Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866
Versão para cópiaCapítulo XII
Fevereiro - Antropofagia
Fevereiro
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Antropofagia
Lê-se no Siècle de 26 de dezembro de 1865:
O almirantado inglês acaba de dirigir às cidades marítimas que fazem armamentos para a Oceania uma circular, na qual anuncia que, desde algum tempo, nota-se entre os habitantes das ilhas do Grande Oceano um redobramento da antropofagia. Nessa circular, aconselha os capitães de navios mercantes a tomar todas as precauções necessárias para evitar que sua equipagem seja vítima desse horroroso costume.
“Há cerca de um ano as equipagens de quatro navios foram devoradas pelos antropófagos das Novas
Hébridas da baía de Jervis ou da Nova Caledônia, e todas as medidas devem ser tomadas para evitar a repetição de tão cruéis desgraças.”
Eis como o jornal le Monde explica essa recrudescência da antropofagia:
“Tivemos o cólera, a epizootia, a catapora; os legumes e os animais estão doentes. Eis uma epidemia mais dolorosa ainda, que o almirantado inglês nos dá a conhecer: os selvagens da Oceania, ao que se diz, redobram na antropofagia. Vários casos horríveis chegaram ao conhecimento dos lordes do almirantado. As equipagens de vários navios ingleses desapareceram. Ninguém duvida que nossas autoridades marítimas também tomem medidas, porque dois navios franceses foram atacados, as equipagens tomadas e devoradas pelos selvagens. O espírito se detém ante esses horrores, dos quais não puderam triunfar todos os esforços de nossa civilização. Quem sabe de onde vêm essas criminosas inspirações?
“Que palavra de ordem foi dada a todos esse pagãos, disseminados em centenas e milhares de ilhas nas imensidades dos mares do Sul? Sua paixão monstruosa, apaziguada por um momento, reaparece a ponto de chamar a repressão e inquietar as forças da Terra. É um desses problemas cuja solução só o dogma católico pode dar. O espírito das trevas em certos momentos age com toda a liberdade. Antes dos acontecimentos graves, agita-se, impele suas criaturas, sustenta-as e as inspira. Grandes acontecimentos se preparam. A revolução julga chegada a hora de proceder ao coroamento do edifício; recolhe-se para a luta suprema; investe contra a chave da abóbada da sociedade cristã. A hora é grave e parece que a Natureza inteira pressente e prevê a sua gravidade.”
Admiramos de não ver, entre as causas do redobramento da ferocidade nos selvagens, figurar o Espiritismo, este bode expiatório de todos os males da Humanidade, como foi outrora o Cristianismo em Roma. Talvez aí esteja implicitamente compreendido, como sendo, segundo uns, obra do Espírito das trevas. “Só o dogma católico, diz le Monde, pode dar a explicação desse problema.” Não vemos que a explicação seja muito clara, nem o que o espírito revolucionário da Europa tem de comum com esses bárbaros. Até achamos nesse dogma uma complicação da dificuldade.
Os antropófagos são homens: ninguém jamais o pôs em dúvida. Ora, o dogma católico não admite a preexistência da alma, mas a criação de uma alma nova ao nascimento de cada corpo. Daí resulta que Deus cria lá almas de comedores de homens e aqui almas capazes de se tornarem santos. Por que essa diferença? É um problema cuja solução a Igreja jamais deu, entretanto, é uma pedra angular essencial. Conforme sua doutrina, a recrudescência da antropofagia não se pode explicar senão assim: É que neste momento a Deus apraz criar um maior número de almas antropófagas. A solução é pouco satisfatória e sobretudo pouco consequente com a bondade de Deus.
A dificuldade aumenta se considerarmos o futuro dessas almas. Em que se tornam após a morte? São tratadas do mesmo modo que as que têm consciência do bem e do mal? Isto não seria nem justo nem racional. Com o seu dogma, a Igreja, em vez de explicar, fica num impasse, do qual não pode sair senão apelando para o mistério, que não se pode tentar compreender, espécie de non possumus que corta cerce as questões embaraçosas.
Ora! Para esse problema que a Igreja não pode resolver, o Espiritismo encontra a mais simples solução e mais racional, na lei da pluralidade das existências, a que todos os seres estão submetidos, e em virtude da qual progridem. Assim, as almas dos antropófagos ainda estão próximas de sua origem. Suas faculdades intelectuais e morais ainda são obtusas e pouco desenvolvidas e nelas, por isso mesmo, dominam os instintos animais.
Mas essas almas não estão destinadas a ficar perpetuamente nesse estado inferior, que as privaria para sempre da felicidade das almas mais adiantadas. Elas crescem em raciocínio, esclarecem-se, depuram-se, melhoram-se, instruem-se em existências sucessivas. Revivem nas raças selvagens, enquanto não ultrapassarem os limites da selvageria. Chegadas a um certo grau, deixam esse meio para encarnar-se numa raça um pouco mais adiantada; dessa a uma outra, e assim sucessivamente, sobem em grau, em razão dos méritos que adquirem e das imperfeições de que se despojam, até atingirem o grau de perfeição de que é susceptível a criatura. A via do progresso a nenhuma está fechada, de tal sorte que a mais atrasada das almas pode pretender a suprema felicidade. Mas umas, em virtude do seu livre-arbítrio, que é o apanágio da Humanidade, trabalham com ardor por sua depuração e sua instrução, em se despojar dos instintos materiais e dos cueiros da origem, porque, a cada passo que dão para a perfeição, veem mais claro, compreendem melhor e são mais felizes. Essas avançam mais prontamente, gozam mais cedo: eis a sua recompensa. Outras, sempre em virtude de seu livre-arbítrio, demoram-se no caminho, como estudantes preguiçosos e de má vontade, ou como operários negligentes, chegam mais tarde, sofrem mais tempo: eis a punição ou, se quiserdes, o seu inferno. Assim se confirma, pela pluralidade das existências progressivas, a admirável lei de equidade e de justiça que caracteriza todas as obras da criação. Comparai esta doutrina com a da Igreja, sobre o passado e o futuro das almas e vede qual a mais racional, mais conforme à justiça divina e que melhor explica as desigualdades sociais.
Seguramente a antropofagia é um dos mais baixos degraus da escala humana na Terra, porque o selvagem que não mais come o seu semelhante já está em progresso. Mas de onde vem a recrudescência desse instinto bestial? Nota-se, de saída, que ela é apenas local e que, em suma, o canibalismo desapareceu em grande parte da Terra. É inexplicável sem o conhecimento do mundo invisível e de suas relações com o mundo visível. Pelas mortes e nascimentos, alimentam-se um do outro, se derramam um no outro. Ora, os homens imperfeitos não podem fornecer ao mundo invisível almas perfeitas e as almas perversas; encarnando-se, não podem fazer senão homens maus. Quando as catástrofes, os flagelos, atingem ao mesmo tempo um grande número de homens, há uma chegada em massa de almas no mundo dos Espíritos. Devendo essas almas reviver, em virtude da lei da Natureza, e para o seu adiantamento, as circunstâncias podem igualmente reconduzi-las em massa para a Terra.
O fenômeno de que se trata depende, pois, simplesmente, da encarnação acidental, nos meios ínfimos, de um maior número de almas atrasadas, e não da malícia de Satã, nem da palavra de ordem dada ao povo da Oceania. Ajudando no desenvolvimento do senso moral dessas almas durante a sua vida na Terra, o que é a missão dos homens civilizados, elas melhoram. E quando retomarem uma existência corpórea para continuar a progredir, elas farão homens menos maus do que foram, mais esclarecidos, de instintos menos ferozes, porque o progresso realizado não se perde nunca. É assim que gradualmente se realiza o progresso da Humanidade.
O jornal le Monde está certo, dizendo que grandes acontecimentos se preparam. Sim, uma transformação se elabora na Humanidade. Já se fazem sentir os primeiros abalos do parto; o mundo corporal e o mundo espiritual se agitam, porque é a luta entre o que acaba e o que começa. Em proveito de quem será essa transformação? Sendo o progresso a lei providencial da Humanidade, não se pode dar senão em proveito do progresso. Mas os grandes partos são laboriosos; não é sem abalos e sem grandes destruições no solo que se extirpam dos terrenos a limpar as ervas daninhas, que têm longas e profundas raízes.
O almirantado inglês acaba de dirigir às cidades marítimas que fazem armamentos para a Oceania uma circular, na qual anuncia que, desde algum tempo, nota-se entre os habitantes das ilhas do Grande Oceano um redobramento da antropofagia. Nessa circular, aconselha os capitães de navios mercantes a tomar todas as precauções necessárias para evitar que sua equipagem seja vítima desse horroroso costume.
“Há cerca de um ano as equipagens de quatro navios foram devoradas pelos antropófagos das Novas
Hébridas da baía de Jervis ou da Nova Caledônia, e todas as medidas devem ser tomadas para evitar a repetição de tão cruéis desgraças.”
Eis como o jornal le Monde explica essa recrudescência da antropofagia:
“Tivemos o cólera, a epizootia, a catapora; os legumes e os animais estão doentes. Eis uma epidemia mais dolorosa ainda, que o almirantado inglês nos dá a conhecer: os selvagens da Oceania, ao que se diz, redobram na antropofagia. Vários casos horríveis chegaram ao conhecimento dos lordes do almirantado. As equipagens de vários navios ingleses desapareceram. Ninguém duvida que nossas autoridades marítimas também tomem medidas, porque dois navios franceses foram atacados, as equipagens tomadas e devoradas pelos selvagens. O espírito se detém ante esses horrores, dos quais não puderam triunfar todos os esforços de nossa civilização. Quem sabe de onde vêm essas criminosas inspirações?
“Que palavra de ordem foi dada a todos esse pagãos, disseminados em centenas e milhares de ilhas nas imensidades dos mares do Sul? Sua paixão monstruosa, apaziguada por um momento, reaparece a ponto de chamar a repressão e inquietar as forças da Terra. É um desses problemas cuja solução só o dogma católico pode dar. O espírito das trevas em certos momentos age com toda a liberdade. Antes dos acontecimentos graves, agita-se, impele suas criaturas, sustenta-as e as inspira. Grandes acontecimentos se preparam. A revolução julga chegada a hora de proceder ao coroamento do edifício; recolhe-se para a luta suprema; investe contra a chave da abóbada da sociedade cristã. A hora é grave e parece que a Natureza inteira pressente e prevê a sua gravidade.”
Admiramos de não ver, entre as causas do redobramento da ferocidade nos selvagens, figurar o Espiritismo, este bode expiatório de todos os males da Humanidade, como foi outrora o Cristianismo em Roma. Talvez aí esteja implicitamente compreendido, como sendo, segundo uns, obra do Espírito das trevas. “Só o dogma católico, diz le Monde, pode dar a explicação desse problema.” Não vemos que a explicação seja muito clara, nem o que o espírito revolucionário da Europa tem de comum com esses bárbaros. Até achamos nesse dogma uma complicação da dificuldade.
Os antropófagos são homens: ninguém jamais o pôs em dúvida. Ora, o dogma católico não admite a preexistência da alma, mas a criação de uma alma nova ao nascimento de cada corpo. Daí resulta que Deus cria lá almas de comedores de homens e aqui almas capazes de se tornarem santos. Por que essa diferença? É um problema cuja solução a Igreja jamais deu, entretanto, é uma pedra angular essencial. Conforme sua doutrina, a recrudescência da antropofagia não se pode explicar senão assim: É que neste momento a Deus apraz criar um maior número de almas antropófagas. A solução é pouco satisfatória e sobretudo pouco consequente com a bondade de Deus.
A dificuldade aumenta se considerarmos o futuro dessas almas. Em que se tornam após a morte? São tratadas do mesmo modo que as que têm consciência do bem e do mal? Isto não seria nem justo nem racional. Com o seu dogma, a Igreja, em vez de explicar, fica num impasse, do qual não pode sair senão apelando para o mistério, que não se pode tentar compreender, espécie de non possumus que corta cerce as questões embaraçosas.
Ora! Para esse problema que a Igreja não pode resolver, o Espiritismo encontra a mais simples solução e mais racional, na lei da pluralidade das existências, a que todos os seres estão submetidos, e em virtude da qual progridem. Assim, as almas dos antropófagos ainda estão próximas de sua origem. Suas faculdades intelectuais e morais ainda são obtusas e pouco desenvolvidas e nelas, por isso mesmo, dominam os instintos animais.
Mas essas almas não estão destinadas a ficar perpetuamente nesse estado inferior, que as privaria para sempre da felicidade das almas mais adiantadas. Elas crescem em raciocínio, esclarecem-se, depuram-se, melhoram-se, instruem-se em existências sucessivas. Revivem nas raças selvagens, enquanto não ultrapassarem os limites da selvageria. Chegadas a um certo grau, deixam esse meio para encarnar-se numa raça um pouco mais adiantada; dessa a uma outra, e assim sucessivamente, sobem em grau, em razão dos méritos que adquirem e das imperfeições de que se despojam, até atingirem o grau de perfeição de que é susceptível a criatura. A via do progresso a nenhuma está fechada, de tal sorte que a mais atrasada das almas pode pretender a suprema felicidade. Mas umas, em virtude do seu livre-arbítrio, que é o apanágio da Humanidade, trabalham com ardor por sua depuração e sua instrução, em se despojar dos instintos materiais e dos cueiros da origem, porque, a cada passo que dão para a perfeição, veem mais claro, compreendem melhor e são mais felizes. Essas avançam mais prontamente, gozam mais cedo: eis a sua recompensa. Outras, sempre em virtude de seu livre-arbítrio, demoram-se no caminho, como estudantes preguiçosos e de má vontade, ou como operários negligentes, chegam mais tarde, sofrem mais tempo: eis a punição ou, se quiserdes, o seu inferno. Assim se confirma, pela pluralidade das existências progressivas, a admirável lei de equidade e de justiça que caracteriza todas as obras da criação. Comparai esta doutrina com a da Igreja, sobre o passado e o futuro das almas e vede qual a mais racional, mais conforme à justiça divina e que melhor explica as desigualdades sociais.
Seguramente a antropofagia é um dos mais baixos degraus da escala humana na Terra, porque o selvagem que não mais come o seu semelhante já está em progresso. Mas de onde vem a recrudescência desse instinto bestial? Nota-se, de saída, que ela é apenas local e que, em suma, o canibalismo desapareceu em grande parte da Terra. É inexplicável sem o conhecimento do mundo invisível e de suas relações com o mundo visível. Pelas mortes e nascimentos, alimentam-se um do outro, se derramam um no outro. Ora, os homens imperfeitos não podem fornecer ao mundo invisível almas perfeitas e as almas perversas; encarnando-se, não podem fazer senão homens maus. Quando as catástrofes, os flagelos, atingem ao mesmo tempo um grande número de homens, há uma chegada em massa de almas no mundo dos Espíritos. Devendo essas almas reviver, em virtude da lei da Natureza, e para o seu adiantamento, as circunstâncias podem igualmente reconduzi-las em massa para a Terra.
O fenômeno de que se trata depende, pois, simplesmente, da encarnação acidental, nos meios ínfimos, de um maior número de almas atrasadas, e não da malícia de Satã, nem da palavra de ordem dada ao povo da Oceania. Ajudando no desenvolvimento do senso moral dessas almas durante a sua vida na Terra, o que é a missão dos homens civilizados, elas melhoram. E quando retomarem uma existência corpórea para continuar a progredir, elas farão homens menos maus do que foram, mais esclarecidos, de instintos menos ferozes, porque o progresso realizado não se perde nunca. É assim que gradualmente se realiza o progresso da Humanidade.
O jornal le Monde está certo, dizendo que grandes acontecimentos se preparam. Sim, uma transformação se elabora na Humanidade. Já se fazem sentir os primeiros abalos do parto; o mundo corporal e o mundo espiritual se agitam, porque é a luta entre o que acaba e o que começa. Em proveito de quem será essa transformação? Sendo o progresso a lei providencial da Humanidade, não se pode dar senão em proveito do progresso. Mas os grandes partos são laboriosos; não é sem abalos e sem grandes destruições no solo que se extirpam dos terrenos a limpar as ervas daninhas, que têm longas e profundas raízes.
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