política de modo algum e sem entrar em qualquer partido. Dedicado inteiramente ao trabalho do campo desde a infância, não lia livros nem jornais.
Compreende-se facilmente a importância destas informações sobre o caráter de Martin no caso de que se trata. Desde que um homem não é movido nem pelo interesse, nem pela ambição, nem pelo fanatismo, nem pela credulidade supersticiosa, ele adquire sérios direitos à confiança. Ora, eis como, sumariamente, se passaram os acontecimentos que lhe advieram.
A 15 de janeiro de 1816, pelas duas e meia da tarde, ele estava ocupado em apagar uma queimada num campo a três quartos de légua de Gallardon, num recanto muito deserto, quando de repente se lhe apresentou um homem de cerca de cinco pés e uma ou duas polegadas, corpo delgado, rosto afilado, delicado e muito branco, vestindo uma levita ou casaco dourado, totalmente abotoado e caindo até os pés, com sapatos amarrados com cordões e com um chapéu redondo de copa alta. Esse homem disse a Martin:
“É preciso que va encontrar o rei e lhe dizer que sua pessoa está em perigo, bem como a dos príncipes; que gente má ainda tenta derrubar o governo; que vários escritos ou cartas já circularam em algumas províncias de seus Estados a esse respeito; que é preciso que ele faça uma apuração criteriosa e geral em todos esses Estados e, sobretudo, na capital; que também é preciso que ele reabilite o dia do Senhor, a fim de que o santifiquem; que esse dia santo é desconhecido por grande parte de seu povo; é preciso que ele faça cessar os trabalhos públicos nesses dias; que faça ordenar preces públicas pela conversão do povo; que o estimule à penitência; que sejam abolidas e aniquiladas todas as desordens que se cometem nos dias que precedem a santa quaresma; sem todas estas coisas a França cairá em novas desgraças.”
Um pouco surpreendido pela aparição súbita, Martin lhe respondeu:
─ Mas bem podeis ir encontrar outros que não eu, para uma missão como esta. Imagine que eu iria falar com rei com mãos assim (sujas de excrementos)!
─ Não, replicou o desconhecido, é você que irá.
─ Mas, replicou Martin, se sabeis tanto, bem podeis ir vós mesmo procurar o rei e lhe dizer tudo isto. Por que vos dirigis a um homem pobre como eu, que nem sabe explicar-se?
─ Não serei eu quem irá, disse-lhe o desconhecido, é você; preste atenção ao que digo e você fará tudo o que ordeno.
Depois destas palavras, Martin o viu desaparecer mais ou menos assim: Seus pés pareceram elevarse do solo, a cabeça baixar e o corpo, se apequenando, acabou por desaparecer à altura da cintura, como se tivesse evaporado no ar. Mais espantado por esta maneira de desaparecer do que pela aparição súbita, Martin quis ir embora, mas não pôde; ele ficou, malgrado seu, e voltou à sua tarefa, que devia durar duas horas e meia mas não durou senão uma hora e meia, o que dobrou o seu espanto.
Talvez achem pueris certas recomendações que Martin deveria fazer ao rei, sobretudo quanto à guarda do domingo, tendo em vista o meio aparentemente sobrenatural empregado para transmiti-las e as dificuldades que esse cometimento deveria encontrar. Mas é provável que não fosse senão uma espécie de passaporte para chegar a ele, porque o objetivo principal da revelação, que era de altíssima gravidade, não deveria ser conhecido, como se verá mais tarde, senão no momento da entrevista. O essencial era que Martin pudesse chegar ao rei, e para isto a intervenção de alguns membros do alto clero era necessária. Ora, sabe-se da importância que o clero liga à guarda do domingo; como o soberano não se daria conta quando a voz do Céu ia fazer-se ouvir por um milagre? Convinha, pois, incentivar Martin, em vez de desencorajá-lo. Contudo, era preciso que as coisas marchassem por si mesmas.
Martin apressou-se em contar ao seu irmão o que lhe havia acontecido e ambos foram comunicá-lo ao cura da paróquia, o Sr. Laperruque, que se esforçou por dissuadir Martin e a atribuir a coisa à conta de sua imaginação.
No dia 18, às seis horas da tarde, tendo Martin descido ao porão para apanhar umas batatas, o mesmo indivíduo lhe apareceu de pé, ao seu lado, enquanto ele estava ajoelhado, ocupado em apanhá-las. Apavorado, ele largou ali mesmo a vela e fugiu. No dia 18, nova aparição à entrada de um lagar, e Martin fugiu novamente.
No domingo, 21 de janeiro, Martin entrava na igreja à hora das vésperas; quando tomava água benta, percebeu o desconhecido, que também a tomava e que o seguiu até a entrada de seu banco. Durante toda a duração do ofício ele esteve muito recolhido e Martin notou que ele não tinha o chapéu na cabeça nem nas mãos. Ao sair da igreja ele o seguiu até a sua casa, caminhando ao seu lado, com o chapéu na cabeça. Quando chegaram no portão, o homem de repente postou-se diante dele, face a face, e lhe disse:
─ Cumpra a sua missão e faça o que eu lhe disse; você não ficará tranquilo enquanto a sua missão não for cumprida.
Depois de pronunciar essas palavras, desapareceu, sem que nem dessa vez nem nas aparições seguintes Martin o tivesse visto extinguir-se gradualmente, como da primeira vez. A 24 de janeiro, nova aparição no celeiro, seguida destas palavras:
─ Faça o que eu mando; já é tempo.
Notemos estes dois modos de desaparecimento: o primeiro, que não poderia ser o caso de um ser corporal em carne e osso, sem dúvida tinha por objetivo provar que era um ser fluídico, estranho à humanidade material, circunstância que deveria ser ratificada 50 anos depois e explicada pelo Espiritismo, cujas doutrinas confirmava, ao mesmo tempo que devia fornecer um assunto de estudo.
Sabe-se que nestes últimos tempos a incredulidade procurou explicar as aparições por efeitos ópticos e que, quando apareceram no teatro fenômenos artificiais deste gênero, produzidos por uma combinação de espelhos e de luzes, houve um clamor geral na imprensa, para dizer: “Eis que descobrimos, enfim, o segredo de todas as aparições! É com o auxílio de semelhantes meios que essa crença absurda se espalhou em todos os tempos e que todas as pessoas crédulas foram vítimas de subterfúgios!”
Nós refutamos, como deveríamos, (Revista, julho de 1863), essa estranha explicação, digna rival do famoso músculo que range, do Dr. Jobert de Lamballe, que acusava todos os espíritas de loucos, e que ele próprio, ah! enlanguesceu durante vários anos num hospício de alienados. Mas perguntaremos, no presente caso, por que e como os aparelhos dessa natureza, necessariamente complicados e volumosos, poderiam ter sido dispostos e manobrados num campo isolado de qualquer habitação, e onde Martin se achava absolutamente só, sem que ele de nada se tivesse apercebido? Como esses mesmos aparelhos, que funcionam no escuro, com o auxílio de luzes artificiais, poderiam ter produzido uma imagem em pleno sol? Como poderiam ter sido instantaneamente transportados para o porão, para o celeiro, lugares geralmente pouco equipados para a produção de tais efeitos, para uma igreja, e da igreja seguir Martin até a sua casa, sem que ninguém notasse? Estas espécies de imagens artificiais são vistas por todos os espectadores. Como é que dentro da igreja e ao sair da igreja somente Martin viu o indivíduo? Dirão que ele nada viu, mas que, de boa-fé, foi vítima de uma alucinação? Essa explicação é desmentida pelo fato material das revelações feitas ao rei e que, como se verá, não podiam ser do conhecimento prévio de Martin. Há nisso um resultado positivo, material, que não é do campo das ilusões.
O cura de Gallardon, a quem Martin relatava fielmente as aparições, e que as anotava com exatidão, julgou que deveria determinar que ele fosse ver o seu bispo, em Versalhes, para o qual lhe deu uma carta de recomendação circunstanciada. Uma vez lá, Martin repetiu tudo quanto havia visto, e depois de diversas perguntas, o bispo o encarregou de perguntar ao desconhecido, de sua parte, se ele aparecesse novamente, o seu nome, quem era ele e por quem era enviado, recomendando-lhe que tudo dissesse ao seu cura.
Alguns dias depois da volta de Martin, o senhor cura recebeu uma carta de seu bispo, pela qual lhe testemunhava que o homem que ele lhe tinha mandado parecia ter muita lucidez acerca do importante objetivo em questão. A partir desse momento estabeleceu-se uma correspondência contínua entre o bispo e o cura de Gallardon. O Monsenhor, por seu lado, dada a gravidade da primeira aparição, achou que deveria fazer dela um caso ministerial e de polícia; em consequência, enviava cada relatório que recebia do senhor cura ao Sr. Descazes, ministro da polícia geral.
Na terça-feira 30 de janeiro, o desconhecido apareceu de novo a Martin e lhe disse:
─ Sua missão foi bem iniciada, mas os que a têm em suas mãos dela não se ocupam; eu estava presente, embora invisível, quando você fez a sua declaração; foi-lhe dito para perguntar meu nome e da parte de quem eu vinha; meu nome ficará desconhecido, e aquele que me enviou (mostrando o céu) está acima de mim.
─ Como vos dirigis sempre a mim, para uma missão como esta, eu que sou apenas um campônio? Há tanta gente de espírito!
─ É para abater o orgulho, disse o desconhecido, mostrando a terra; de sua parte, você não deve orgulhar-se do que viu e ouviu, porque o orgulho desagrada soberanamente a Deus; pratique a virtude; assista aos ofícios que se fazem em sua paróquia aos domingos e nos feriados; evite os cabarés e as más companhias, onde se comete toda sorte de impurezas e onde há toda sorte de más conversas. Não faça nenhum carreto aos domingos e dias de festa.
Durante o mês de fevereiro, o desconhecido apareceu várias vezes a Martin e lhe disse, entre outras coisas:
─ Persista, ó meu amigo, e conseguirá. Você aparecerá diante da incredulidade e a confundirá. Tenho mais uma coisa a lhe dizer que os convencerá e eles nada terão a responder. Apresse a sua missão; eles não fazem nada do que lhe tenho dito; aqueles que têm o caso em suas mãos estão embriagados de orgulho; a França está em estado de delírio; ela será entregue a toda sorte de desgraças. Você irá encontrar o rei e dir-lhe-á o que eu anunciei; ele poderá admitir consigo seu irmão e seus sobrinhos. Quando você estiver diante do rei, eu revelarei coisas secretas do tempo de seu exílio, mas cujo conhecimento só lhe será dado no momento em que você for levado à sua presença.
Neste meio tempo o Sr. Conde de Breteuil, Prefeito de Chartres, recebeu uma carta do ministro da polícia geral, que o convidava a verificar “se essas aparições dadas como miraculosas não passavam de imaginação de Martin, uma verdadeira ilusão de seu espírito exaltado, ou enfim se o pretenso enviado desconhecido, e talvez o próprio Martin, não deveriam ser severamente examinados pela polícia e em seguida entregues ao tribunais”.
No dia 5 de março Martin recebeu a visita de seu desconhecido, que lhe disse:
─ Em breve você vai aparecer perante o primeiro magistrado de seu departamento; é preciso que você relate as coisas como lhe são anunciadas; é preciso não considerar nem a qualidade nem a dignidade.
Martin não havia sido informado que devia ir ao prefeito; não há aqui, pois, uma simples comunicação sobre uma coisa vaga, é a previsão de um fato que vai acontecer. Isto é constantemente repetido na sequência desses acontecimentos; Martin sempre foi informado por seu desconhecido do que iria acontecer, das pessoas em cuja presença ele iria se encontrar, dos lugares aonde ele seria conduzido. Ora, isto não é resultado da ilusão e de ideias quiméricas. Se o indivíduo diz a Martin que no dia seguinte ele verá tal pessoa, ou será conduzido a tal lugar, e a coisa se realiza, é um fato positivo que não pode provir da imaginação.
No dia seguinte, 6 de março, acompanhado pelo Sr. Cura, Martin foi ver o prefeito, em Chartres. A princípio este conversou longamente em particular com o cura; depois mandou entrar Martin e lhe perguntou:
─ Mas se eu o algemasse e o metesse na prisão por anunciar semelhantes coisas, você continuaria a dizer o que diz?
Martin respondeu sem se intimidar:
─ Como quiserdes; não posso dizer senão a verdade.
─ Mas, prosseguiu o Sr. Prefeito, se você aparecesse ante uma autoridade superior à minha, perante o ministro, por exemplo, sustentaria o que me acaba de dizer?
─ Sim, senhor, replicou Martin, e diante do próprio rei.
O prefeito, surpreso por tanta segurança a par de tanta simplicidade, e mais ainda pelos estranhos relatos que lhe havia feito o cura, decidiu enviar Martin ao ministro.
No dia seguinte, 7 de março, Martin partia para Paris escoltado pelo Sr. André, tenente de polícia, que tinha ordem de vigiar todos os seus passos e de não deixá-lo nem de dia nem de noite. Hospedaramse na Rua Montmartre, hotel de Calais, num quarto de dois leitos.
Na sexta-feira, 5 de março, o Sr. André conduziu Martin ao quartel da polícia geral. Entrando no pátio, o desconhecido lhe apareceu e disse:
─ Você vai ser interrogado de várias maneiras; não tema, nem se inquiete, mas diga as coisas como elas são.
Depois destas palavras, desapareceu.
Não relataremos aqui todos os interrogatórios a que submeteram Martin o ministro e os seus secretários, sem que ele se deixasse intimidar pelas ameaças, nem desconcertar pelas armadilhas que lhe armaram para fazê-lo cair em contradição consigo mesmo, vencendo seus interrogadores por suas respostas cheias de senso e de sangue-frio. Tendo Martin descrito seu desconhecido, o ministro lhe disse:
─ Ora! Você não o verá mais, porque acabo de prendê-lo.
─ Eh! Como pudestes prendê-lo, redarguiu Martin, pois ele desaparece como um relâmpago?
─ Se desaparece para você, não desaparece para todo o mundo.
E dirigindo-se a um de seus secretários:
─ Ide ver se o homem que mandei prender ainda lá está.
Alguns instantes depois o secretário voltou e respondeu:
─ Senhor, ele continua lá.
─ Bem! disse Martin, se o prendestes e me mostrardes, eu certamente o reconhecerei. Eu o vi muitas vezes para poder reconhecê-lo.
A seguir veio um homem que examinou minuciosamente a cabeça de Martin, afastando os cabelos para a esquerda e para a direita. O próprio ministro também a examinou, sem dúvida para ver se tinha qualquer sinal indicador de loucura, ao que Martin se contentava em dizer:
─ Olhai quanto quiserdes. Eu jamais adoeci em minha vida! Quando chegou ao hotel, à noite, Martin disse ao Sr. André:
─ Mas o ministro me tinha dito que havia posto na prisão o homem que me aparecia. Então ele o soltou, pois me apareceu depois e me disse:
─ Você foi interrogado hoje, mas não querem fazer o que eu disse. Aquele que você viu de manhã quis fazer você acreditar que me havia prendido. Pode dizer-lhe que ele não tem nenhum poder sobre mim e que já é tempo para o rei ser avisado.
No mesmo instante o Sr. André foi fazer o seu relato à polícia, enquanto Martin, sem inquietude, deitou-se e dormiu pacificamente.
No dia seguinte, 9, tendo Martin descido para pedir as botas do tenente, o desconhecido se apresentou no meio da escada e lhe disse:
─ Você vai ser visitado por um médico que deseja verificar se você tem a imaginação descompensada e se perdeu a razão, mas os que o enviam são mais loucos que você.
Com efeito, no mesmo dia o célebre alienista Sr. Pinel veio visitá-lo e submeteu-o a um interrogatório adequado a esse gênero de informações. “A despeito de sua habilidade”, diz o relatório, “ele não pôde conseguir nenhuma indicação, por menor que fosse, de provável alienação. Suas pesquisas não conduziram senão a uma simples conjectura de possibilidade de alucinação e de mania intermitente”.
Parece que para certas pessoas nada mais é preciso para ser taxado de loucura, além de não pensar como eles. Eis por que os que creem em alguma coisa do outro mundo passam por loucos aos olhos dos que em nada creem.
Depois da visita do Dr. Pinel, o desconhecido apresentou-se a Martin e lhe disse:
─ É preciso que você vá falar com o rei. Quando estiver em sua presença eu lhe inspirarei o que terá que lhe dizer. Eu me sirvo de você para abater o orgulho e a incredulidade. Eles estão tentando descartar o problema, mas se você não realizar a sua tarefa ela será descoberta por outros caminhos.
A 10 de março, estando Martin só em seu quarto, o desconhecido lhe apareceu e disse:
─ Eu lhe havia dito que meu nome ficaria ignorado, mas considerando-se que a incredulidade é tão grande, é preciso que lhe revele o meu nome. Eu sou o anjo Rafael, anjo muito célebre junto a Deus. Eu tenho o poder de ferir a França com toda a sorte de flagelos.
A estas palavras, Martin foi tomado de pavor e experimentou uma espécie de crispação.
Um outro dia, tendo o Sr. André saído com Martin, encontrou um oficial seu amigo, com o qual conversou durante uma hora em inglês, que naturalmente Martin não entendia. No dia seguinte, o desconhecido, que ele agora chama o anjo, lhe disse:
─ Os que ontem estavam com você falaram a seu respeito, mas você não entendia sua linguagem. Eles disseram que você vinha para falar com o rei, e um deles pediu que quando voltasse à sua terra o outro lhe desse notícias, para ele saber como a coisa se teria passado.
O Sr. André, a quem Martin dava conta de toda a conversa com o desconhecido, ficou muito surpreendido por ver que o que tinha dito em inglês, para não ser por ele entendido, estava descoberto.
Embora o relatório do Dr. Pinel não concluísse pela loucura, mas apenas por uma possibilidade de alucinação, Martin não deixou de ser levado ao hospício de Charenton, onde ficou de 13 de março a 2 de abril. Lá foi objeto de minuciosa vigilância e submetido ao estudo especial dos especialistas. Igualmente fizeram inquéritos em sua terra, quanto aos seus antecedentes e aos de sua família, sem que, malgrado todas as investigações, tivessem constatado a menor aparência ou causa predeterminante de loucura. A bem da verdade, é preciso dizer que ele ali foi constantemente tratado com muito carinho da parte do Sr. Royer-Collard, diretor chefe da casa, e por outros médicos, e que não o submeteram a nenhum desses tratamentos em uso nesse tipo de estabelecimentos. Se ali foi colocado, era muito menos por medida de sequestro do que para ter mais facilidade de observar o seu real estado de espírito.
Durante sua estada em Charenton, ele recebeu visitas muito frequentes de seu desconhecido, as quais não apresentaram nenhuma particularidade notável, a não ser esta em que lhe disse:
─ Haverá discussões: uns dirão que é imaginação, outros que é um anjo de luz, e outros que é um anjo das trevas. Eu permito que você me toque.
Então, contou Martin, ele me apertou a mão direita; depois abriu o casaco pela frente e, quando este estava aberto, pareceu-me mais brilhante que os raios do sol e não pude encará-lo; fui obrigado a pôr a mão em frente aos olhos. Quando ele fechou o casaco, nada mais vi brilhando; ele me pareceu como antes. Esse abrir e fechar se operaram sem nenhum movimento de sua parte.
Outra vez, quando escrevia ao seu irmão, ele viu a seu lado o desconhecido, que lhe ditou uma parte da carta, lembrando as predições que havia feito sobre as desgraças de que a França estava ameaçada. Eis, pois, Martin ao mesmo tempo médium vidente e escrevente.
Por mais cuidado que tivessem tido para que não houvesse vazamento do caso, ele não deixou de produzir uma certa sensação nas altas camadas oficiais. Entretanto, é provável que não tivesse atingido o objetivo se o arcebispo de Reims, grande esmoler da França, depois arcebispo de Paris e cardeal de Périgord, por ele não se tivesse interessado. Ele falou com Luís XVIII e lhe propôs receber Martin. O rei lhe declarou que nada tinha ouvido ainda, tanto é certo que muitas vezes os soberanos são os últimos a saber o que se passa em seu redor e que mais lhes interessa. Em consequência, ordenou que Martin lhe fosse apresentado.
A 2 de abril Martin foi conduzido de Charenton à casa do ministro da polícia geral. Enquanto esperava o momento de ser recebido, seu desconhecido lhe apareceu e disse:
─ Você vai falar com rei e ficará sozinho com ele; não tenha nenhum receio de aparecer diante do rei; para o que terá que lhe dizer, as palavras lhe virão à boca.
Foi a última vez que o viu. O ministro lhe fez uma acolhida muito benevolente e disse que ia mandar levá-lo às Tulherias.
Geralmente acredita-se que Martin veio por conta própria a Paris, apresentou-se no castelo, insistindo para falar com o rei; que tendo sido repelido, voltou à carga com tanta persistência que Luís XVIII, tendo sido informado, mandou que entrasse. Como vimos, as coisas passaram de outro modo. Só em 1828, quatro anos após a morte do rei, ele deu a conhecer as particularidades secretas que lhe foram reveladas e lhe causaram profunda impressão, pois tal era o objetivo essencial dessa visita, sendo que os outros motivos alegados, como dissemos, não passaram de um meio de chegar a ele. Seu desconhecido lhe deixou ignorar essas coisas até o último momento, com receio de que uma indiscrição arrancada por artifício dos interrogatórios levasse o projeto ao fracasso, o que inevitavelmente teria ocorrido.
Depois de sua visita ao rei, Martin foi dizer seu adeus ao diretor de Charenton e partiu imediatamente para a sua terra, onde retomou o curso habitual de seus trabalhos, sem jamais atribuir-se mérito pelo que lhe havia acontecido.
O objetivo a que nos propúnhamos neste relato era demonstrar os pontos pelos quais ele se liga ao Espiritismo. Sendo as particularidades relatadas a Luís XVIII estranhas ao nosso assunto, abster-nosemos de relatá-las. Diremos apenas que elas se referiam a coisas de família da maior intimidade; comoveram o rei a ponto de fazê-lo chorar muito, e ele declarou mais tarde que as coisas que lhe tinham sido reveladas só eram conhecidas por Deus e por ele. Elas tiveram por consequência fazer renunciar à sagração cujos preparativos já haviam sido ordenados[1].
Não relataremos nesta entrevista senão algumas passagens da ata de 1828, ditada pelo próprio Martin, e onde se revela o caráter e a simplicidade do homem.
“Chegamos às Tulherias pelas três horas, sem que ninguém houvesse dito qualquer coisa. Chegamos até o primeiro criado de Luís XVIII, a quem entregamos a carta e que, depois de a ter lido, me disse: ‘Sigam-me.’ Paramos alguns momentos, porque o Sr. Decazes estava com o rei. Quando o ministro saiu eu entrei, e antes que dissesse uma palavra, o rei disse ao criado que se retirasse e fechasse as portas.
“O rei estava sentado à sua mesa, diante da porta; havia penas, papel e livros. Saudei o rei dizendo: “─ Senhor, eu vos saúdo.
“O rei me disse:
“─ Bom dia, Martin.
“E eu disse para mim mesmo: Ela sabe o meu nome.
“─ Vós sabeis, Senhor, certamente, por que eu venho.
“─ Sim, sei que você tem qualquer coisa a me dizer e disseram-me que era algo que só podeis dizer a mim. Sente-se.
“Então eu me sentei numa poltrona em frente ao rei de modo que havia a mesa entre nós. Então lhe perguntei como passava. O rei me disse:
“─ Passo um pouco melhor do que nos últimos dias; e você, como vai? “─ Eu estou bem.
“─ Qual o assunto de sua viagem?
“E eu lhe disse:
“─ Podeis mandar chamar, se quiserdes, vosso irmão e seus filhos.
“O rei me interrompeu, dizendo:
“─ É inútil, eu lhes direi o que você tiver que me dizer.
“Depois disto, eu contei ao rei todas as aparições que eu tinha tido e que estão no relato.
“─ Eu sei de tudo isto; o arcebispo de Reims me disse tudo, mas parece que você tem algo a me dizer em particular e em segredo.
“Então senti virem à minha boca as palavras que o anjo me havia prometido, e disse ao rei:
“─ O segredo que tenho a vos dizer é que... (Seguem detalhes que, como as instruções dadas na continuação da conversa, sobre certas medidas a tomar e a maneira de governar, não podiam senão ser inspiradas no momento, pois estão fora do alcance do grau de cultura de Martin).
“Foi a esse relato que o rei, tocado de espanto e profundamente comovido, disse:
“─ Ó meu Deus! Ó meu Deus! Isto é muito verdadeiro; só Deus, você e eu sabemos disto; prometame guardar o maior segredo sobre todas estas comunicações.
“E eu lhe prometi, e depois lhe disse:
“─ Evitai fazer-vos sagrar, porque se o tentásseis, seríeis ferido de morte na cerimônia da sagração. “Desse momento até o fim da conversa o rei chorava sem parar.
“Quando eu terminei, ele me disse que o anjo que me havia aparecido era o que conduzia o jovem Tobias a Rages e que o fez casar. Depois perguntou qual de minhas mãos o anjo havia apertado.
“─ Esta, respondi, mostrando a direita. O rei ma tomou, dizendo:
“─ Que eu toque a mão que o anjo apertou. Ore sempre por mim.
“─ Certamente, Senhor; eu e minha família, assim como o Sr. cura de Gallardon, temos sempre orado para que as coisas saíssem bem.
“Saudei o rei, dizendo-lhe:
“─ Eu vos auguro boa saúde. Disseram-me que uma vez cumprida minha missão junto ao rei, eu vos pedisse permissão para voltar à minha família, e me foi anunciado que não me recusaríeis e que não me aconteceria nenhum transtorno, nem nenhum mal.
“─ Nada mais lhe acontecerá. Dei ordens para que o mandassem de volta. O ministro vai lhe dar jantar e leito e papéis para você voltar amanhã.
“─ Mas eu ficaria contente se voltasse a Charenton para lhes dizer adeus e apanhar uma camisa que deixei lá.
“─ Não lhe é incômodo ficar em Charenton? Esteve bem lá?
“─ Incômodo nenhum, e certamente se lá não tivesse estado bem, não pediria para lá voltar.
“─ Então, já que é seu desejo lá voltar, o ministro o fará conduzir em meu nome.
“Voltei a encontrar o meu condutor, que me esperava, e fomos juntos à casa do ministro.
“Feito em Gallardon, a 9 de março de 1828.
“Assinado: THOMAS MARTIN”
A conversa de Martin com o rei durou pelo menos 55 minutos.
Se depois de sua visita ao rei, Martin não mais viu o seu desconhecido, as manifestações não deixaram de continuar sob outra forma. De médium vidente, ele tornou-se auditivo. Eis alguns fragmentos de cartas que ele escrevia ao antigo cura de Gallardon:
28 de janeiro de 1821
“Senhor cura, escrevo para vos dar conhecimento de uma coisa que me aconteceu. Terça-feira última, 23 de janeiro, quando arava no campo, ouvi uma voz que me chamou, sem ter visto ninguém, e disse-me: ‘Filho de Japhet! Para e presta atenção às palavras que te são dirigidas.’ No mesmo instante os meus cavalos pararam, sem que nada eu tivesse dito, porque estava muito surpreso. Eis o que me disse: ‘Nesta grande região uma árvore está plantada e, na mesma camada, está plantada uma outra que é inferior à primeira; a segunda árvore tem dois galhos, dos quais um feneceu e logo depois secou por causa de um vento furioso, e esse vento não cessou de soprar. No lugar desse galho surgiu outro, novo, tenro, que o substituiu; mas esse vento, que é sempre agitado, elevar-se-á um dia com tais abalos que... e depois dessa catástrofe espantosa, os povos estarão na última desolação. Ora, meu filho, para que esses dias sejam abreviados; invoca o Céu para que o vento fatal que sairá do noroeste seja barrado por barreiras poderosas, e que seus progressos nada tenham de danosos. Estas coisas são obscuras para ti, mas outros as compreenderão facilmente.’
“Eis, senhor, o que me aconteceu na terça-feira, cerca de uma hora da tarde. Não compreendo nada disto. Vós me direis se compreendeis alguma coisa. A ninguém falei de tudo isto, nem mesmo à minha mulher, porque o mundo é mau. Estava decidido a guardar tudo isto em silêncio, mas me decidi a vos escrever hoje, porque esta noite não pude dormir, e tenho tido sempre essas palavras na memória. Peçovos guardá-las em segredo, porque o mundo zombaria delas. Senhor, trataram-me de filho de Japhet. Não conheço ninguém em nossa família com este nome. Talvez ele se tenha enganado; talvez me tivesse tomado por outro.”
8 de fevereiro de 1821
“Eu vos tinha proibido de falar do que vos contei. Estava errado, porque isto não pode ficar oculto. Necessariamente é preciso que isto passe diante dos grandes e dos primeiros do Estado, para que se veja o perigo de que estão ameaçados, pois o vento de que vos falei dentro em pouco vai fazer terríveis desastres, porque esse vento sopra sempre em torno da árvore. Se não prestarem atenção a isto, dentro em pouco ela será arrancada. No mesmo momento, outra árvore, com o que dela sai experimentará a mesma sorte. Ontem a mesma voz me veio falar, e nada vi.”
21 de fevereiro de 1821
“Senhor, esta manhã tive um grande pavor. Eram nove horas. Ouvi um grande ruído junto a mim e nada vi, mas ouvi falar, depois de cessado o ruído, e disseram-me: ‘Por que tivestes medo? Não temais; não venho fazer mal algum. Estais surpreso por ouvir e nada ver; não vos admireis; é preciso que as coisas sejam descobertas. Eu me sirvo de vós para vos enviar, como sou enviado. Os filósofos, os incrédulos, os ímpios não creem que suas manobras sejam vistas, mas é preciso que sejam confundidos... Ficai tranquilo, continuai a ser o que tendes sido; vossos dias estão contados e não vos escapará um só. Eu vos proíbo de vos prosternardes diante de mim, porque sou apenas um servo como vós.’
“Senhor, eis o que me foi dito. Não sei qual a pessoa que me fala; ele tem a voz bastante forte e muito clara. Pensei em falar, mas não ousei, porque não vejo ninguém.”
Resta saber qual é a individualidade do Espírito que se manifestou. Era realmente o anjo Rafael? É mesmo permitido duvidar e haveria muito a dizer contra tal opinião. Mas, em nossa opinião, esta é uma questão muito secundária. O fato capital é o da manifestação, da qual não se poderia duvidar e da qual todos os incidentes têm sua razão de ser pelo resultado proposto e hoje têm o seu lado instrutivo.
Um fato que sem dúvida não terá escapado a ninguém é esta palavra de Martin, a respeito de uma soma que lhe ofereceram: “Como a coisa não vem de mim, nada devo receber por isto.” Eis, pois, um simples camponês, médium inconsciente que, há cinquenta anos, época na qual se estava longe de pensar no Espiritismo, tem, por si mesmo, a intuição dos deveres impostos pela mediunidade, da santidade deste mandato. Seu bom-senso, sua lealdade natural lhe fazem compreender que o que vem de uma fonte celeste e não de si, não deve ser pago.
Talvez se admirem das dificuldades que encontrou Martin para desempenhar a missão de que estava encarregado. Perguntarão por que os Espíritos não o fizeram chegar diretamente ao rei? Essas dificuldades, essa lentidão, como dissemos, tiveram sua utilidade. Era preciso que ele passasse por Charenton, onde sua razão foi submetida às investigações mais rigorosas da ciência oficial e pouco crédula, para que fosse constatado que não era louco nem exaltado. Como se viu, os Espíritos triunfaram dos obstáculos preparados pelos homens; mas como os homens têm o seu livre-arbítrio, eles não podiam impedi-los de pôr entraves.
Notemos, a propósito, que Martin, por assim dizer, não fez, por si mesmo, nenhum esforço para chegar ao rei. As circunstâncias a isso o conduziram quase que malgrado seu, e sem que ele tivesse necessidade de insistir muito. Ora, essas circunstâncias evidentemente foram conduzidas pelos Espíritos, agindo sobre o pensamento dos encarnados, porque a missão de Martin era séria e devia realizar-se.
Dá-se o mesmo em todos os casos análogos. Além da questão de prudência, é evidente que, sem as dificuldades que existem de chegar até eles, os soberanos seriam assaltados por pretensos reveladores. Nestes últimos tempos, quantas pessoas se julgaram chamadas a semelhantes missões, que não eram senão o resultado de obsessões, em que o seu orgulho era posto em jogo, malgrado seu, e não podiam chegar senão a mistificações! A todos os que julgaram dever consultar-nos em semelhantes casos, sempre dissemos, demonstrando-lhes os sinais evidentes pelos quais se traem os Espíritos mentirosos: “Guardaivos de qualquer manobra que infalivelmente vos levaria à confusão. Ficai certos de que se vossa missão for real, sereis postos em condições de realizá-la; que se tiverdes de vos encontrar, num dado momento, num certo lugar, aí sereis conduzido, malgrado vosso, por circunstâncias que terão a aparência de um efeito do acaso. Além disto, tende a certeza que quando uma coisa está nos desígnios de Deus, é forçoso que ela se realize, e que ele não subordina a sua realização à boa ou má vontade dos homens. Desconfiai das missões anunciadas e pregadas por antecipação, porque não passam de engodos para o orgulho; as missões se revelam por fatos. Desconfiai também das predições com dia e hora certa, porque elas jamais procedem de Espíritos sérios.” Temos sido bastante felizes ao deter mais de uma, nas quais os acontecimentos puderam provar a prudência destes conselhos.
Como se vê, há mais de uma similitude entre estes fatos e os de Joana d’Arc, não que haja qualquer comparação a estabelecer quanto à importância dos resultados obtidos, mas quanto à causa do fenômeno, que é exatamente a mesma e, até um certo ponto, quanto ao objetivo. Como Joana d’Arc, Martin foi advertido por um ser do mundo espiritual para ir falar ao rei para salvar a França de um perigo e, também como ela, não foi sem dificuldade que chegou até ele. Contudo, há entre as duas manifestações a diferença que Joana d’Arc apenas ouvia a voz que a aconselhava, ao passo que Martin via constantemente o indivíduo que lhe falava, não em sonho ou em sonho extático, mas sob a aparência de um ser vivo, como seria um agênere.
Mas, de outro ponto de vista, os fatos acontecidos a Martin, embora menos retumbantes, não tiveram menor alcance como prova da existência do mundo espiritual e de suas relações com o mundo corporal e porque, sendo contemporâneos e de incontestável notoriedade, não podem ser postos no rol das histórias lendárias. Por sua repercussão, eles serviriam de balizas ao Espiritismo que devia, poucos anos depois, confirmar a sua possibilidade por uma explicação racional e pela lei em virtude da qual se produzem, e fazê-los passar do domínio do maravilhoso para o dos fenômenos naturais. Graças ao Espiritismo, não há uma só das fases que as revelações de Martin apresentaram das quais não possamos dar conta perfeitamente.
Martin era um médium inconsciente, dotado de uma aptidão de que se serviram os Espíritos, como de um instrumento, para chegar a um resultado determinado, e esse resultado estava longe de estar inteiro na revelação feita a Luís XVIII. O Espírito que se manifestou a Martin o caracteriza perfeitamente, dizendo: “Eu me sirvo de você para abater o orgulho e a incredulidade.” Esta missão é a de todos os médiuns destinados a provar, por fatos de todos os gêneros, a existência do mundo espiritual e de uma força superior à Humanidade, porque tal é o objetivo providencial das manifestações. Acrescentaremos que o próprio rei foi um instrumento nesta circunstância. Era preciso uma posição tão elevada quanto a sua, a própria dificuldade de a ele chegar, para que o caso tivesse repercussão e à autoridade de uma coisa oficial. As minuciosas investigações a que Martin foi submetido só podiam aumentar a autenticidade dos fatos, porque não tomariam todas estas precauções para um simples particular; a coisa teria passado quase despercebida, ao passo que ainda hoje dela nos recordamos e ela fornece uma prova autêntica em apoio aos fenômenos espíritas.
[1] Os detalhes circunstanciados e as provas em apoio se acham numa obra intitulada: O passado e o futuro explicados pelos acontecimentos extraordinários ocorridos a Thomas Martin trabalhador de Beauce. ─ Paris, 1832, BRICON livreiro, Rua du Vieux-Colombier, 19; Marselha, mesma casa, Rua du Saint-Sépulcre, 17. Esta obra está esgotada e é hoje muito rara.
Thomas-Ignace Martin era um pequeno trabalhador do burgo de Gallardon, situado a quatro léguas de Chartres. Nascido em 1783, ele tinha, consequentemente, trinta e três anos quando se deram os acontecimentos que vamos relatar. Morreu a 8 de maio de 1834. Era casado, pai de quatro filhos em tenra idade e gozava em sua comuna da reputação de um homem perfeitamente honesto. Os relatórios oficiais o pintam como um homem de bom-senso, embora de grande ingenuidade, por força de sua ignorância das coisas mais vulgares; de caráter brando e pacífico, não se metia em nenhuma intriga; de uma retidão perfeita em todas as coisas e de completo desinteresse, de que deu numerosas provas, o que exclui toda ideia de ambição de sua parte.
Assim, quando voltou à sua aldeia após a visita ao rei, retomou as suas ocupações habituais como se nada tivesse havido, evitando mesmo falar do que lhe tinha acontecido. Ao partir para Paris, o diretor do hospício de Charenton teve um trabalho imenso para fazê-lo aceitar 25 francos para as despesas de viagem. No ano seguinte, estando sua mulher grávida de um quinto filho, uma pessoa distinta por sua posição e que sabia de seus parcos recursos, mandou propor, por um terceiro, 150 francos para cobrir as necessidades nessa circunstância. Martin recusou, dizendo: “Não pode ser que por causa destas coisas que me acontecem sempre me ofereçam dinheiro, porque sem isto não falariam de mim, nem mesmo me conheceriam. Mas como a coisa não vem de mim, nada devo receber por isto. Assim, agradecei a essa pessoa porque, embora eu não seja rico, nada quero receber.” Em outras circunstâncias recusou somas mais consideráveis que o teriam deixado em situação confortável.
Martin era simples, mas não era nem crédulo nem supersticioso; praticava seus deveres religiosos escrupulosamente, mas sem exagero ou ostentação e sempre no justo limite do necessário, visitando o seu cura no máximo uma vez por ano. Não havia nele, consequentemente, nem hipocrisia nem superexcitação religiosa. Nada em seus hábitos e em seu caráter era de natureza a exaltar-lhe a imaginação. Ele tinha visto com prazer a volta dos Bourbons, mas sem se ocupar de política de modo algum e sem entrar em qualquer partido. Dedicado inteiramente ao trabalho do campo desde a infância, não lia livros nem jornais.
Compreende-se facilmente a importância destas informações sobre o caráter de Martin no caso de que se trata. Desde que um homem não é movido nem pelo interesse, nem pela ambição, nem pelo fanatismo, nem pela credulidade supersticiosa, ele adquire sérios direitos à confiança. Ora, eis como, sumariamente, se passaram os acontecimentos que lhe advieram.
A 15 de janeiro de 1816, pelas duas e meia da tarde, ele estava ocupado em apagar uma queimada num campo a três quartos de légua de Gallardon, num recanto muito deserto, quando de repente se lhe apresentou um homem de cerca de cinco pés e uma ou duas polegadas, corpo delgado, rosto afilado, delicado e muito branco, vestindo uma levita ou casaco dourado, totalmente abotoado e caindo até os pés, com sapatos amarrados com cordões e com um chapéu redondo de copa alta. Esse homem disse a Martin:
“É preciso que va encontrar o rei e lhe dizer que sua pessoa está em perigo, bem como a dos príncipes; que gente má ainda tenta derrubar o governo; que vários escritos ou cartas já circularam em algumas províncias de seus Estados a esse respeito; que é preciso que ele faça uma apuração criteriosa e geral em todos esses Estados e, sobretudo, na capital; que também é preciso que ele reabilite o dia do Senhor, a fim de que o santifiquem; que esse dia santo é desconhecido por grande parte de seu povo; é preciso que ele faça cessar os trabalhos públicos nesses dias; que faça ordenar preces públicas pela conversão do povo; que o estimule à penitência; que sejam abolidas e aniquiladas todas as desordens que se cometem nos dias que precedem a santa quaresma; sem todas estas coisas a França cairá em novas desgraças.”
Um pouco surpreendido pela aparição súbita, Martin lhe respondeu:
─ Mas bem podeis ir encontrar outros que não eu, para uma missão como esta. Imagine que eu iria falar com rei com mãos assim (sujas de excrementos)!
─ Não, replicou o desconhecido, é você que irá.
─ Mas, replicou Martin, se sabeis tanto, bem podeis ir vós mesmo procurar o rei e lhe dizer tudo isto. Por que vos dirigis a um homem pobre como eu, que nem sabe explicar-se?
─ Não serei eu quem irá, disse-lhe o desconhecido, é você; preste atenção ao que digo e você fará tudo o que ordeno.
Depois destas palavras, Martin o viu desaparecer mais ou menos assim: Seus pés pareceram elevarse do solo, a cabeça baixar e o corpo, se apequenando, acabou por desaparecer à altura da cintura, como se tivesse evaporado no ar. Mais espantado por esta maneira de desaparecer do que pela aparição súbita, Martin quis ir embora, mas não pôde; ele ficou, malgrado seu, e voltou à sua tarefa, que devia durar duas horas e meia mas não durou senão uma hora e meia, o que dobrou o seu espanto.
Talvez achem pueris certas recomendações que Martin deveria fazer ao rei, sobretudo quanto à guarda do domingo, tendo em vista o meio aparentemente sobrenatural empregado para transmiti-las e as dificuldades que esse cometimento deveria encontrar. Mas é provável que não fosse senão uma espécie de passaporte para chegar a ele, porque o objetivo principal da revelação, que era de altíssima gravidade, não deveria ser conhecido, como se verá mais tarde, senão no momento da entrevista. O essencial era que Martin pudesse chegar ao rei, e para isto a intervenção de alguns membros do alto clero era necessária. Ora, sabe-se da importância que o clero liga à guarda do domingo; como o soberano não se daria conta quando a voz do Céu ia fazer-se ouvir por um milagre? Convinha, pois, incentivar Martin, em vez de desencorajá-lo. Contudo, era preciso que as coisas marchassem por si mesmas.
Martin apressou-se em contar ao seu irmão o que lhe havia acontecido e ambos foram comunicá-lo ao cura da paróquia, o Sr. Laperruque, que se esforçou por dissuadir Martin e a atribuir a coisa à conta de sua imaginação.
No dia 18, às seis horas da tarde, tendo Martin descido ao porão para apanhar umas batatas, o mesmo indivíduo lhe apareceu de pé, ao seu lado, enquanto ele estava ajoelhado, ocupado em apanhá-las. Apavorado, ele largou ali mesmo a vela e fugiu. No dia 18, nova aparição à entrada de um lagar, e Martin fugiu novamente.
No domingo, 21 de janeiro, Martin entrava na igreja à hora das vésperas; quando tomava água benta, percebeu o desconhecido, que também a tomava e que o seguiu até a entrada de seu banco. Durante toda a duração do ofício ele esteve muito recolhido e Martin notou que ele não tinha o chapéu na cabeça nem nas mãos. Ao sair da igreja ele o seguiu até a sua casa, caminhando ao seu lado, com o chapéu na cabeça. Quando chegaram no portão, o homem de repente postou-se diante dele, face a face, e lhe disse:
─ Cumpra a sua missão e faça o que eu lhe disse; você não ficará tranquilo enquanto a sua missão não for cumprida.
Depois de pronunciar essas palavras, desapareceu, sem que nem dessa vez nem nas aparições seguintes Martin o tivesse visto extinguir-se gradualmente, como da primeira vez. A 24 de janeiro, nova aparição no celeiro, seguida destas palavras:
─ Faça o que eu mando; já é tempo.
Notemos estes dois modos de desaparecimento: o primeiro, que não poderia ser o caso de um ser corporal em carne e osso, sem dúvida tinha por objetivo provar que era um ser fluídico, estranho à humanidade material, circunstância que deveria ser ratificada 50 anos depois e explicada pelo Espiritismo, cujas doutrinas confirmava, ao mesmo tempo que devia fornecer um assunto de estudo.
Sabe-se que nestes últimos tempos a incredulidade procurou explicar as aparições por efeitos ópticos e que, quando apareceram no teatro fenômenos artificiais deste gênero, produzidos por uma combinação de espelhos e de luzes, houve um clamor geral na imprensa, para dizer: “Eis que descobrimos, enfim, o segredo de todas as aparições! É com o auxílio de semelhantes meios que essa crença absurda se espalhou em todos os tempos e que todas as pessoas crédulas foram vítimas de subterfúgios!”
Nós refutamos, como deveríamos, (Revista, julho de 1863), essa estranha explicação, digna rival do famoso músculo que range, do Dr. Jobert de Lamballe, que acusava todos os espíritas de loucos, e que ele próprio, ah! enlanguesceu durante vários anos num hospício de alienados. Mas perguntaremos, no presente caso, por que e como os aparelhos dessa natureza, necessariamente complicados e volumosos, poderiam ter sido dispostos e manobrados num campo isolado de qualquer habitação, e onde Martin se achava absolutamente só, sem que ele de nada se tivesse apercebido? Como esses mesmos aparelhos, que funcionam no escuro, com o auxílio de luzes artificiais, poderiam ter produzido uma imagem em pleno sol? Como poderiam ter sido instantaneamente transportados para o porão, para o celeiro, lugares geralmente pouco equipados para a produção de tais efeitos, para uma igreja, e da igreja seguir Martin até a sua casa, sem que ninguém notasse? Estas espécies de imagens artificiais são vistas por todos os espectadores. Como é que dentro da igreja e ao sair da igreja somente Martin viu o indivíduo? Dirão que ele nada viu, mas que, de boa-fé, foi vítima de uma alucinação? Essa explicação é desmentida pelo fato material das revelações feitas ao rei e que, como se verá, não podiam ser do conhecimento prévio de Martin. Há nisso um resultado positivo, material, que não é do campo das ilusões.
O cura de Gallardon, a quem Martin relatava fielmente as aparições, e que as anotava com exatidão, julgou que deveria determinar que ele fosse ver o seu bispo, em Versalhes, para o qual lhe deu uma carta de recomendação circunstanciada. Uma vez lá, Martin repetiu tudo quanto havia visto, e depois de diversas perguntas, o bispo o encarregou de perguntar ao desconhecido, de sua parte, se ele aparecesse novamente, o seu nome, quem era ele e por quem era enviado, recomendando-lhe que tudo dissesse ao seu cura.
Alguns dias depois da volta de Martin, o senhor cura recebeu uma carta de seu bispo, pela qual lhe testemunhava que o homem que ele lhe tinha mandado parecia ter muita lucidez acerca do importante objetivo em questão. A partir desse momento estabeleceu-se uma correspondência contínua entre o bispo e o cura de Gallardon. O Monsenhor, por seu lado, dada a gravidade da primeira aparição, achou que deveria fazer dela um caso ministerial e de polícia; em consequência, enviava cada relatório que recebia do senhor cura ao Sr. Descazes, ministro da polícia geral.
Na terça-feira 30 de janeiro, o desconhecido apareceu de novo a Martin e lhe disse:
─ Sua missão foi bem iniciada, mas os que a têm em suas mãos dela não se ocupam; eu estava presente, embora invisível, quando você fez a sua declaração; foi-lhe dito para perguntar meu nome e da parte de quem eu vinha; meu nome ficará desconhecido, e aquele que me enviou (mostrando o céu) está acima de mim.
─ Como vos dirigis sempre a mim, para uma missão como esta, eu que sou apenas um campônio? Há tanta gente de espírito!
─ É para abater o orgulho, disse o desconhecido, mostrando a terra; de sua parte, você não deve orgulhar-se do que viu e ouviu, porque o orgulho desagrada soberanamente a Deus; pratique a virtude; assista aos ofícios que se fazem em sua paróquia aos domingos e nos feriados; evite os cabarés e as más companhias, onde se comete toda sorte de impurezas e onde há toda sorte de más conversas. Não faça nenhum carreto aos domingos e dias de festa.
Durante o mês de fevereiro, o desconhecido apareceu várias vezes a Martin e lhe disse, entre outras coisas:
─ Persista, ó meu amigo, e conseguirá. Você aparecerá diante da incredulidade e a confundirá. Tenho mais uma coisa a lhe dizer que os convencerá e eles nada terão a responder. Apresse a sua missão; eles não fazem nada do que lhe tenho dito; aqueles que têm o caso em suas mãos estão embriagados de orgulho; a França está em estado de delírio; ela será entregue a toda sorte de desgraças. Você irá encontrar o rei e dir-lhe-á o que eu anunciei; ele poderá admitir consigo seu irmão e seus sobrinhos. Quando você estiver diante do rei, eu revelarei coisas secretas do tempo de seu exílio, mas cujo conhecimento só lhe será dado no momento em que você for levado à sua presença.
Neste meio tempo o Sr. Conde de Breteuil, Prefeito de Chartres, recebeu uma carta do ministro da polícia geral, que o convidava a verificar “se essas aparições dadas como miraculosas não passavam de imaginação de Martin, uma verdadeira ilusão de seu espírito exaltado, ou enfim se o pretenso enviado desconhecido, e talvez o próprio Martin, não deveriam ser severamente examinados pela polícia e em seguida entregues ao tribunais”.
No dia 5 de março Martin recebeu a visita de seu desconhecido, que lhe disse:
─ Em breve você vai aparecer perante o primeiro magistrado de seu departamento; é preciso que você relate as coisas como lhe são anunciadas; é preciso não considerar nem a qualidade nem a dignidade.
Martin não havia sido informado que devia ir ao prefeito; não há aqui, pois, uma simples comunicação sobre uma coisa vaga, é a previsão de um fato que vai acontecer. Isto é constantemente repetido na sequência desses acontecimentos; Martin sempre foi informado por seu desconhecido do que iria acontecer, das pessoas em cuja presença ele iria se encontrar, dos lugares aonde ele seria conduzido. Ora, isto não é resultado da ilusão e de ideias quiméricas. Se o indivíduo diz a Martin que no dia seguinte ele verá tal pessoa, ou será conduzido a tal lugar, e a coisa se realiza, é um fato positivo que não pode provir da imaginação.
No dia seguinte, 6 de março, acompanhado pelo Sr. Cura, Martin foi ver o prefeito, em Chartres. A princípio este conversou longamente em particular com o cura; depois mandou entrar Martin e lhe perguntou:
─ Mas se eu o algemasse e o metesse na prisão por anunciar semelhantes coisas, você continuaria a dizer o que diz?
Martin respondeu sem se intimidar:
─ Como quiserdes; não posso dizer senão a verdade.
─ Mas, prosseguiu o Sr. Prefeito, se você aparecesse ante uma autoridade superior à minha, perante o ministro, por exemplo, sustentaria o que me acaba de dizer?
─ Sim, senhor, replicou Martin, e diante do próprio rei.
O prefeito, surpreso por tanta segurança a par de tanta simplicidade, e mais ainda pelos estranhos relatos que lhe havia feito o cura, decidiu enviar Martin ao ministro.
No dia seguinte, 7 de março, Martin partia para Paris escoltado pelo Sr. André, tenente de polícia, que tinha ordem de vigiar todos os seus passos e de não deixá-lo nem de dia nem de noite. Hospedaramse na Rua Montmartre, hotel de Calais, num quarto de dois leitos.
Na sexta-feira, 5 de março, o Sr. André conduziu Martin ao quartel da polícia geral. Entrando no pátio, o desconhecido lhe apareceu e disse:
─ Você vai ser interrogado de várias maneiras; não tema, nem se inquiete, mas diga as coisas como elas são.
Depois destas palavras, desapareceu.
Não relataremos aqui todos os interrogatórios a que submeteram Martin o ministro e os seus secretários, sem que ele se deixasse intimidar pelas ameaças, nem desconcertar pelas armadilhas que lhe armaram para fazê-lo cair em contradição consigo mesmo, vencendo seus interrogadores por suas respostas cheias de senso e de sangue-frio. Tendo Martin descrito seu desconhecido, o ministro lhe disse:
─ Ora! Você não o verá mais, porque acabo de prendê-lo.
─ Eh! Como pudestes prendê-lo, redarguiu Martin, pois ele desaparece como um relâmpago?
─ Se desaparece para você, não desaparece para todo o mundo.
E dirigindo-se a um de seus secretários:
─ Ide ver se o homem que mandei prender ainda lá está.
Alguns instantes depois o secretário voltou e respondeu:
─ Senhor, ele continua lá.
─ Bem! disse Martin, se o prendestes e me mostrardes, eu certamente o reconhecerei. Eu o vi muitas vezes para poder reconhecê-lo.
A seguir veio um homem que examinou minuciosamente a cabeça de Martin, afastando os cabelos para a esquerda e para a direita. O próprio ministro também a examinou, sem dúvida para ver se tinha qualquer sinal indicador de loucura, ao que Martin se contentava em dizer:
─ Olhai quanto quiserdes. Eu jamais adoeci em minha vida! Quando chegou ao hotel, à noite, Martin disse ao Sr. André:
─ Mas o ministro me tinha dito que havia posto na prisão o homem que me aparecia. Então ele o soltou, pois me apareceu depois e me disse:
─ Você foi interrogado hoje, mas não querem fazer o que eu disse. Aquele que você viu de manhã quis fazer você acreditar que me havia prendido. Pode dizer-lhe que ele não tem nenhum poder sobre mim e que já é tempo para o rei ser avisado.
No mesmo instante o Sr. André foi fazer o seu relato à polícia, enquanto Martin, sem inquietude, deitou-se e dormiu pacificamente.
No dia seguinte, 9, tendo Martin descido para pedir as botas do tenente, o desconhecido se apresentou no meio da escada e lhe disse:
─ Você vai ser visitado por um médico que deseja verificar se você tem a imaginação descompensada e se perdeu a razão, mas os que o enviam são mais loucos que você.
Com efeito, no mesmo dia o célebre alienista Sr. Pinel veio visitá-lo e submeteu-o a um interrogatório adequado a esse gênero de informações. “A despeito de sua habilidade”, diz o relatório, “ele não pôde conseguir nenhuma indicação, por menor que fosse, de provável alienação. Suas pesquisas não conduziram senão a uma simples conjectura de possibilidade de alucinação e de mania intermitente”.
Parece que para certas pessoas nada mais é preciso para ser taxado de loucura, além de não pensar como eles. Eis por que os que creem em alguma coisa do outro mundo passam por loucos aos olhos dos que em nada creem.
Depois da visita do Dr. Pinel, o desconhecido apresentou-se a Martin e lhe disse:
─ É preciso que você vá falar com o rei. Quando estiver em sua presença eu lhe inspirarei o que terá que lhe dizer. Eu me sirvo de você para abater o orgulho e a incredulidade. Eles estão tentando descartar o problema, mas se você não realizar a sua tarefa ela será descoberta por outros caminhos.
A 10 de março, estando Martin só em seu quarto, o desconhecido lhe apareceu e disse:
─ Eu lhe havia dito que meu nome ficaria ignorado, mas considerando-se que a incredulidade é tão grande, é preciso que lhe revele o meu nome. Eu sou o anjo Rafael, anjo muito célebre junto a Deus. Eu tenho o poder de ferir a França com toda a sorte de flagelos.
A estas palavras, Martin foi tomado de pavor e experimentou uma espécie de crispação.
Um outro dia, tendo o Sr. André saído com Martin, encontrou um oficial seu amigo, com o qual conversou durante uma hora em inglês, que naturalmente Martin não entendia. No dia seguinte, o desconhecido, que ele agora chama o anjo, lhe disse:
─ Os que ontem estavam com você falaram a seu respeito, mas você não entendia sua linguagem. Eles disseram que você vinha para falar com o rei, e um deles pediu que quando voltasse à sua terra o outro lhe desse notícias, para ele saber como a coisa se teria passado.
O Sr. André, a quem Martin dava conta de toda a conversa com o desconhecido, ficou muito surpreendido por ver que o que tinha dito em inglês, para não ser por ele entendido, estava descoberto.
Embora o relatório do Dr. Pinel não concluísse pela loucura, mas apenas por uma possibilidade de alucinação, Martin não deixou de ser levado ao hospício de Charenton, onde ficou de 13 de março a 2 de abril. Lá foi objeto de minuciosa vigilância e submetido ao estudo especial dos especialistas. Igualmente fizeram inquéritos em sua terra, quanto aos seus antecedentes e aos de sua família, sem que, malgrado todas as investigações, tivessem constatado a menor aparência ou causa predeterminante de loucura. A bem da verdade, é preciso dizer que ele ali foi constantemente tratado com muito carinho da parte do Sr. Royer-Collard, diretor chefe da casa, e por outros médicos, e que não o submeteram a nenhum desses tratamentos em uso nesse tipo de estabelecimentos. Se ali foi colocado, era muito menos por medida de sequestro do que para ter mais facilidade de observar o seu real estado de espírito.
Durante sua estada em Charenton, ele recebeu visitas muito frequentes de seu desconhecido, as quais não apresentaram nenhuma particularidade notável, a não ser esta em que lhe disse:
─ Haverá discussões: uns dirão que é imaginação, outros que é um anjo de luz, e outros que é um anjo das trevas. Eu permito que você me toque.
Então, contou Martin, ele me apertou a mão direita; depois abriu o casaco pela frente e, quando este estava aberto, pareceu-me mais brilhante que os raios do sol e não pude encará-lo; fui obrigado a pôr a mão em frente aos olhos. Quando ele fechou o casaco, nada mais vi brilhando; ele me pareceu como antes. Esse abrir e fechar se operaram sem nenhum movimento de sua parte.
Outra vez, quando escrevia ao seu irmão, ele viu a seu lado o desconhecido, que lhe ditou uma parte da carta, lembrando as predições que havia feito sobre as desgraças de que a França estava ameaçada. Eis, pois, Martin ao mesmo tempo médium vidente e escrevente.
Por mais cuidado que tivessem tido para que não houvesse vazamento do caso, ele não deixou de produzir uma certa sensação nas altas camadas oficiais. Entretanto, é provável que não tivesse atingido o objetivo se o arcebispo de Reims, grande esmoler da França, depois arcebispo de Paris e cardeal de Périgord, por ele não se tivesse interessado. Ele falou com Luís XVIII e lhe propôs receber Martin. O rei lhe declarou que nada tinha ouvido ainda, tanto é certo que muitas vezes os soberanos são os últimos a saber o que se passa em seu redor e que mais lhes interessa. Em consequência, ordenou que Martin lhe fosse apresentado.
A 2 de abril Martin foi conduzido de Charenton à casa do ministro da polícia geral. Enquanto esperava o momento de ser recebido, seu desconhecido lhe apareceu e disse:
─ Você vai falar com rei e ficará sozinho com ele; não tenha nenhum receio de aparecer diante do rei; para o que terá que lhe dizer, as palavras lhe virão à boca.
Foi a última vez que o viu. O ministro lhe fez uma acolhida muito benevolente e disse que ia mandar levá-lo às Tulherias.
Geralmente acredita-se que Martin veio por conta própria a Paris, apresentou-se no castelo, insistindo para falar com o rei; que tendo sido repelido, voltou à carga com tanta persistência que Luís XVIII, tendo sido informado, mandou que entrasse. Como vimos, as coisas passaram de outro modo. Só em 1828, quatro anos após a morte do rei, ele deu a conhecer as particularidades secretas que lhe foram reveladas e lhe causaram profunda impressão, pois tal era o objetivo essencial dessa visita, sendo que os outros motivos alegados, como dissemos, não passaram de um meio de chegar a ele. Seu desconhecido lhe deixou ignorar essas coisas até o último momento, com receio de que uma indiscrição arrancada por artifício dos interrogatórios levasse o projeto ao fracasso, o que inevitavelmente teria ocorrido.
Depois de sua visita ao rei, Martin foi dizer seu adeus ao diretor de Charenton e partiu imediatamente para a sua terra, onde retomou o curso habitual de seus trabalhos, sem jamais atribuir-se mérito pelo que lhe havia acontecido.
O objetivo a que nos propúnhamos neste relato era demonstrar os pontos pelos quais ele se liga ao Espiritismo. Sendo as particularidades relatadas a Luís XVIII estranhas ao nosso assunto, abster-nosemos de relatá-las. Diremos apenas que elas se referiam a coisas de família da maior intimidade; comoveram o rei a ponto de fazê-lo chorar muito, e ele declarou mais tarde que as coisas que lhe tinham sido reveladas só eram conhecidas por Deus e por ele. Elas tiveram por consequência fazer renunciar à sagração cujos preparativos já haviam sido ordenados[1].
Não relataremos nesta entrevista senão algumas passagens da ata de 1828, ditada pelo próprio Martin, e onde se revela o caráter e a simplicidade do homem.
“Chegamos às Tulherias pelas três horas, sem que ninguém houvesse dito qualquer coisa. Chegamos até o primeiro criado de Luís XVIII, a quem entregamos a carta e que, depois de a ter lido, me disse: ‘Sigam-me.’ Paramos alguns momentos, porque o Sr. Decazes estava com o rei. Quando o ministro saiu eu entrei, e antes que dissesse uma palavra, o rei disse ao criado que se retirasse e fechasse as portas.
“O rei estava sentado à sua mesa, diante da porta; havia penas, papel e livros. Saudei o rei dizendo: “─ Senhor, eu vos saúdo.
“O rei me disse:
“─ Bom dia, Martin.
“E eu disse para mim mesmo: Ela sabe o meu nome.
“─ Vós sabeis, Senhor, certamente, por que eu venho.
“─ Sim, sei que você tem qualquer coisa a me dizer e disseram-me que era algo que só podeis dizer a mim. Sente-se.
“Então eu me sentei numa poltrona em frente ao rei de modo que havia a mesa entre nós. Então lhe perguntei como passava. O rei me disse:
“─ Passo um pouco melhor do que nos últimos dias; e você, como vai? “─ Eu estou bem.
“─ Qual o assunto de sua viagem?
“E eu lhe disse:
“─ Podeis mandar chamar, se quiserdes, vosso irmão e seus filhos.
“O rei me interrompeu, dizendo:
“─ É inútil, eu lhes direi o que você tiver que me dizer.
“Depois disto, eu contei ao rei todas as aparições que eu tinha tido e que estão no relato.
“─ Eu sei de tudo isto; o arcebispo de Reims me disse tudo, mas parece que você tem algo a me dizer em particular e em segredo.
“Então senti virem à minha boca as palavras que o anjo me havia prometido, e disse ao rei:
“─ O segredo que tenho a vos dizer é que... (Seguem detalhes que, como as instruções dadas na continuação da conversa, sobre certas medidas a tomar e a maneira de governar, não podiam senão ser inspiradas no momento, pois estão fora do alcance do grau de cultura de Martin).
“Foi a esse relato que o rei, tocado de espanto e profundamente comovido, disse:
“─ Ó meu Deus! Ó meu Deus! Isto é muito verdadeiro; só Deus, você e eu sabemos disto; prometame guardar o maior segredo sobre todas estas comunicações.
“E eu lhe prometi, e depois lhe disse:
“─ Evitai fazer-vos sagrar, porque se o tentásseis, seríeis ferido de morte na cerimônia da sagração. “Desse momento até o fim da conversa o rei chorava sem parar.
“Quando eu terminei, ele me disse que o anjo que me havia aparecido era o que conduzia o jovem Tobias a Rages e que o fez casar. Depois perguntou qual de minhas mãos o anjo havia apertado.
“─ Esta, respondi, mostrando a direita. O rei ma tomou, dizendo:
“─ Que eu toque a mão que o anjo apertou. Ore sempre por mim.
“─ Certamente, Senhor; eu e minha família, assim como o Sr. cura de Gallardon, temos sempre orado para que as coisas saíssem bem.
“Saudei o rei, dizendo-lhe:
“─ Eu vos auguro boa saúde. Disseram-me que uma vez cumprida minha missão junto ao rei, eu vos pedisse permissão para voltar à minha família, e me foi anunciado que não me recusaríeis e que não me aconteceria nenhum transtorno, nem nenhum mal.
“─ Nada mais lhe acontecerá. Dei ordens para que o mandassem de volta. O ministro vai lhe dar jantar e leito e papéis para você voltar amanhã.
“─ Mas eu ficaria contente se voltasse a Charenton para lhes dizer adeus e apanhar uma camisa que deixei lá.
“─ Não lhe é incômodo ficar em Charenton? Esteve bem lá?
“─ Incômodo nenhum, e certamente se lá não tivesse estado bem, não pediria para lá voltar.
“─ Então, já que é seu desejo lá voltar, o ministro o fará conduzir em meu nome.
“Voltei a encontrar o meu condutor, que me esperava, e fomos juntos à casa do ministro.
“Feito em Gallardon, a 9 de março de 1828.
“Assinado: THOMAS MARTIN”
A conversa de Martin com o rei durou pelo menos 55 minutos.
Se depois de sua visita ao rei, Martin não mais viu o seu desconhecido, as manifestações não deixaram de continuar sob outra forma. De médium vidente, ele tornou-se auditivo. Eis alguns fragmentos de cartas que ele escrevia ao antigo cura de Gallardon:
28 de janeiro de 1821
“Senhor cura, escrevo para vos dar conhecimento de uma coisa que me aconteceu. Terça-feira última, 23 de janeiro, quando arava no campo, ouvi uma voz que me chamou, sem ter visto ninguém, e disse-me: ‘Filho de Japhet! Para e presta atenção às palavras que te são dirigidas.’ No mesmo instante os meus cavalos pararam, sem que nada eu tivesse dito, porque estava muito surpreso. Eis o que me disse: ‘Nesta grande região uma árvore está plantada e, na mesma camada, está plantada uma outra que é inferior à primeira; a segunda árvore tem dois galhos, dos quais um feneceu e logo depois secou por causa de um vento furioso, e esse vento não cessou de soprar. No lugar desse galho surgiu outro, novo, tenro, que o substituiu; mas esse vento, que é sempre agitado, elevar-se-á um dia com tais abalos que... e depois dessa catástrofe espantosa, os povos estarão na última desolação. Ora, meu filho, para que esses dias sejam abreviados; invoca o Céu para que o vento fatal que sairá do noroeste seja barrado por barreiras poderosas, e que seus progressos nada tenham de danosos. Estas coisas são obscuras para ti, mas outros as compreenderão facilmente.’
“Eis, senhor, o que me aconteceu na terça-feira, cerca de uma hora da tarde. Não compreendo nada disto. Vós me direis se compreendeis alguma coisa. A ninguém falei de tudo isto, nem mesmo à minha mulher, porque o mundo é mau. Estava decidido a guardar tudo isto em silêncio, mas me decidi a vos escrever hoje, porque esta noite não pude dormir, e tenho tido sempre essas palavras na memória. Peçovos guardá-las em segredo, porque o mundo zombaria delas. Senhor, trataram-me de filho de Japhet. Não conheço ninguém em nossa família com este nome. Talvez ele se tenha enganado; talvez me tivesse tomado por outro.”
8 de fevereiro de 1821
“Eu vos tinha proibido de falar do que vos contei. Estava errado, porque isto não pode ficar oculto. Necessariamente é preciso que isto passe diante dos grandes e dos primeiros do Estado, para que se veja o perigo de que estão ameaçados, pois o vento de que vos falei dentro em pouco vai fazer terríveis desastres, porque esse vento sopra sempre em torno da árvore. Se não prestarem atenção a isto, dentro em pouco ela será arrancada. No mesmo momento, outra árvore, com o que dela sai experimentará a mesma sorte. Ontem a mesma voz me veio falar, e nada vi.”
21 de fevereiro de 1821
“Senhor, esta manhã tive um grande pavor. Eram nove horas. Ouvi um grande ruído junto a mim e nada vi, mas ouvi falar, depois de cessado o ruído, e disseram-me: ‘Por que tivestes medo? Não temais; não venho fazer mal algum. Estais surpreso por ouvir e nada ver; não vos admireis; é preciso que as coisas sejam descobertas. Eu me sirvo de vós para vos enviar, como sou enviado. Os filósofos, os incrédulos, os ímpios não creem que suas manobras sejam vistas, mas é preciso que sejam confundidos... Ficai tranquilo, continuai a ser o que tendes sido; vossos dias estão contados e não vos escapará um só. Eu vos proíbo de vos prosternardes diante de mim, porque sou apenas um servo como vós.’
“Senhor, eis o que me foi dito. Não sei qual a pessoa que me fala; ele tem a voz bastante forte e muito clara. Pensei em falar, mas não ousei, porque não vejo ninguém.”
Resta saber qual é a individualidade do Espírito que se manifestou. Era realmente o anjo Rafael? É mesmo permitido duvidar e haveria muito a dizer contra tal opinião. Mas, em nossa opinião, esta é uma questão muito secundária. O fato capital é o da manifestação, da qual não se poderia duvidar e da qual todos os incidentes têm sua razão de ser pelo resultado proposto e hoje têm o seu lado instrutivo.
Um fato que sem dúvida não terá escapado a ninguém é esta palavra de Martin, a respeito de uma soma que lhe ofereceram: “Como a coisa não vem de mim, nada devo receber por isto.” Eis, pois, um simples camponês, médium inconsciente que, há cinquenta anos, época na qual se estava longe de pensar no Espiritismo, tem, por si mesmo, a intuição dos deveres impostos pela mediunidade, da santidade deste mandato. Seu bom-senso, sua lealdade natural lhe fazem compreender que o que vem de uma fonte celeste e não de si, não deve ser pago.
Talvez se admirem das dificuldades que encontrou Martin para desempenhar a missão de que estava encarregado. Perguntarão por que os Espíritos não o fizeram chegar diretamente ao rei? Essas dificuldades, essa lentidão, como dissemos, tiveram sua utilidade. Era preciso que ele passasse por Charenton, onde sua razão foi submetida às investigações mais rigorosas da ciência oficial e pouco crédula, para que fosse constatado que não era louco nem exaltado. Como se viu, os Espíritos triunfaram dos obstáculos preparados pelos homens; mas como os homens têm o seu livre-arbítrio, eles não podiam impedi-los de pôr entraves.
Notemos, a propósito, que Martin, por assim dizer, não fez, por si mesmo, nenhum esforço para chegar ao rei. As circunstâncias a isso o conduziram quase que malgrado seu, e sem que ele tivesse necessidade de insistir muito. Ora, essas circunstâncias evidentemente foram conduzidas pelos Espíritos, agindo sobre o pensamento dos encarnados, porque a missão de Martin era séria e devia realizar-se.
Dá-se o mesmo em todos os casos análogos. Além da questão de prudência, é evidente que, sem as dificuldades que existem de chegar até eles, os soberanos seriam assaltados por pretensos reveladores. Nestes últimos tempos, quantas pessoas se julgaram chamadas a semelhantes missões, que não eram senão o resultado de obsessões, em que o seu orgulho era posto em jogo, malgrado seu, e não podiam chegar senão a mistificações! A todos os que julgaram dever consultar-nos em semelhantes casos, sempre dissemos, demonstrando-lhes os sinais evidentes pelos quais se traem os Espíritos mentirosos: “Guardaivos de qualquer manobra que infalivelmente vos levaria à confusão. Ficai certos de que se vossa missão for real, sereis postos em condições de realizá-la; que se tiverdes de vos encontrar, num dado momento, num certo lugar, aí sereis conduzido, malgrado vosso, por circunstâncias que terão a aparência de um efeito do acaso. Além disto, tende a certeza que quando uma coisa está nos desígnios de Deus, é forçoso que ela se realize, e que ele não subordina a sua realização à boa ou má vontade dos homens. Desconfiai das missões anunciadas e pregadas por antecipação, porque não passam de engodos para o orgulho; as missões se revelam por fatos. Desconfiai também das predições com dia e hora certa, porque elas jamais procedem de Espíritos sérios.” Temos sido bastante felizes ao deter mais de uma, nas quais os acontecimentos puderam provar a prudência destes conselhos.
Como se vê, há mais de uma similitude entre estes fatos e os de Joana d’Arc, não que haja qualquer comparação a estabelecer quanto à importância dos resultados obtidos, mas quanto à causa do fenômeno, que é exatamente a mesma e, até um certo ponto, quanto ao objetivo. Como Joana d’Arc, Martin foi advertido por um ser do mundo espiritual para ir falar ao rei para salvar a França de um perigo e, também como ela, não foi sem dificuldade que chegou até ele. Contudo, há entre as duas manifestações a diferença que Joana d’Arc apenas ouvia a voz que a aconselhava, ao passo que Martin via constantemente o indivíduo que lhe falava, não em sonho ou em sonho extático, mas sob a aparência de um ser vivo, como seria um agênere.
Mas, de outro ponto de vista, os fatos acontecidos a Martin, embora menos retumbantes, não tiveram menor alcance como prova da existência do mundo espiritual e de suas relações com o mundo corporal e porque, sendo contemporâneos e de incontestável notoriedade, não podem ser postos no rol das histórias lendárias. Por sua repercussão, eles serviriam de balizas ao Espiritismo que devia, poucos anos depois, confirmar a sua possibilidade por uma explicação racional e pela lei em virtude da qual se produzem, e fazê-los passar do domínio do maravilhoso para o dos fenômenos naturais. Graças ao Espiritismo, não há uma só das fases que as revelações de Martin apresentaram das quais não possamos dar conta perfeitamente.
Martin era um médium inconsciente, dotado de uma aptidão de que se serviram os Espíritos, como de um instrumento, para chegar a um resultado determinado, e esse resultado estava longe de estar inteiro na revelação feita a Luís XVIII. O Espírito que se manifestou a Martin o caracteriza perfeitamente, dizendo: “Eu me sirvo de você para abater o orgulho e a incredulidade.” Esta missão é a de todos os médiuns destinados a provar, por fatos de todos os gêneros, a existência do mundo espiritual e de uma força superior à Humanidade, porque tal é o objetivo providencial das manifestações. Acrescentaremos que o próprio rei foi um instrumento nesta circunstância. Era preciso uma posição tão elevada quanto a sua, a própria dificuldade de a ele chegar, para que o caso tivesse repercussão e à autoridade de uma coisa oficial. As minuciosas investigações a que Martin foi submetido só podiam aumentar a autenticidade dos fatos, porque não tomariam todas estas precauções para um simples particular; a coisa teria passado quase despercebida, ao passo que ainda hoje dela nos recordamos e ela fornece uma prova autêntica em apoio aos fenômenos espíritas.
[1] Os detalhes circunstanciados e as provas em apoio se acham numa obra intitulada: O passado e o futuro explicados pelos acontecimentos extraordinários ocorridos a Thomas Martin trabalhador de Beauce. ─ Paris, 1832, BRICON livreiro, Rua du Vieux-Colombier, 19; Marselha, mesma casa, Rua du Saint-Sépulcre, 17. Esta obra está esgotada e é hoje muito rara.