Obreiros da Vida Eterna

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Capítulo VII

Leitura mental


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Após a oração silenciosa, Jerônimo fez Luciana compreender que atingíramos o momento de ação.

A enfermeira clarividente, evidenciando carinho fraterno, aproximou-se do infeliz e, depois de fitar-lhe a fronte demoradamente, começou:

— Padre Domênico, vossa mente revela o passado distante e esse pretérito fala muito alto diante de Deus e dos irmãos em humanidade! Duvidais da Providência Divina, alegais que o vosso ministério não foi devidamente remunerado com a salvação e imprecais contra o Pai de Misericórdia Infinita… Vossa dor permanece repleta de blasfêmia e desespero, proclamais que as Forças Celestes vos abandonaram ao tenebroso fundo do abismo!…

— E, porventura, não é assim? — Gritou o desventurado, interrompendo-a, — compelido pelas circunstâncias da vida humana a servir numa igreja que me enganou, negam-me o direito de reclamar? O Evangelho não tem palavras de mel para o ato de Judas. Deverei, por minha vez, louvar os que me traíram?

— Não, Domênico. Vossos amigos não cogitam de criticar instituições. Desejam tão somente amparar-vos. Não concordais no vosso desvio da conduta cristã? Teríeis, de fato, agido como sacerdote fiel aos sagrados princípios esposados? Esperaríeis um paraíso de vantagens imediatas, para cá dos túmulos, tão só pelas insígnias exteriores que vos diferençaram dos outros homens? não ponderastes a extensão das responsabilidades desassumidas?

— Oh! Que perguntas! — Exclamou o interpelado, com indisfarçável azedume, — a organização religiosa a que servi prometeu-me honras definitivas. Não era eu diretor de grande coletividade social? não ministrava o Santíssimo Sacramento? não fui recomendado ao Céu?…

Apesar de tais protestos, o padre Domênico já acusava sinais de transformação íntima. Fizera-se-lhe a voz mais triste, denunciando capitulação próxima. O fato de ele nos sentir de mais perto, através da audição, facilitava-nos a atuação magnética de auxílio.

Ao término de suas interrogações reticenciosas, Luciana observou:

— As igrejas, meu amigo, são sempre elevadas e belas. Consubstanciam, invariavelmente, o roteiro de nosso encontro divino com o Pai de Infinito Amor. Ensinam a bondade universal, o perdão das faltas, a solidariedade comum. Mas, e os nossos crimes, fraquezas e defecções? Em geral, todos nós, filiados a correntes várias do pensamento religioso na Terra, exigimos que se nos faça justiça, esquecidos, contudo, de que as noções de justiça envolvem a existência da Lei. E como ludibriar a Lei, soberana e inalterável, embora compassiva em suas manifestações? Não concordais que é absurdo reclamar determinado procedimento dos outros, esperando para o nosso “eu” tirânico e desequilibrado as compensações somente devidas aos observadores das regras de purificação, das quais não passamos de meros expositores no campo do ensinamento?

— Oh! Oh! E a confissão? — Tornou Domênico, visivelmente impressionado com as palavras ouvidas, — Monsenhor Pardíni ouviu-me, antes da morte, e absolveu-me…

— E confiastes em semelhante medida? Vosso colega de sacerdócio poderia induzir-vos ao bom ânimo e à coragem necessária ao serviço de reparação futura, mas não conseguiria subtrair-vos à consciência os negros resíduos mentais dos atos praticados. Vosso coração, padre, é um livro aberto aos nossos olhos. Envolvido nas trevas, injuriais o nome de Deus e sua justiça; no entanto, a viva descrição de vossas reminiscências são bastante expressivas…

Porque, Domênico se calasse humilhado, sob a vigorosa influenciação magnética de Zenóbia, que o mantinha nos braços, a clarividente prosseguiu:

— Vejo-vos a derradeira noite na existência carnal. Acompanho-vos em noite fria, sob fortes rajadas do vento de céu sem lua. Desviastes o passo de centro populoso e enveredais por estrada sombria de recanto suburbano. Não somente vos observo a forma física. Sinto-vos igualmente o estado emocional. Empolgado pela visão embriagante dos sentidos, penetrais um lar honesto, cego por sentimento menos respeitoso para com alguém que vos ouviu, inadvertidamente, as palavras finas de sedução e malícia. Alijastes a batina escura, como quem despe incômoda capa. Envergais agora, na intimidade de pequeno salão verde, perfumado costume de casimira cinza-claro. Absorvida por vossas referências gentis, que apenas traduzem propósitos de sensação, distantes de qualquer sentimento edificante, certa mulher cede às vossas promessas. Alguém, todavia, demora-se espreitando-vos. É um homem que se certifica da ocorrência e afasta-se, alucinado, sem que lhe identificásseis a presença. Trata-se do esposo ofendido, em dolorosa crise passional. Distancia-se, a caminho da pequena cidade próxima, tomado de dor selvagem. Penetra grande empório de bebidas e adquire um litro de vinho antigo, por alto preço. Afasta-se, angustiado, e, oculto à sombra de árvores acolhedoras, adiciona ao conteúdo do frasco pequena porção de substância venenosa, fulminante. Em seguida, espera-vos, de longe, acariciando a ideia do assassínio. Noite alta, regressais ao presbitério; e o adversário, como quem volta de ligeira viagem, saúda-vos, agradavelmente, com dissimuladas demonstrações de estima e confiança. Paira o convite ao vinho reconfortante na madrugada gélida e abris a porta da residência paroquial. Entrais calmo. Na tepidez do interior doméstico, à frente de vasta mesa bem servida, experimentais, honrado, o vinho velho misturado a veneno destruidor. Não tivestes tempo para explicações. Ante vossos gemidos furiosos e roucos, entre esgares de sofrimento, o assassino ri-se e pronuncia aos vossos ouvidos feias palavras de maldição. Quando a respiração se fez mais opressa, o homicida pediu socorro às dependências da casa, depois de inutilizar a prova do crime, ante vossos olhos assombrados. Precipitam-se, em vão, os servidores. Velho eclesiástico aproxima-se, no intuito de ouvir-vos. Deve ser o Monsenhor Pardíni, de vossas referências. Compreendendo-vos a dificuldade para manter qualquer conversação, interroga o criminoso, que se declara vosso amigo íntimo e esclarece, fingidamente, que regressava em vossa companhia do próprio lar, onde havíeis entretido confortadora e longa palestra, junto a ele e à esposa, demorando-se aí por insistência dos dois. O criminoso, revelando piedade irônica, assegura que vos acompanhara à casa paroquial, em vista da noite alta e que demandara o interior a vosso convite, para reconfortar-se e que, em plena palestra amistosa, caístes fulminado por síncope singular. Debalde, intentais esclarecimento. Vossa destra levanta-se e o indicador aponta o criminoso. Monsenhor Pardíni aproxima-se. O homicida toma-vos a mão quase inerte e exclama: — “É preciso salvar o padre Domênico! Minha esposa e eu não nos conformaríamos com semelhante perda!” O eclesiástico que vos assiste permanece sob forte emoção. Supõe ser o vingador o companheiro desvelado da vítima e inicia o serviço dos moribundos. Endereçais supremo olhar de impassível desespero ao adversário e compreendeis o próximo fim do corpo. Esfriam-se-vos os membros. Viscoso suor vos corre, abundante, do rosto, e, num esforço tremendo, pronunciais, de maneira quase ininteligível, uma frase: — “Eu, pecador, me… confesso…” O religioso que vos acompanha, porém, fecha-vos os lábios, no intuito de poupar-vos e assevera: — “Domênico, descansa em paz! Ao sacerdote reto, não se faz necessária a confissão, no alento derradeiro; ainda hoje, ministraste a sagrada partícula! Pede a Deus por nós, no Céu!” Em seguida, concede-vos plena absolvição de todos os pecados da existência humana, tratando-vos a personalidade espiritual cheio de santa confiança. A palavra do colega, porém, perturba-vos a consciência. No fundo, sabeis que a morte vos surpreende em doloroso abismo. Em vão, tentais receber a paz que Monsenhor Pardíni vos deseja; debalde procurais desviar o olhar do envenenador que vos segue, mordaz. Vossas mãos tombam inertes. O religioso amigo segura o crucifixo que não sentis. Vossos olhos param na contemplação da última cena. Abre-se a porta da alcova espaçosa e alguns servos ajoelham-se, em pranto. Não distante, um sino toca fúnebre aviso. Amanhece. Entretanto, semi-inconsciente, fustigado pela dor e pela desesperação, não vos vejo desfrutando as claridades do novo dia que surge. Cá fora, há círios acesos e atitudes respeitosas dos paroquianos que se multiplicam, visitando-vos os despojos, após o laudo médico de bondoso facultativo que, intimamente, vos crê suicida, fornecendo, porém, explicações da “causa mortis”, como sendo fulminante ataque de angina, a fim de evitar escândalos e perturbações no círculo sempre venerável da religião. Há pessoas que choram sinceramente e ouço comentários elogiosos ao vosso pastorejo sacerdotal. Dentro de vós, todavia, prevalece imensa noite. Gritais como o cego, ao abandono, no primeiro instante de cegueira inesperada. Porém, ninguém vos ouve. Relacionais o crime de que fostes vítima, rogais providências contra o matador, mas os ouvidos humanos, agora, permanecem noutras dimensões. Buscais o recurso de fugir, mas invencíveis grilhões vos ligam ao cadáver. Ao crepúsculo, processa-se o enterramento. Abre-se o templo suntuosamente ornamentado com flores roxas. Cânticos tristes evolam-se do coro e toda a nave cheira a incenso. Com grande pompa em todas as minudências das exéquias, vosso corpo desce ao último abrigo. Entretanto, permaneceis ligado às vísceras decompostas…

A descrição da enfermeira impressionava-me, profundamente. A entidade infeliz parecia tocada nas mais recônditas fibras do ser. Após breve espaço, Luciana prosseguiu:

— Com o sepultamento do corpo, começaram para vossa alma infinitos padecimentos. Permaneceis atormentado pela ansiedade, pela fome, pela sede, pela dor… Não posso precisar quanto tempo gastais em semelhante angústia. Sinto, porém, que a entidade sofredora de certa mulher vos visita o sepulcro. Estende-vos braços horrendos e, sob impressão de pavor, conseguistes desatar o laço ainda restante que vos prende ao corpo disforme, fugindo a praguejar. Vosso quadro consciencial modifica-se. Recordais o drama da infortunada que vos apareceu, suplicante. Oh! Foi também vítima de vosso poder fascinador… A leitura mental de vossas lembranças revela as particularidades da experiência final da tresloucada. Pobre mulher crédula e confiante! Vejo-a chegando ao presbitério em tempestuosa noite. Experimentais a emoção inferior do homem menos digno que sente o império absoluto sobre a presa… A pobrezinha, todavia, chora e roga-vos auxílio. Pronuncia palavras de comover corações de pedra, mostrando indefinível desalento. Percebo o que diz… Confiou excessivamente em vossas promessas e cedeu aos vossos caprichos de homem vulgar. A princípio, acreditou que não adviriam desagradáveis consequências, certa da possibilidade de fugir a quaisquer observações. Sabíeis engodar-lhe a inexperiência em assuntos afetivos e proclamáveis a inocência de semelhantes relações. Contudo, agora, anunciava-se um filhinho, preocupando-lhe o coração. Quem a socorreria? quem lhe restauraria a paz familiar? Não seria melhor a legalização dos laços existentes? não deveriam esperar, honrados, a dádiva de um filho abençoado por Deus? Escutastes as rogativas sem abalo moral. Com a frieza dos homens de fraseologia brilhante, invocastes o dever sacerdotal como justificativa da impossibilidade, comentastes as convenções humanas e, por fim, propusestes a conciliação do problema, com um casamento apressado e indigno entre a vítima e o último de vossos servos. A jovem soluça convulsivamente, afirmando justa repulsa. Continuais na argumentação prudente e preciosa, mas, com evidentes sinais de loucura, a infeliz abandona-vos, precipitada, ganhando a via pública, sob a chuva torrencial… Acompanho-a. Regressa ao lar paterno, fundamente desequilibrada pelo vosso golpe impiedoso. Ah! Que horror! Vale-se a desventurada da noite solitária e bulhenta e ingere grande dose de formicida, tentando o ato final da tragédia interior. Ninguém lhe escuta os rugidos de sofrimento selvagem, porque os trovões ribombam no céu. Ao amanhecer, todavia, um pai aflito corre ao vosso retiro repousante e coloca-vos ao corrente do fato. Morrera-lhe a filha, misteriosamente. Como aclarar a situação? não procedia com acerto, buscando o conselho sacerdotal? Recebeis a notícia disfarçando dificilmente a emoção, repetindo textos evangélicos para consolar o amigo confiante. Preocupado, ponde-vos a caminho da residência enlutada. No entanto, sinto-vos perfeitamente o estado mental. Não vos aflige a perda de alguém que vos poderia estorvar a tranquilidade, preocupa-vos a descoberta de algum recurso, aparentemente digno, que vos conserve a cavaleiro da situação imprevista. Pronunciando palavras confortadoras, montastes guarda ao cadáver e chamastes médico amigo. Ei-lo que chega! Oh! É o mesmo que vos examinou, no último dia, acreditando-vos suicida! Depois de longa conversação confidencial convosco, o clínico assevera que houve morte natural, com a ruptura de vasos do coração. Recuperais o bem-estar que transparece, de novo, em vossa expressão fisionômica. Vossas referências de consolação tornam-se mais vivas e inteligentes e seguis os funerais, calmo e contrito, embora os olhos esgazeados e terríveis da suicida vos contemplem do féretro, enquanto outros vultos negros, do Plano invisível aos homens comuns, vos acompanham no préstito! São almas vingadoras que vos seguem, tenazes!…

Interrompeu-se Luciana, visivelmente comovida, e, dando-nos a entender que a paisagem mental de Domênico se modificara ao influxo de outras lembranças que a narração evocava, transferiu o curso das observações no tempo.

— Ah! Sim, vejo bem, — continuou, alarmada, — destaca-se infeliz entidade que, certamente, vos consagrou funda afeição. Contempla-vos com desespero e enternecimento simultâneos. Parece-se extremamente convosco. Agora, compreendo. Não foi apenas vosso amigo, foi vosso pai. Reclama, insistente, determinada escritura que não apresentastes. Que vejo? Em torno dele há imagens vivas de recordações angustiosas. Contemplo-lhe a derradeira noite ao vosso lado. Fixa-vos, carinhoso e confiante. A dispneia concede-lhe trégua mais longa e o moribundo entrega-vos grande testamento, em que relaciona suas últimas vontades. Fala-vos, afetuoso e humilde, de seu passado oculto. Não foi simplesmente o genitor feliz dum sacerdote e de filhos outros que lhe honram o nome, declara. Foi moço arrojado, a comprometer-se em aventuras diferentes. Possuía alguns filhos, a distância do lar, e não desejava partir sem legitimá-los devidamente. Além disso, pretendia garantir-lhes futuro próspero. Escutais com indisfarçável interesse. Em seguida, a pedido do genitor, ledes a discriminação de pequenos legados a pupilos dele. O agonizante acompanha-vos, atento, com o olhar. Tendes agora belas palavras nos lábios, justificando-lhe os erros do passado. Sabeis consolar com primores verbalísticos que lhe provocam admiração. Por fim, prometeis ao coração paterno exato cumprimento de seus derradeiros desígnios. Edificado, confessa-vos ele os deslizes que omitira, declara-vos seu arrependimento “in extremis” e diz de sua esperança no Céu, onde Jesus lhe receberá os sinceros desejos de reparação. Palavras entrecortadas por suprema aflição, reitera-vos a súplica de amparo constante a certa mulher, cercada de filhinhos, que esperam dele o sustento necessário… Ajudado por vós, abraça-se ao crucifixo, que contempla de olhos nevoados. Recitais longa e comovente oração, acariciando-lhe a cabeça grisalha. Mais alguns momentos, esforçando-se por ver-vos pela última vez, o moribundo cerra os olhos no ato final do corpo. Estás sozinho com o cadáver. Conservais o polegar e o indicador da mão direita sobre os olhos do morto, a fim de imprimir-lhe boa postura fisionômica. Antes, porém, de qualquer comunicado ao interior doméstico, sepultais o documento em móvel pesado, com intenções francamente hostis aos retos propósitos do desencarnado. Desde esse instante, parece-me que ele vos seguiu, sempre de perto, reclamando, reclamando… Permanece, angustiado, na tela mental de vossas lembranças vivas…

A clarividente para, de novo, fixando particularidades diversas, enquanto o infeliz Domênico entremostra insopitável comoção.

— Oh! Agora, — prosseguiu Luciana, dando conta da tarefa que lhe fora cometida, — é outro perseguidor severo! Salienta-se à minha visão. É um velho eclesiástico, que deixou o aparelho físico endereçando-vos intensas vibrações de ódio. Vossas reminiscências esclarecem o fato. Desejáveis, a qualquer preço, o curato que lhe pertencia. Variados interesses pessoais prendiam-vos o pensamento à pequena cidade sob a orientação do antigo pároco. Intentais a realização do desejo por métodos suasórios. Em longo diálogo, propondes a compra da paróquia, em caráter particular. Alegais dispor de bastante influência política para efetuar a transferência, sem abalos, remunerando-lhe a adesão incondicional ao projeto. O velhinho, porém, recusa e justifica-se. Permanece junto àquele rebanho, desde muitos anos. Além disso, está velho, doente. Servira à Igreja com as melhores forças de seus bons tempos de saúde física e espera a possibilidade de morrer ali, respirando o ar amigo do seu pequeno pomar. Reconhece vossa superioridade na questão, considerando-vos as relações prestigiosas no seio do clero e da administração pública e assegura que, se outras fossem as condições, cederia o lugar sem qualquer remuneração ou relutância. Os médicos, entretanto, recomendam-lhe a residência no litoral, para que a atmosfera marinha lhe facilite o esforço do coração. A rogativa comoveria a qualquer. Ouvistes, concordastes e apresentais despedidas arquitetando novo plano. Dali mesmo, sem qualquer escrúpulo, partis em visita pessoal ao bispo da diocese, a quem expondes, com fingida humildade, a solicitação que vos preocupa. Enganado, o dignitário da Igreja ouve, atenciosamente, e aceita o que propondes, recomendando, porém, prévia audiência de seus assessores diretos. Não tendes dúvidas ou ponderações de qualquer natureza. Gratificando companheiros altamente colocados, conseguistes que o antigo sacerdote fosse removido, compulsoriamente, para longínqua paróquia de montanha, onde o ancião morreu, sem delongas, odiando-vos de morte. Intoxicado pela cólera e pelos reiterados desejos de vingança, está cego às manifestações da espiritualidade superior, cercando-vos com ira implacável…

Novo intervalo da clarividente. Luciana, porém, recomeça a exposição, mais alarmada:

— Agora, surge determinada mulher. Parece-me que desencarnou depois de melindrosa operação nos olhos. Sim, a vossa tela de reminiscências fala bem alto. Foi vítima do vosso poder fascinante de homem dominador. Ei-la ao vosso lado no último encontro, ainda na Esfera carnal. Acabastes a refeição lauta da manhã, quando alguém bate à porta paroquial. Trata-se de pobre mulher, envelhecida prematuramente e quase cega, conduzida por anêmico menino de nove a dez anos, que vos suplica auxílio. Ante a frieza de vossa recepção, a infortunada, em palavras sentidas, invoca o passado de leviandades e pergunta se esquecestes o filho que lhe colocastes nos braços. Chora, gesticula e explica-se. Trabalhara sinceramente pela própria reabilitação, mas, em toda parte, acusavam-na de prostituição e ociosidade. Lutara heroicamente por manter o filhinho, à custa do serviço honesto, mas adoecera, sem qualquer proteção, e ali estava quase cega, implorando socorro… Se pudesse, pouparia ao filho ainda criança a humilhação de conhecer o pai desalmado; entretanto, o pequenino abeirava-se da morte. Surpreendera-o a tuberculose devoradora e suplicava-lhe auxílio financeiro para o tratamento indispensável. A criança contempla-vos, triste e confiada. Ouvistes, indiferente, e ensaiastes resposta estranha. Ao vosso toque particular de campainha, determinado servidor aparece conduzindo cães bravos que ameaçam os pobres pedintes, forçando-os a fugir, espavoridos. A criança, no último degrau da anemia, morre sem recursos e a mãe infeliz desencarna em pavilhão da indigência, com o sinistro desejo de vingar-se de vós, de qualquer modo.

Interrompera-se Luciana, novamente, como para fixar minúcias apenas visíveis ao seu olhar. De súbito, exclama:

— Oh! Que horror! Vejo mais!… Diferente mulher de olheiras fundas e negras vestes…

Não terminou a observação, todavia.

Nesse instante, o desventurado proferiu um grito terrível, desfez-se em lágrimas e exclamou, alucinado de sofrimento moral:

— Basta! Basta!…


Soluços atrozes lhe rebentaram do peito opresso, sem solução de continuidade. Zenóbia, que lhe mantinha a cabeça no regaço amoroso, tranquilizou-nos em tom discreto:

— Domênico melhora, graças ao Nosso Divino Médico. Para o Espírito culpado e sofredor, as lágrimas são também uma chuva benéfica que refrigera o coração.

Logo após, permaneceu silenciosa, enquanto a seguíamos, enternecidos, de mente voltada para a prece.

Depois da longa crise de pranto de Domênico, a diretora da Casa Transitória solicitou ao padre Hipólito que semeasse novas ideias no terreno consciencial arado pela dor, notificando-nos que tomaria alguns minutos para convocar, mentalmente, a ex-genitora do antigo pároco desencarnado, para que o mísero fosse reconduzido à Esfera da Crosta, no processo inicial da reencarnação futura.

A orientadora entrou em funda meditação, ao passo que Hipólito ergueu a voz, dirigindo-se ao mendigo de luz:

— Irmão Domênico, o Senhor Misericordioso ouviu-nos a rogativa. Desejas, efetivamente, a redenção?

O interpelado, ao que deduzi, despreocupou-se inteiramente da pergunta e, mantendo forte impressão, relativamente às afirmações que ouvira, indagou a seu turno:

— Ah! Existe então a Justiça Divina, anotando-nos as faltas? Há cadastros tão minuciosos para os mais secretos feitos do Espírito?

— Trazemos na própria consciência o arquivo indelével dos nossos erros, — comentou Hipólito, com inflexão de piedade, — como os justos são portadores das notas íntimas que os glorificam diante do Pai Altíssimo. Cerra, para sempre, meu amigo, a porta do “ego inferior”! Cala a vaidade, o orgulho, a impenitência! Não maldigas. A Igreja que nos reunia, no Círculo carnal, é santa em seus fundamentos. Nós é que fomos maus servos, desviando-lhe os princípios básicos para a satisfação de instintos dominadores. Procurávamos o reino transitório do poder temporal, através de puras manifestações do culto externo aliado à política corruptora, olvidando, deliberadamente, o Reino de Deus e Sua Justiça. Poderemos culpar, porventura, as mães devotadas pelos crimes voluntários dos filhos? A igreja universal de Jesus-Cristo, que congrega todos os seus apóstolos, servidores, discípulos e aprendizes, é mãe amorosa e fiel.

De novo, soluçante, o Espírito infortunado revelava-se ferido nas fibras mais íntimas, provocando-nos comoção e lágrimas.

— Não condenes, — prosseguiu o companheiro. — Quantos antigos superiores nossos expiam nas regiões tenebrosas! Quantos se enganaram, honrando no mundo a si mesmos, esquecendo o Senhor que “passou fazendo o bem”! Muitos dos dignitários orgulhosos que nos dirigiam as atividades, com o cálculo a presidir-lhes as deliberações, baixaram ao sepulcro, em solenes exéquias, através de fanfarras e esplendores, para comparecerem aqui em dolorosas necessidades do coração, quais miseráveis mendigos! Muitos aguardam dias melhores, no fundo de viscosos pântanos do ódio destruidor; outros imploram socorro, ansiosos de paz e renovação. Por que motivo não nos restaurarmos também, a fim de movimentarmos o necessário serviço do amor que redime sempre? Levantemo-nos, meu irmão, para sermos úteis aos companheiros de outro tempo, reconduzindo-os ao porto de salvação! Recordemos Aquele, em cujo nome augusto juramos fidelidade ao Céu, na Terra. Dói-te a penitência, fere-te a humilhação? E Ele? Porventura não percorreu a Via Dolorosa, como vulgar malfeitor? Não aceitou a cruz que o flagelaria até à morte?

— Sim, — concordou o interlocutor, tristemente, — tudo isso é verdade!…

Significativo gesto de Zenóbia compeliu o padre Hipólito a suspender as considerações.

Dando-nos a certeza de que respondia ao chamamento silencioso da orientadora, alguém compareceu perante a nossa reduzida assembleia. Era uma velhinha simpática, que nos conquistou, de pronto, pela delicadeza e generosidade irradiantes. Abraçou a irmã Zenóbia, como se o fizesse a uma filha muito amada e cumprimentou-nos, cortês e reconhecida. Dispensávamos qualquer apresentação. Tratava-se de Ernestina, a dedicada mãe. Ajoelhou-se junto ao filho desventurado e, de mãos postas, rogou a proteção dos Céus.

Fosse pela renovação profunda daquela hora que lhe modificara o padrão vibratório, fosse porque as forças invisíveis de ordem superior manipulavam as nossas energias conjuntas em benefício do infeliz, Domênico, que era cego perante nós outros, conseguiu enxergar a recém-chegada.

Comoventes gritos alcançaram-nos o íntimo.

— Mamãe! Mamãe!…

Aquela criatura que se mostrara tão rígida e indiferente, o eclesiástico que zombara de tantos corações na Terra, segundo retrospecção do pretérito que Luciana levara a efeito, igualmente invocava o nome de mãe, como se fora chorosa criança desviada do lar. Abriu, ansioso, os braços, procurando-lhe o seio amigo, e Zenóbia, com carinhoso cuidado, ajudou-o a refugiar-se no colo materno. Ernestina apertou-o, então, de encontro ao peito e pareceu-me que o infortunado sentia o contato maternal, como se houvera alcançado o repouso supremo.

— Mãe, minha mãe! — Gritava, colando a cabeça ao tórax inclinado para a frente, a fim de melhor fazer-se sentir, — ajuda-me! Perdoa-me! Perdoa-me! — E recordando, talvez, o trabalho da clarividente que lhe alterara o ser, acrescentou:

— A justiça divina descobriu-me; sou um réprobo sem perdão, um celerado infernal. Hediondo passado está vivo, dentro de mim. Oh! Mamãe, és capaz de suportar-me, quando todos me detestam?

Ernestina aconchegou-o mais perto do coração e falou, comovida:

— Eu não sei, meu filho, se foste criminoso; sei que te amo com toda a alma, sei que sentia profundas saudades de tua presença carinhosa, no desejo enorme de sentir-te, de novo, junto de mim! Que haveria de mais belo para meu coração que o doce enternecimento desta hora? Deixa que nasçam em ti pensamentos de júbilo e reconhecimento ao Pai de Inesgotável bondade que nos reúne compassivamente. Medita um instante, Domênico, sobre a grandeza divina e certifica-te de que ninguém permanece ao abandono. O pensamento de gratidão a Deus, dentro das sombras do sofrimento, é como raio brilhante de aurora, preludiando a vitória plena do Sol sobre as trevas densas da noite. Qual de nós não terá sido defrontado pela tormenta da ignorância? Todos tivemos pedras e espinhos na longa estrada da redenção. Muitas vezes caímos; entretanto, a mão invisível do Senhor arrebatou-nos, misericordiosa, do mergulho na lama ou das furnas do abismo! Tem coragem e levanta-te intimamente para o novo dia.

O mísero contemplava-a, enlevado, como se tivesse sob os olhos a mais formosa visão de sua vida.

— Sou, porém, um malfeitor, réu de crimes sem perdão! — Falou tristemente.

— Não, meu filho, — alongou-se a palavra materna, — foste enfermo, como nós outros. Escutaste as sugestões do mal e cultivaste úlceras dolorosas. Desequilibraste o coração, resvalando no despenhadeiro. Não te esqueças, porém, de que Jesus é o Divino Médico. Aceita a tua necessidade de medicação e dirige-te a Ele na súplica sincera de quem deseja a cura real para a vida eterna. Nós outros, os que intentamos auxiliar-te, não chegamos ainda à posição dos que tudo podem ou que muito sabem. Somos trabalhadores interessados em nossa própria iluminação pelo trabalho incessante, na execução da vontade do Altíssimo. Desenvolvemos nossas faculdades superiores, sem abalos e sem milagres, adquirindo valores novos, ao preço de nosso próprio esforço na paciente edificação de nosso espírito para Deus. Acreditarias, porventura, que tua mãe estivesse no paraíso, em gozo beatífico, inteiramente esquecida de seus imensos débitos para com todos aqueles que lhe partilharam o afeto e a luta, nos serviços salvadores da carne terrestre? Admitirias, acaso, que apenas o carinho materno me garantiria posição definitiva no campo celestial? Não, Domênico. Horizontes diversos abrem-se para nossas almas, no Universo Infinito. Nossas existências são dias abençoados de trabalho, em que, ao sol do dever nobilitante e às chuvas da experiência construtiva, desabrocham e crescem nossas faculdades divinas para a Eternidade. É verdade que os erros deliberados turvam-nos a consciência, compelindo-nos a gastar valiosas possibilidades de tempo na luta reparadora, mas o Senhor jamais nega recursos de retificação aos que lhe rogam socorro, no propósito fiel de reconquistar a harmonia divina. Após a travessia do túmulo, continuamos trabalhando e edificando, iluminando e redimindo… Não desejarias, portanto, aderir ao nosso serviço de elevação? Não pretenderás fugir ao Círculo de sombras, a fim de ganhar os caminhos bem-aventurados da luz?

O olhar do infeliz adquirira diferente expressão. A palavra incisiva e branda de Ernestina transformava-lhe a mente, pouco a pouco. Reconhecendo o efeito de suas advertências salutares, prosseguiu a devotada benfeitora:

— Não seja a recordação angustiosa dos tempos idos obstáculo insuperável à realização de que necessitas presentemente. Todos aqueles a quem feriste não desapareceram para sempre. Prosseguem tão vivos, quanto nós, e poderás, na condição de servo humilde, buscar os credores de outra época, atendendo, em teu próprio benefício, a exigência do resgate necessário. O êxito, entretanto, pede um coração ardente na fé viva e um cérebro desassombrado, pronto a compreender o bem e a praticá-lo. Sem a esperança arrojada e sem espírito de serviço, dificilmente saldarás o débito pesado que te prende a alma a Esferas grosseiras e inferiores. A fim de conquistares semelhantes valores, considera a Eternidade e o infinito amor de Deus. Não te encarceres em ponderações de natureza humana, vendo sacrifícios onde apenas palpitam sublimes oportunidades de ventura e redenção. Se a consciência te acusa, roga a Jesus orvalhe o teu íntimo de santificada esperança! Basta uma gota desse rocio divino para que o deserto da alma floresça e frutifique em bênçãos de paz e felicidade para sempre. Não desanimes, Domênico! Deus permite que a alvorada siga a noite escura. Porque não confiarmos, de maneira absoluta, no Supremo Poder? Somos nada, meu filhinho, mas o Pai Misericordioso tudo pode.


A presença reconhecida de sua mãe completara-lhe a modificação benéfica. O sofredor, como o náufrago desesperado atingindo porto amigo e reconfortante, esquecera as palavras odientas e blasfemas de minutos antes e, conchegando-se ao coração materno, rogava:

— Minha mãe, o infortúnio colheu-me o espírito desventurado!… Não me abandones! Não me abandones!…

— Nunca, — disse a nobre matrona desencarnada, sufocando as próprias lágrimas, — peço-te, porém, meu filho, que jamais abandones a Jesus, nosso Mestre e Senhor!…

— Sim, — retrucou Domênico em pranto forte, — Jesus, nosso Mestre, nosso Senhor! — Fizeram-se longos instantes de silêncio, entre nós.

De olhos lacrimosos, perdidos agora no espaço, a evocar, talvez, paisagens de muito longe, o ex-sacerdote comentou:

— Oh! Mamãe, que saudade de minhas preces em criança!… Nesse tempo que vai tão longe, ensinavas-me a ver o Criador do Universo em todas as dádivas da Natureza. Meu coração banhava-se, feliz, na fonte cristalina da confiança e o amor da simplicidade habitava minhalma venturosa!… Depois, no torvelinho do mundo, perverti-me ao contato dos homens ambiciosos e maus. Ao invés da piedade, cultivei a indiferença; em lugar do amor fraterno, legítimo e ativo, coloquei o ódio inexorável aos semelhantes; ocultei o coração e exibi a máscara, fugi às verdades de Deus e fantasiei-me de humanas ilusões! Por que fraquezas singulares pode o homem operar semelhante permuta? Porque menosprezar tesouros de vida eterna e mergulhar-se em tão sinistros enganos? Oh! Tu que conservaste a doce confiança do primeiro dia; que nunca sorveste o venenoso absinto que me embebedou na Terra, faze-me esquecer, por piedade, o homem cruel que eu fui!… Anseio retornar à serenidade ingênua do berço; angustia-me a sede de tornar à verdadeira fé! Ajuda-me a dobrar os joelhos, novamente, e a rezar de mãos postas para que o Pai do Céu me faça esperar sem aflição e esquecer o mal sem olvidar o bem!…

Ernestina, extremamente emocionada, auxiliou-o a prosternar-se, amparando-o, porém, com inexcedível ternura.

Em seguida, copiando os gestos das mãezinhas cuidadosas e desveladas segurando criança tenra, uniu-lhe as mãos em súplica e, chorando para dentro de si mesma, disse-lhe:

— Repete, filho, as minhas palavras.

Numa cena comovedora, que jamais me fugirá da recordação, a dedicada genitora orou pausadamente, acompanhando-a Domênico, sentença por sentença:

— Senhor Jesus!

— Senhor Jesus!

— Eis-me aqui,

— Eis-me aqui,

— Doente e cansado aos teus pés,

— Doente e cansado aos teus pés,

— Compadece-te de mim, bem-amado pastor, de mim, ovelha desgarrada de teu rebanho… Ofuscou-me o brilho falso da vaidade humana, a ilusão terrestre embotou-me o raciocínio, o egoísmo enrijeceu-me o coração e caí no precipício da ignorância, como leproso do sentimento. Tenho chorado e sofrido amargamente, Senhor, minha defecção espiritual. Mas eu sei que és o Divino Médico, dedicado aos infelizes e transviados do caminho… Por piedade, livra-me da prisão de mim mesmo, liberta-me do mal resultante de minhas próprias ações, faze que meus olhos se abram à luz divina! Nutre-me com a tua verdade soberana, ampara-me a esperança de regeneração! Senhor, dá-me forças para ressarcir todas as dívidas, curar todas as chagas, corrigir todos os erros que se acham vivos dentro de mim… Perdoa-me, concedendo-me recursos para o resgate, não me deixes entregue aos resquícios das paixões que eu mesmo criei impensadamente, favorecendo-me com as tuas repreensões silenciosas nas situações disciplinares e, sobretudo, Benfeitor Sublime, retribui aos teus servos que me auxiliam, nesta hora, conferindo-lhes renovadas bênçãos de energia e paz, a fim de que auxiliem a outros corações tão extenuados e caídos quanto o meu! Jesus, confiaremos em tua compaixão para sempre! Assim seja!

Domênico repetira a oração, frase por frase, qual menino dócil e interessado em aprender a lição. Ao que deduzimos, a rogativa fizera-lhe profundo bem. Abraçou-se a Ernestina, mais calmo, e, enquanto a diretora da Casa Transitória lhe seguia os mínimos gestos, sem que ele lhe percebesse a presença, perguntou, de improviso:

— Minha mãe, já que a tua ternura veio ao meu encontro no Círculo das trevas, dize-me: onde está Zenóbia? Ter-me-ia abandonado para sempre?

Fundamente surpreendido, notei que a indagação era feita com inflexão dorida de saudade e desencanto.

— Certamente, meu filho, — apressou-se Ernestina em responder, — nossa amiga acompanha-te de Esfera superior, implorando a Jesus te abençoe os propósitos de redenção.

— Oh! — Tornou ele, triste, — se a existência humana nos houvesse unido, outro teria sido meu destino. Ela, porém, desposou outro homem quando era maior minha confiança no futuro, compelindo-me ao celibato sacerdotal, que se fez seguir de tão deploráveis consequências para mim. Se houvéssemos organizado o ninho doméstico, não me faltaria a confiança em Deus, teria sido talvez pai generoso e meus filhos ser-me-iam sagrada coroa de responsabilidade e alegria. Zenóbia, minha mãe, era a lente milagrosa através da qual eu sabia ver o mundo noutro prisma. Em companhia dela, teria adquirido o dom de ver as oportunidades divinas que me cercaram o coração. Todavia, quando a sorte ma arrebatou, esvaiu-se-me todo o sonho de construção equilibrada na Terra… Dominado pela dor de perdê-la, acreditei que a Religião me ofereceria refúgio inexpugnável contra as tentações. Que terrível engano! Sitiado num mundo de convenções que me constringia o espírito e distanciado da sublime influência da única mulher que, a meu ver, me poderia salvar, despenhei-me, de abismo em abismo, convertendo-me num demônio insaciado, a destruir e perverter… Teria ela compreendido, algum dia, como fui infeliz? Apiedar-se-ia de minha dor cheia de miséria e ruínas?

Ernestina afagou-lhe a cabeça, maternalmente, e exclamou:

— Cala-te, meu filho! Não te presumas o único sacrificado. Se houvesses aceitado a Vontade Divina, o presente ser-nos-ia menos doloroso. Não te estribes em fatos humanos, naturais e necessários, para justificar os desvarios que te precipitaram nas sombras fatais! Zenóbia foi sempre verdadeiro anjo entre nós. Não comentes com mágoa acontecimentos que se foram, que lhe custaram uma existência inteira de renúncia santificante pelos pais, pelo esposo, pelos filhos e por nós!

— Entretanto, — atalhou ele, — tínhamos sublime compromisso, desde a infância, e a nossa primeira mocidade foi um paraíso de promessas mútuas…

O carinho materno, todavia, não o deixou terminar. Colocando-lhe o indicador sobre os lábios, num gesto compassivo de mãe, Ernestina acentuou:

— Ouve, Domênico! Quem teria sido a maior vítima? O homem jovem e forte, que se recolheu livremente à organização religiosa a facultar-lhe mil processos diferentes na prática do bem, ou a pobre menina forçada pelas circunstâncias da luta terrestre a desposar um viúvo, rodeado de filhinhos aos quais deveria dedicar-se na categoria de mãe? Buscaste voluntariamente a ordenação sacerdotal, enquanto Zenóbia, constrangida por situações angustiosas, aceitou um caminho de abnegação contrário aos sonhos de sua juventude. Absolutamente entregue às tuas próprias criações individualistas, não foste fiel aos princípios esposados, ao passo que Zenóbia perseverou no sacrifício e na fé viva até ao fim, embora esmagada ao peso das diárias humilhações ao seu ideal de mulher. Erraste para satisfazer a ti mesmo, incapaz de acalmar as paixões inferiores que te ardiam no peito, enquanto nossa venerável amiga aceitava, humilde, as circunstâncias que lhe atormentaram o ser, anos seguidos, em benefício de todos nós. Pondera, pois, Domênico! Qual teria sido a verdadeira vítima? Poderemos comparar a abnegação com a insensatez?

Percebia-se que a elevada orientadora se ligava aos dois, através dos fios de doloroso romance que não nos era dado conhecer. Domênico escutou compungidamente as observações, calou-se longo tempo, internado talvez no plano de longínquas recordações e concluiu, tristemente:

— É verdade!…

— Compete-nos, agora, — falou Ernestina, com brandura, — avançar para alcançá-la.

Nesse instante, embora discretamente, Zenóbia começou a chorar, contemplando-lhe o rosto, debruçada sobre ele e, certo, em obediência ao vigoroso desejo da diretora da Casa Transitória, Domênico sentiu que as gotas quentes de pranto lhe caíam na face melancólica. Fixou os olhos maternais com expressão indagadora, e, reconhecendo que semelhantes lágrimas não tinham aí sua origem, perguntou, angustiado:

— Oh! Minha mãe, quem estará chorando sobre mim?

A benfeitora carinhosa, cujo olhar descortinava todas as particularidades da cena comovente, respondeu sob forte emoção:

— Os anjos choram de júbilo nas regiões celestes, quando um coração sofredor se levanta do abismo…

O ex-sacerdote meditou longos momentos, dando-nos a impressão de grande alívio.

Compreendendo a oportunidade feliz, Ernestina convidou-o:

— Vamos, filho. Movido pela Misericórdia Divina, o relógio do tempo fez soar para teu Espírito a hora abençoada da redenção. A porta do resgate abre-se de novo à tua alma oprimida. Que o Céu nos abençoe?!

— Irei contigo, mãe, aonde quiseres, — respondeu o infortunado, sem amargura.

A venturosa mãe endereçou-nos expressivo olhar de agradecimento, enlaçou-o nos braços, como se o fizesse a uma criança enferma, e partiu, suportando o valioso fardo, em direção à Crosta Planetária, a desafiar, jubilosa e feliz, as sombras densas…

Novamente a sós, reparei que a Irmã Zenóbia se mantinha transfigurada, ditosa. Enxugou as lágrimas, revelando nos olhos alegrias desconhecidas. Estendeu-nos a destra, em sinal de gratidão e contentamento. E contemplando, talvez, a paisagem do futuro, demorou-se em meditação, na qual, certamente, enviava seu hino interior de reconhecimento ao Altíssimo.

Em seguida, fitou-nos, tranquila, e falou:

— Irmãos, que o Senhor lhes recompense a colaboração fraternal, repartindo com todos a felicidade que me atingiu. Graças a Ele e aos dedicados amigos, acabo de vencer uma grande batalha na guerra do amor contra o ódio, da luz contra as trevas e do bem contra o mal, em que me encontro empenhada, desde muitos anos.

Logo após, atendendo ao plano de trabalho organizado pela sábia orientadora, nos reuníamos aos diversos auxiliares que se detinham a distância, a fim de nos comunicarmos com os filhos da ignorância e do infortúnio, temporários habitantes do abismo.




André Luiz
Francisco Cândido Xavier


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